Latitude Podcast! #02 – Antonio Carlos Witkoski (íntegra)

 

Antonio Carlos Witkoski, convidado do segundo episódio do podcast Amazônia Latitude, é doutor. em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará e professor titular no Departamento de Ciências Sociais da UFAM, onde atua em diversos programas de Pós-Graduação.

O professor Witkoski desenvolve pesquisas na área da Sociologia, Sociologia Ambiental e Rural nos temas:  sustentabilidade, ecodesenvolvimento, etnoconhecimento, entre outros. Além disso, fez parte da Diretoria da Sociedade Brasileira de Sociologia entre 2007 e 2009, e é autor de oito livros, sendo “Território e territorialidades na Amazônia”, publicado pela editora Valer em 2014, o mais recente.

Confira a entrevista com o professor Witkoski, realizada durante o Seminário Internacional de Ecologia Política, na cidade de Tabatinga-AM no início de junho.

 

– Professor, na sua apresentação no Seminário Internacional de Ecologia Política, você falou sobre um modo de extrativismo vegetal e animal completamente sustentável feito pelos povos ameríndios antes da chegada dos colonizadores.  Considerando o contexto da racionalidade econômica em que vivemos, você considera possível um regresso a esse modelo?

Não considero possível um regresso, mas a gente tem que colocar a coisas nos devidos lugares. O que comecei apresentar no evento, era uma comunicação que pretendia mostrar primeiro algo que é extremamente importante e que a gente não pode desconsiderar quando olhar para os povos tradicionais, particularmente, para os chamados ribeirinhos amazônicos, caboclos amazônicos ou até mesmo caboclos ribeirinhos amazônicos. A nomenclatura varia um pouco e aí tem toda uma discussão na academia se ela é uma autorrepresentação dessas populações que moram na várzea, ou se é uma atribuição antropológica (sócio/antropológica) da academia. Esse é o primeiro aspecto que temos que considerar. Então, tem uma discussão teórica que não termina e é importante.

A pesquisa é uma grande cozinha onde você faz tudo ao mesmo tempo. Você faz coleta de dados, lê, faz monografias temáticas, faz tudo ao mesmo tempo. Na hora que chega o momento de expor o resultado do trabalho, você precisa, necessariamente, adotar um ponto de partida para a sua exposição para tornar claro, inteligível, o trabalho que pretende apresentar para o público. Quando fui fazer o primeiro capítulo, eu falei “tenho um ponto de partida aqui que é extremamente importante” e qual seria? É o encontro da civilização europeia, os ameríndios e a Amazônia. Num primeiro momento, é a Amazônia, mas, o que acontece quando começo a trabalhar com a documentação existente? Percebo claramente que, durante o projeto colonizador do período, eles entram primeiramente em contato com os ameríndios da água por motivos óbvios. Nós estamos em um período histórico que a navegação é importante e o uso da energia eólica é importante na navegação. Eles vão fazer todo o caminho exploratório na Amazônia por cima, ou entrando pela foz do Rio Amazonas. Se eles sobem pela foz, quando se chega na cidade de Manaus, tem o encontro das águas do rio Amazonas e o rio Solimões e você sobe para calhas diferentes. A cor da água é extremamente importante, porque quando você está numa calha de água preta você tem uma densidade demográfica diferente de quando você está numa calha de água barrenta (que a gente chama de água branca). Então, perceberam claramente que havia densidades diferentes – e naturalmente, o primeiro contato do colonizador foi com os ameríndios das águas. Esse contato foi feito com muita dor, porque o projeto colonial é um projeto de poder dos europeus, de uma maneira em geral, e dos portugueses em particular. Nós estamos na fase do capitalismo mercantilista e o Brasil vai se inserir nessa dinâmica. Não só o Brasil, mas os países em geral que ainda não foram descobertos passam a ser mapeados e, claro, quando os portugueses chegam na Amazônia ficam encantados com o que encontram aqui. Ao entrar pela calha, vão produzir aquilo que chamo no meu livro de “fricção Iinterétnica”, que é o contato entre aquela perspectiva antro-eurocêntrica com as populações que habitavam a calha do rio, que são os ameríndios das águas. Esse contato foi biológico também, porque os colonizadores praticavam atos sexuais com as indígenas e isso acabou criando outra figura. O produto desse encontro, biológico e cultural ao mesmo tempo, vai acabar formando esse sujeito social que é chamado de caboclo, caboclo ribeirinho ou ribeirinho simplesmente, que são os moradores das várzeas. Como disse na minha apresentação, não trabalho com populações indígenas, mas com ribeirinhos, que é produto dessa fricção. Eles são habitantes extremamente importantes, porque quando você apanha os dados do censo – e esse dados são diferentes na Amazônia, porque não dá para pensar 80% vivendo na cidade e 20% no campo – vê que a Amazônia tem singularidades. Contudo, se você efetua as populações do Estado do Amazonas, a grande maioria que mora no mundo rural está na área de várzea, porque morar ali tem a ver com esse processo histórico. Então, tem uma dimensão diacrónica, que é histórica, marcada por continuidades, mas também por descontinuidades. A gente tem que entender esse sujeito como sendo resultado dessa fricção.

Quando os portugueses chegam e há esse contato, fica muito evidente, nos documentos, que eu manejei duas racionalidades absolutamente distintas. Uma racionalidade é o projeto colonizador que tem o arcabuz na mão direita e o crucifixo na mão esquerda e eles entram triturando os ameríndios de várzea. Eu diria que, nesse processo, a cruz se faz mais importante do que o arcabuz, porque a cruz tem a ver com a dominação do poder simbólico, ideológico, e o arcabuz tem a ver com o poder físico e material. Você pode aniquilar o outro, matar o outro, mas com a religião você domestica as subjetividades humanas dos ameríndios das várzeas e, na medida em que você vai domesticando e produzindo esse outro sujeito social (que é resultado dessa fricção interétnica), você vai ter algumas situações que são assim: ameríndios que vão trabalhar para o projeto colonial; outros que vão lutar até morrer contra esse projeto colonial; e, ainda, os que vão migrar para a terra firme, fugindo da calha do rio, que é o lugar mais inacessível para aquele momento do processo civilizatório. Contudo, algo que fica muito claro nesse encontro é que os ameríndios das várzeas já tinham uma maneira de manejar os recursos naturais e de viver de uma maneira muito própria. Os ribeirinhos não são ameríndios, mas herdaram (do ponto de vista cultural) muitos dos hábitos que essa população ameríndia tinha nesse momento do contato.

A segunda parte da argumentação é que, para além do bem e do mal, hoje vivemos, como disse na minha apresentação, de maneira muito breve; mas o professor Enrique Leff foi na medula óssea do problema, porque ele teve um tempo muito legal para falar e é um intelectual extremamente importante. Quando a gente lê a obra dele, a gente percebe seu interesse em entender os fundamentos ontológicos das populações tradicionais. Nesse sentido, qual ideia eu tentei passar? O atual processo civilizatório é extremamente avassalador. Lembro que um dos comunicadores falou “hoje o problema não é mais os EUA, é a China, porque a China é a primeira potência do mundo”. Isso é bem verdade. A gente acha que precisa de mais dados empíricos, mas tudo indica que ela realmente seja a primeira economia do mundo. Contudo, não podemos negar a força espiritual que a sociedade norte-americana tem em função da hegemonia que exerce sobre o mundo. A presença dos Estados Unidos está nos quatro cantos da Terra e, onde há recursos naturais que lhes interessam, eles “fazem das tripas coração” para se apropriar desses recursos. Então, esse processo civilizatório é extremamente degradante do ambiente. Entretanto, uma das discussões que nós fazemos – e está muito presente na narrativa do Enrique Leff – é que a natureza da crise ambiental no mundo não é uma crise do ambiente, mas da civilização e da racionalidade que está por trás desse processo. Deste modo, se a gente não questionar a natureza dessa racionalidade – que tem a ver com o advento do racionalismo moderno e da forma com que foi se desenvolvendo, segundo as teorias de um conjunto bem diverso de filósofos, não percebemos que o racionalismo moderno está nas entranhas do sistema capitalista. Nesse sentido, o professor Enrique Leff fala da racionalização teórica, da razão instrumental e da razão substantiva, que são dimensões importantes para se contrapor a essa razão. Então, se a natureza da crise ambiental não é uma crise do ambiente, mas da razão, a gente precisa pensar qual é o papel histórico social e político que essas populações, que a gente chama de tradicionais, podem dar, já que não é possível universalizar essa concepção de sociedade na qual nós vivemos. Adianto: não há! Há um consenso na literatura a respeito disso. O representante da ONU que veio da Bolívia falou muito claro: “não são possíveis duas sociedades norte-americanas, porque não há recursos naturais para isso”. Esse estilo de civilização, essa sociedade, essa cosmologia de sociedade tem que ser repensada. É aí que entra o papel estratégico e histórico que têm as populações tradicionais. Veja bem, vocês devem ter percebido que as populações indígenas não têm que ficar prisioneiras só da tradição, embora esta seja extremamente importante. Eu não vi um indígena sem o aparelho de celular na mão; isso quer dizer que ela deixou de ser indígena porque usa essa tecnologia? Se começar a usar uma tecnologia de filmagem para registrar os problemas sociais, educacionais, de degradação ambiental, se eles estão se vestindo, estão deixando de ser indígenas? Eu acredito que não. A gente vai ter que achar uma nova equação e acho que isso já está posto. É o que estamos fazendo.

Ao se trabalhar com as populações tradicionais, há que se considerar também os ribeirinhos, só que numa outra perspectiva. Vou relatar um fato extremamente modelar, uma experiência na Reserva de Desenvolvimento Sustentável extremante importante. Eles têm um programa de manejo de pirarucu, que foi se estendendo para outras Unidades de Conservação; mas como chegaram nesse manejo? Os cientistas perceberam algumas impossibilidades de fazer a contagem demográfica dos pirarucus (e o tamanho desses peixes, aquela coisa toda…). Então, ali aconteceu o encontro entre o conhecimento moderno e os saberes tradicionais, que permitiu, pela primeira vez, essa contabilidade e que as comunidades fizessem do manejo do pirarucu uma fonte de renda. Foi extremamente importante, porque o pirarucu, hoje, a gente só pode consumir os que vierem com selo de Unidades de Conservação, ou de manejo, porque é uma espécie bastante ameaçada. Quando alguém pesca um pirarucu que não chegou ao quinto ano de idade, ele ainda não fez filhotes, não reproduziu a espécie… então, tem uma questão de conhecimento. É fundamental que você só possa pescá-lo depois que ele reproduziu. A racionalidade econômica não está preocupada com isso, mas a ribeirinha está, porque ela trabalha com a dimensão do tempo ecológico, que é outro, diferente do nosso. Entender o tempo de produção da natureza é absolutamente importante para você fazer um bom usufruto dos bens que ela que fornece a você. Essa mentalidade está muito presente nas populações ribeirinhas, mas só é executada pelas que estão dentro das Unidades de Conservação, porque elas têm um plano de gestão da unidade numa outra perspectiva. Os ribeirinhos que estão fora, no entanto, estão mais à mercê das regras do mercado. Nós temos um conjunto de agentes de comercialização que são uma verdadeira instituição, no sentido sociológico do termo, que faz a transação econômica dos excedentes da economia camponesa varzeana.

 

– Uma das suas recomendações na apresentação foi que os povos da várzea desenvolvessem um modelo de vida seguinte ao ciclo das águas, de forma a não agredir a natureza e permitir sua recuperação. Como essas populações podem conciliar esse tipo de vida com a formalidade e a pressão social contra cultura tradicionais e sustentáveis?

Esse é um grande paradoxo que a gente tem que resolver. Vejo a questão mais ou menos assim: não sei se vocês lembram, mas eu fiz uma crítica ao modelo da Zona Franca de Manaus. O projeto tem a ver com uma geopolítica que foi criada no âmbito de um regime autoritário. É a primeira realidade que a gente não pode negar. A Zona Franca foi pensada um pouco antes, mas foi a partir do Regime Militar de 1964, principalmente depois de 1968, que começa a implantação da mesma. Ela não foi empreendida só aqui, mas no mundo todo, como parte da nova dinâmica do capitalismo mundial. Inicialmente, a criação da Zona Franca de Manaus pelos militares pareceu um paradoxo. Por que criar uma Zona Franca de Manaus no meio da Amazônia? Se você olhar onde está Manaus, ela fica num lugar muito central da Amazônia e a gente sabe que o sistema capitalista é extremamente poderoso tanto do ponto de vista material quanto simbólico. Não dá para gente ver a dinâmica do capitalismo sem entender o papel da indústria cultural. Esta tem um peso fundamental na reprodução material e simbólica do próprio sistema capitalista. É só você pegar uma novela das oito e ver qual é o universo de coisas que nela circula; e é justamente na sua hora que as comunidades se reúnem.

Nós temos a Primeira Economia da Borracha, que foi no final do século XIX e começo do século XX; depois tivemos uma pequena depressão. Tivemos a Segunda Economia da Borracha, que foi na Segunda Guerra Mundial. Nas duas, quem fez essa economia acontecer foram os nordestinos. A migração veio por problemas de seca na região. Imagine você, nordestino, chegando à Amazônia e contrapondo os dois biomas – a caatinga e a floresta tropical. Lá, há uma ausência de água no solo e aqui, essa imensidão de água. Imagine os mecanismos de adaptação dessa população quando chega aqui. Como a Segunda Economia da Borracha foi induzida pelo governo de Getúlio, na dinâmica da Segunda Guerra, terminada a guerra, as demandas por látex acabaram. Lógico, a Amazônia sempre esteve imersa na dinâmica do capitalismo internacional, mas após esse período, há uma nova depressão da economia local.

Então, a Zona Franca surge como salvação para economia local e, quando ela vem, com força poderosa, passa a ser um polo de atração da vida urbana. O processo de urbanização não ocorreu como um todo – ainda está ocorrendo, mas, na região Centro-Sul, já ocorreu de maneira mais determinante e esse processo se repete aqui. Deste modo, uma parte substantiva das pessoas que moram em Manaus é oriunda do interior do estado. É claro que, na cidade de Manaus, hoje, tem coreano, japonês, americano, paulista, gaúcho, mas grande parte é população local. Nesse contexto, existe uma estrutura de classe muito complexa, que também tem sua singularidade. O importante é frisar que a Zona Franca surgiu com a proposta de trazer desenvolvimento e, como disse antes, é um modelo que utilizou força de trabalho farta, barata e desorganizada.

No meio disso, têm os ribeirinhos e sua grande capacidade de manejar as coisas. O capital claramente percebeu que se tratava de um trabalhador do campo que tinha destreza nas mãos para trabalhar na Zona Franca. Essa é uma leitura que faço. Assim, os trabalhadores vão sendo incorporados e a relação campo-cidade vai se dar de forma diferente. Tanto é que há em torno de quatro milhões de pessoas no estado do Amazonas, sendo que dois milhões moram em Manaus. Então, é um estado diferente quando comparado com outros, mesmo que o Amazonas tenha uma série de cidades [com populações estimadas] entre 70 e 100 mil habitantes. Nesse sentido, a Zona Franca veio como salvação e ela, de certa maneira, tenho que concordar, atrai a população para a cidade, criando menor pressão sobre os recursos naturais. No entanto, há uma externalidade negativa produzida pela mesma que é impagável. A cidade representa a estética terceiro mundista, onde você vê um edifício com estrutura de ferro e vidro ao lado de uma casa desafiando a lei da gravidade; o carro de última geração parado no sinal e (metaforicamente falando) uma carroça puxada por um cavalo magro com duas rodas de Volkswagen. Na sua origem, a Zona Franca deveria ter um projeto urbano-industrial, assim como distritos agropecuários, mas isso nunca saiu do papel. Tem apenas um distrito, próximo de Manaus, que fica no município de Rio Preto da Eva. No entanto, não foi criado em outros municípios, o desenvolvimento rural no estado sempre foi deixado a sua própria sorte. Num dado momento, foi criado a Zona Franca Verde, que aconteceu em algumas áreas, mas logo “desaconteceu” quase que imediatamente.

O que estou dizendo aqui tem a ver com um projeto de desenvolvimento nacional, que acho que falta no Brasil. Nesse sentido, critico até o governo do PT, mas antes também, porque nossas demandas foram se acumulando historicamente. Foram quatro séculos de escravidão no Brasil, um dos países que mais usou essa força de trabalho. Como, por exemplo, a gente resolve a inserção do negro na sociedade, sabendo como são os brasileiros em relação a esse ponto de vista? É uma dívida que a gente tem. E não são só os negros; são os indígenas e uma diversidade muito grande de camponeses no Brasil. São pessoas que, no seu modo de vida, produzem não só para eles, mas para as pessoas que comem na cidade e não cultivam e para que o agronegócio exporte, como foi dito no Seminário.

Esse projeto de desenvolvimento nacional que falta, na minha opinião, não pode ser um que imite qualquer outro de outro país do mundo. Não dá certo. Não é assim que funcionam as coisas. Claro, vale lembrar que somos muito colonizados – inclusive pela sociedade norte-americana. Manaus tem quase um milhão de automóveis, a última vez que vi os dados era 850 mil. Como vocês explicam isso? Onde está o transporte coletivo? Nós cultivamos muito, quase que inconscientemente, que o automóvel é uma alternativa; e acho que não é, nem nunca foi. Isso, entretanto, está na nossa medula óssea. Todo mundo quer um automóvel e essa indústria, que vem desempregando cada vez mais, por conta da inteligência artificial, é muito poderosa. Quando falo de um projeto de desenvolvimento nacional, uma coisa que Juscelino kubitschek fez (que também achei devastador) foi exatamente abrir o Brasil para o capital internacional e das montadoras. Tínhamos que fazer isso de uma outra maneira. Sou de uma época que se andava muito de trem no Sul do país. Paranaense, viajava muito de trem e com a máquina de vapor. Havia toda uma malha ferroviária no Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul… que foi para o espaço, porque a gente fez a opção pelo automóvel.

Vão falar que o Antônio Carlos está sonhando. Claro que eu sonho. Sou um animal que cultiva a utopia; não no sentido inatingível, mas o sentido dado pelas pessoas que fizeram a Revolução Francesa, acreditando que seria possível. A Revolução Industrial também foi feita por homens que achavam que era possível. Então, a coisa está posta novamente. Não admito esse raciocínio de que as revoluções aconteceram e nunca mais acontecerão. Isso é um absurdo para mim. A história é muito dinâmica e há possibilidades de transformar o mundo em um lugar melhor.

É nesse sentido que trago o conceito de Ecorregião. Quantos biomas há no Brasil? A gente tem o Cerrado, a Caatinga, o Pampa, as florestas tropicais, o litoral… uma diversidade de biomas. Cada um tem uma dimensão física diferente. Quem chega a Brasília e vê o Cerrado diz “nossa coisa feia o cerrado”. Não, o cerrado tem uma estética muito bonita. Quem morou lá sabe que, numa época do ano, as coisas nascem de maneira fantástica e isso tem a ver com a relação das plantas com o solo. Na Amazônia, essa conversa é diferente, temos outra singularidade aqui. Seu solo depende da floresta e ela precisa do solo. Existe uma relação simbiótica. Imagina um campo de futebol com a chuva que temos aqui, a capacidade de erodir o solo é poderosa. Por isso, não dá para pensar num projeto homogêneo. Sim, sei que estou pensando no campo da utopia, mas é isso que está posto; ou a gente faz isso, ou a soja vencerá a floresta tropical e, provavelmente, a gente “vai para as cucuias”. A solução é pensar o processo civilizatório de maneira integral.

O que acontece na China é importante, mas nós temos outra situação. Lá tem o partido único, nós temos uma economia de Estado e de mercado ao mesmo tempo; é outra história. Contudo, se a gente não se atinar para que as coisas sejam pensadas de maneira global, nosso futuro será muito estreito. Ao pensar num outro processo civilizatório, a noção de ecorregião é extremamente importante, porque você promove o que Enrique Leff chama de ecodesenvolvimento. Em cada ecorregião, você terá uma perspectiva de ecodesenvolvilmento, isto é, aquilo que será desenvolvido naquela região em função do potencial dos recursos naturais, do solo e das populações que ali estão – é preciso considerar o bioma como um todo, tanto na dimensão natural, quanto cultural. Fazer isso é extremamente difícil, pois temos certos paradigmas na nossa cabeça que informam o que é desenvolvimento e o que não é. Enrique Leff trabalha com três noções: ecorregião, ecotecnologia e ecodesenvolvimento. Vou dar um exemplo: na várzea, não é possível trabalhar com trator. Ponto final. Não tem discussão.

 

– Professor, você gostaria de deixar algum recado?

Queria reafirmar a seguinte ideia: todos nós somos contemporâneos do nosso tempo. A palavra contemporâneo significa ser “do seu tempo”. Somos homens situados e datados. Vocês, que têm vinte anos cada um, vão viver o século XXI todo; eu não. Meu horizonte é mais estreito… é natural, faz parte do ciclo da vida isso. O que eu quero dizer é que esse encontro de gerações é muito importante. Acho que a juventude, de certa maneira, está muito desconectada de questões que são extremamente importantes para seu mundo, mas isso tem a ver com uma construção social também. Essa desconexão não é natural, ela é socialmente construída e, talvez, pela primeira vez na história da humanidade, a gente se encontre de fato na beira do abismo. Todos nós estamos à beira do mesmo abismo. Claro, que nem todo mundo percebe. Teve um senhor que deu um depoimento no filme “Beyond Fordlândia” que representa o protótipo do colonizador que vem do sul. Ele diz “esse mato não tem nada. Esse mato tem que ser derrubado, a gente tem que colocar soja”. Em Humaitá, tem um conflito muito acentuado entre essa corrente migratória que veio do sul e os camponeses do Amazonas que são de racionalidades diferentes. Uma é da racionalidade da floresta derrubada e a outra, da floresta em pé. Nem todo mundo acha que estamos na beira do abismo, mas estamos, independentemente de as pessoas terem consciência disso ou não. Nesse sentido, quem tem uma consciência relativa precisa fazer alguma coisa para não nos precipitarmos nele. Quero que a gente saia do abismo e faça uma inflexão histórica, porque acho que a presença do homem na Terra é importante. A verdade é que o homem é também é um animal. Está na Terra, na ponta da cadeia, e come todos os animais e a natureza, mas é preciso pensar sobre isso. Não dá mais para ser antropocênico. A gente não pode achar que o homem é o animal mais importante. Ele é importante, mas os insetos também são. Um dado que me deixa extremamente triste é a morte social das abelhas, causada pelo homem. Como será o mundo em dez anos sem aquelas que fazem um trabalho gratuito para a gente, que é a polinização? O Brasil, recentemente, liberou os mais diferentes tipos de venenos. As multinacionais e o agronegócio estão muito felizes. Esses dias, vi uma matéria de uns vinicultores do Rio Grande do Sul dizendo “minhas videiras não estão dando mais uvas”, porque o veneno também migra e vai para outros lugares. Assim como os rios voadores. De toda a produção da chuva que cai no Centro-Sul, boa parte é produzida na Amazônia. Está tudo conectado. À beira do abismo, precisamos começar a fazer uma crítica sobre esse modelo de civilização. Não preciso adjetivar o que vai ser a nova sociedade, o que preciso é ter clareza que esse modelo, que não é inclusivo e é devastador para a humanidade e a natureza, precisa ser superado. A primeira tem evidências disso e a segunda tem dado evidências. Acho que a universidade tem um papel importante na produção de outras epistemologias. Por isso, eu me aproximo de Boaventura de Sousa Santos, Edgar Morin, Enrique Leff… porque são intelectuais que estão pensando numa outra teoria do conhecimento, numa outra maneira de pensar o mundo. A maioria das pessoas não se dá conta de que estamos vivendo um momento de esgotamento da razão. É um momento de crise da razão e, para reinventá-la, a gente vai ter que se articular com razões provenientes de outras epistemologias, como a dos indígenas. Se falar isso na Academia, você é colocado no paredão. Sua epistemologia tem a ver com uma outra concepção de natureza, trabalho, política, sobrenatural… é uma outra compreensão do mundo. A grande questão para mim, hoje, é: como a gente desconstrói essa racionalidade? Não creio que deva ser toda jogada no lixo, mas ressignificar por dentro tanto quanto for possível. Como a gente incorpora esse novo conhecimento que a gente critica? Como se internaliza os saberes tradicionais?

Outra coisa importante de pontuar é que as ciências sociais e as ciências naturais não podem mais trabalhar de maneira separada. Ou produzimos um encontro entre as ciências, ou vamos continuar produzindo o pensamento simplificador. Esse é o exemplo do homem especialista, aquele que não consegue compreender a complexidade do mundo. É preciso aproximá-las para fazermos ciência, considerando o planeta que nós temos. Sem considerar isso, não vai dar certo. Os recursos naturais estão sendo dilapidados, inclusive por ciências em força produtivas. Uma parte substantiva é empregada, por exemplo, na produção dos transgênicos. Precisamos fazer uma ressignificação desse paradigma hegemônico, não só aproximando ciências da natureza com as ciências sociais, como se aproximando também, e muito, na articulação com essa diversidade do mundo. O Boaventura de Souza Santos, quando escreve sobre as epistemologias do Sul, diz que estas se contrapõem as epistemologias do Norte, que são hegemônicas. Contudo, ao desenvolver esse programa de ciência, ele fala algo que considero extremamente importante, que é: a gente não pode, na altura desse processo civilizatório, colocar na lata de lixo as mais diferentes experiências que acontecem no Sul ainda e são muito interessantes para se pensar numa sociedade inclusiva. O capitalismo é, por natureza, excludente. O camponês que sai da Amazônia, sai da várzea e vai para a cidade de Manaus, a primeira coisa que ele vai precisar é daquilo que todo mundo corre atrás – a mercadoria dinheiro. Sem isso, ele não faz nada na cidade, nem no campo faz. Uma das dimensões do nosso abismo é fazer essa articulação e tornar ela um pouco universal. Acredito que a gente possa conseguir salvar a Terra, salvar a Gaia e nos salvar.

 

 

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