Para entender a região onde Dom Phillips e Bruno Pereira desapareceram

Policiais Federais, chegam para reforçar as buscas e investigações do desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, na cidade de Atalaia do Norte, estado do Amazonas, Brasil, quarta-feira 08 de Junho de 2022.
O episódio escancara problemas sociais ligados à situação fronteiriça em Tabatinga, que engloba Brasil, Colômbia e Peru

O Brasil ocupa a terceira posição no ranking de países com as maiores extensões de fronteiras internacionais – faz divisa com todos os países da América do Sul com exceção de Chile e Equador, totalizando 16,885 km. Por conta da vastidão de seu território de fronteira, as políticas públicas não são capazes de dar conta dos inúmeros problemas ali existentes. Dentre as questões mais notórias, podemos listar o narcotráfico, o contrabando de mercadorias, armas, carros, altos índices de violência e a falta de desenvolvimento social nessas regiões.

No entanto, esses problemas não estão presentes na totalidade de nossas fronteiras, cada uma delas possui situações específicas e geram diferentes conflitos socioambientais. Na tríplice fronteira com a Colômbia e Peru, no estado do Amazonas, questões como acesso a serviços básicos, presença de crime organizado, tráfico de pessoas, ondas migratórias, grilagem, extração de madeira e garimpos ilegais permeiam a realidade da população. Essa situação é possível por conta da geografia peculiar da região, que conta com diversas vias hídricas e extensas porções de floresta amazônica que dificultam o monitoramento e a proteção das fronteiras nacionais.

Tríplice fronteira no Arco Norte

A cidade de Tabatinga é um caso interessante para compreender a situação das fronteiras internacionais do Brasil. Situada no interior do estado do Amazonas, na Microrregião do Alto Solimões, Tabatinga apresenta uma conurbação com a cidade colombiana de Letícia. Interligadas pela Avenida da Amizade, as cidades se fundem, extrapolando as atribuições legislativas de ambos os países. Isso propiciou a criação de regras específicas para ambas as cidades, que, infelizmente, não são capazes de dar cabo das reais necessidades de suas populações.

Dados do IBGE mostram que dos 64 mil habitantes, apenas 2700 possuem carteira de trabalho assinada, o que representa 4,8% da população, enquanto 48,2% dos tabatinguenses sobrevivem com até meio salário mínimo por mês. Quanto a questões relativas a saúde e urbanização, o município apresenta apenas 21,6% das residências com saneamento sanitário adequado, 8% das vias estão devidamente pavimentadas, e a taxa de mortalidade infantil é de 20,88 óbitos para cada mil nascidos vivos, muito acima da média nacional de 12,8.

A situação peculiar encontrada nessa fronteira, a falta de presença do estado – brasileiro, colombiano e peruano – somadas à geografia amazônica, propicia a entrada de drogas, armas, entre outros produtos ilegais, frutos do crime organizado, no território brasileiro.

Se no Sul os corredores para entrada de entorpecentes são controlados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), principal facção criminosa brasileira, no Norte é dominada por seus rivais, a Família do Norte (FDN). A facção nortista esteve diretamente envolvida nos massacres praticados em presídios brasileiros nos últimos anos, voltados contra integrantes do PCC.

A rivalidade entre os narcotraficantes brasileiros se dá pelo domínio do mercado bélico ilegal e da venda de drogas em território nacional e internacional, assim como as alianças com organizações criminosas colombianas, peruanas e bolivianas – parcerias responsáveis por irrigar o mercado ilegal brasileiro, o que financia, em contrapartida, atividades de guerrilheiros, como era o caso das FARCs na Colômbia. Esse cenário colabora, em grande escala, para a alarmante estatística de 60.000 mortes violentas no Brasil todos os anos.

Além do faroeste moderno protagonizado pelos narcotraficantes, cabe ressaltar a situação de povos indígenas que vivem na região. Os conflitos socioambientais gerados pela peculiaridade geográfica e a negligência estatal forçam a migração de índios para pequenos centros urbanos, os quais partem em busca de atendimento médico, alimento e demais mantimentos – segundo matéria d’O Estado de São Paulo, muitos desses imigrantes, que partem em busca de benefícios com a promessa de regresso, não conseguem voltar a seus locais de origem por falta de dinheiro para a viagem.

Essa questão é estritamente ligada à falta acesso à cidade, que se dá através de um pequeno aeroporto e por vias fluviais. Não há estradas que liguem o município à Manaus, capital do Amazonas.

Um caso particularmente preocupante é do Povo Ticuna, maciçamente presente na região do Alto Solimões, que viu sua condição de vida se deteriorar com a ausência do estado. A reportagem do Estadão, intitulada Favela Amazônia, mostra a realidade desumana vivida pelos Ticuna.

Segundo o jornal, a proximidade de suas aldeias à Tabatinga, principal cidade da região, propiciou o nascimento de periferias indígenas com graves problemas sociais. A escassez de oportunidades de trabalho e assistência básica faz com que muitos deles tenham de “caçar” seu sustento nos lixões e aterros sanitários da cidade, disputando seu alimento diretamente com urubus e demais seres humanos em situação de fragilidade social.

Discussão

Recentemente, o Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada (IPEA), desenvolveu estudos a respeito da situação fronteiriça brasileira. No terceiro volume, intitulado Fronteiras do Brasil: uma avaliação do Arco Norte, o estudo conclui que a presença de uma população diversificada, social e culturalmente, que carrega consigo práticas sustentáveis de manejo da terra e da floresta, deve ser levada em conta na elaboração de políticas públicas relativas às fronteiras amazônicas, uma vez que o ambiente não permite a reprodução de estratégias de desenvolvimento adotadas em outras partes do país com a mesma eficácia.

No entanto, os autores também elencaram problemas já mencionados neste texto, como a precária estrutura urbana; a falta de vias eficientes de transporte e integração com centros comerciais; a falha comunicação entre os agentes de segurança, que carecem de integração e compartilhamento de informações estratégicas para manter a segurança e a soberania nacional dos países na fronteira; a falta de interesse do Estado em promover o desenvolvimento econômico e social da região, aproveitando a biodiversidade local, em prol da simples administração e ocupação da área; a precariedade da saúde, que conta com baixo auxílio público, falta de saneamento básico e a presença de lixões a céu aberto; e por fim, a situação venezuelana que tem gerado grandes ondas migratórias e conflitos nas fronteiras com diversos países.

A situação das fronteiras brasileiras demanda maior atenção de seus líderes, pois estão diretamente ligadas aos problemas no restante do território nacional e internacional – como é o caso do narcotráfico, diretamente relacionado com o cenário de violência, superlotação de presídios, e a depredação da vida de pessoas que se tornam dependentes de drogas como o crack e a cocaína, sendo a última o principal produto a cruzar as fronteiras no Arco Norte. Essa situação ressalta a importância de debates com a presença de acadêmicos, lideranças governamentais e sociais, assim como a sociedade civil, para a solução desses problemas.

Localizada ao longo dessa fronteira amazônica do Brasil com o Peru está a Reserva Indígena do Vale do Javari, a segunda maior do país, com 85.000 quilômetros quadrados – quase tão grande quanto Portugal. A fartura tropical do Javari o tornou um ponto de acesso para caçadores, pescadores e madeireiros ilegais, provocando violentos conflitos entre os habitantes indígenas e as comunidades ribeirinhas que se opuseram à criação da reserva em 2001. É também uma rota de contrabando para traficantes de cocaína que lucraram com falta de presença estatal e batalha pelo controle das rotas de contrabando entre Brasil, Peru e Colômbia.

Foto aérea de rio no Vale do Javari. A água é amarronzada, cercada por floresta verde escura.

O Amazonas, estado onde está localizado o vale do Javari, é agora o mais violento per capita do Brasil após um aumento de 54% no número de assassinatos no ano passado. (Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude)

Este foi o cenário em que o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Araújo Pereira desapareceram no domingo. Eles viajavam pelo Rio Itaquaí, principal via fluvial de acesso ao vale do Javari. Os dois tinham sido vistos pela última vez quando chegaram à comunidade São Rafael por volta no domingo 5. No local, eles conversaram com a esposa do líder comunitário apelidado de “Churrasco”. De lá, eles partiram rumo a Atalaia do Norte, viagem que dura aproximadamente duas horas, mas não chegaram ao destino.

“Os dois se deslocaram com o objetivo de visitar a equipe de Vigilância Indígena que se encontra próxima à localidade chamada Lago do Jaburu (próxima da Base de Vigilância da FUNAI no rio Ituí), para que o jornalista visitasse o local e fizesse algumas entrevistas com os indígenas”, diz o texto divulgado pela Univaja, na segunda-feira 6.

Eles viajavam com uma embarcação nova, de 40 cavalos, e 70 litros de gasolina, o suficiente para a viagem. Ainda no domingo, a Univaja começou as buscas. Sem obter sucesso, na segunda-feira, a organização indígena acionou as autoridades e divulgou nota à imprensa.

Um suspeito foi preso em conexão com o desaparecimento, embora a polícia diga que ainda não encontrou nenhuma evidência de que um crime tenha ocorrido. O fotojornalista Edmar Barros está na região acompanhando as buscas para a Amazônia Latitude.

No Vale do Javari, ao longo da tríplice fronteira, a produção de coca aumentou quase 20% entre 2019 e 2020, para 61.777 hectares no Peru, o segundo maior produtor depois da Colômbia, segundo dados das Nações Unidas (ONU). Por sua vez, o crescente comércio de drogas aumentou o perigo e os conflitos na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, em meio à disputa de cartéis colombianos e brasileiros pelo controle do acesso ao rio Amazonas para enviar sua cocaína ao lucrativo mercado europeu.

Mas a região de fronteira também é o lar de aproximadamente 6.000 indígenas pertencentes a 26 etnias, 19 das quais vivem isolados. Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro colocou-os em situação ainda mais vulnerável. Seu governo emite opiniões e defende políticas favoráveis às atividades extrativistas que destroem a floresta e seus povos, inclusive ampliando o espaço para a atuação de gangues criminosas. Grupos que defendem os direitos ambientais e indígenas há muito argumentam que a postura pública de Bolsonaro em relação aos territórios indígenas encorajou a invasão de terras indígenas e unidades de conservação com impunidade.

Além disso, no Congresso brasileiro tramita uma legislação que abriria terras indígenas para indústrias extrativas, como mineração e exploração madeireira. Isso deixaria o Vale do Javari, e jornalistas e indigenistas como Dom Phillips e Bruno Araújo, em ainda maior perigo.

Imagem em destaque – Policiais Federais chegam para reforçar as buscas e investigações do desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, na cidade de Atalaia do Norte, estado do Amazonas, Brasil, quarta-feira 08 de Junho de 2022. Edmar Barros/ Amazônia Latitude

Editado originalmente em 28/05/2019. Adaptado em 09/06/2022
 
 

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