Com agroflorestas, saímos de uma monocultura prejudicial ao meio ambiente, diz pesquisador

Um agricultor trabalha em um cultivo de plantas baixas em solo escuro.
Carlos Eduardo Young, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica o que são agroflorestas, sua relação com a história das comunidades tradicionais e como essa forma de cultivo pode gerar um cenário sustentável para o agro

O modo predominante da agricultura brasileira consiste no monocultivo, na mecanização e no empobrecimento do solo. Especialistas avaliam que a monocultura não se sustentará no futuro, havendo a necessidade de uma retomada de uma alternativa antiga de produção de alimentos no país: os sistemas agroflorestais (SAFs).

Um dos defensores da expansão de agroflorestas é Carlos Eduardo Young, professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor colaborador dos programas de pós graduação em Ciências Ambientais da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e de pós-graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

“Nem todo sistema de cultivo vai ser possível com o sistema agroflorestal”, afirma Young. “Mas simplesmente precisamos sair dessa tendência atual do monocultivo e da pecuária extensiva da eliminação da floresta.”

O pesquisador acredita que a união entre o desenvolvimento tecnológico contemporâneo e a ciência tradicional pode promover uma maior possibilidade de acertos na criação de um sistema de agro inclusivo, rentável e não prejudicial ao meio ambiente.

“Se conseguirmos combinar essas duas formas de conhecimento, vamos ter um resultado muito melhor. Ao invés de fazer só uma coisa, vamos usar o espaço de forma heterogênea, combinando usos diferentes da terra com tradições diferentes. E essa diversidade vai gerar uma probabilidade muito maior de acerto”, defende.

O professor Carlos Eduardo Young, da UFRJ, fala em um microfone em palestra. Ele usa uma camisa azul de mangas curtas.

“Os sistemas agroflorestais são mais antigos que os sistemas de cultivo em terra aberta”, diz Carlos Eduardo Young, da UFRJ (Bira Soares/Flickr)

Em entrevista concedida à Amazônia Latitude para o episódio 14 do Latitude Podcast, Carlos Eduardo Young ressalta a importância do respeito e da proteção às comunidades tradicionais para que os SAFs se tornem uma tendência.

De acordo com o professor, o conhecimento sobre a floresta, as plantas e os melhores usos de cada uma delas faz parte dessas comunidades e foi construído e repassado por elas ao longo dos séculos.

O que são sistemas agroflorestais?
Sistemas Agroflorestais são sistemas que combinam determinado tipo de uso agrícola ou pastoril da terra com a preservação de árvores de florestas. Ou seja, é uma simulação do que, na natureza, é conhecido como uma mata de transição, um sistema que mantém um conjunto significativo de áreas florestadas, mas usa áreas não florestadas para outros fins.

Pode ser um uso de cultivo, que seria o nosso sistema de cultura com aproveitamento florestal. Pode ser, também, um sistema que combine com pasto, que seria o sistema silvo-agro-pastoril, em que há um pouco de pastagem e um pouco de cultivo. E pode ter só silvo-pastoril. Mas a essência é manter uma estrutura florestal junto a outro tipo de uso.

É importante que essa floresta retida seja o mais próximo de uma vegetação nativa e não, simplesmente, um consorciamento de eucalipto com soja. Estamos falando de uma estrutura que vai manter uma parte da biodiversidade nativa e o aproveitamento econômico.

Como surgiu esse modo diferente de pensar a floresta? E como a tecnologia do século XXI afetou os sistemas agroflorestais?
Os sistemas agroflorestais são mais antigos que os sistemas de cultivo em terra aberta. A agricultura se inicia de uma maneira muito primitiva, muito rude. Ao longo do tempo, as diversas civilizações foram domesticando as espécies naturais.

No caso da floresta brasileira, as civilizações ameríndias originais trabalharam por gerações desenvolvendo produtos que encontravam na natureza e se adaptando ao seu uso mais adequado, como a mandioca. Isso é resultado de um longo processo natural, semelhante ao que acontece com espécies florestais. A transição do ser humano de um estado de extrativismo para um ser humano agrícola passou, necessariamente, por um estágio agroflorestal. Isso era vantajoso, porque afetava relativamente pouco o ambiente. Não havia necessidade de fazer a trabalhosa remoção completa da cobertura florestal, que leva à perda da biodiversidade.

O cacau, no sul da Bahia, é um bom estudo de caso. Ele entrou em colapso por causa de uma praga, a vassoura de bruxa, e por questões de preço. Mas enquanto o sistema de Cabruca funcionou no sul da Bahia, havia uma excelente combinação de cacau com a Mata Atlântica remanescente. O colapso do cacau, por sua vez, levou ao colapso também da Mata Atlântica. Hoje há um processo de degradação e empobrecimento agrícola dessa região, onde foi instalado um pasto de baixa produtividade e, eventualmente, uma silvicultura de monocultivo de eucalipto, que gera baixo desenvolvimento, pouco emprego e alto impacto ambiental.

Por que sistemas agroflorestais estão se mostrando mais produtivos do que monocultura e pecuária extensiva?
Em primeiro lugar, é muito importante não fazer generalizações absolutas. Nem todo sistema de cultivo vai ser possível com o sistema agroflorestal. Mas simplesmente precisamos sair dessa tendência atual do monocultivo e da pecuária extensiva da eliminação da floresta.

Dito isso, um sistema agroflorestal tem vantagens do ponto de vista da produção. Em primeiro lugar, é um sistema ecologicamente diversificado: tanto pelo que planta, ou cria, quanto pelo uso econômico das espécies arbóreas remanescentes. Isso dá uma segurança maior ao produtor, porque ele não está colocando todas as fichas em um produto só. Esse é o problema do monocultivo. Frente a uma crise de queda de preço internacional, ou um problema fitossanitário, por exemplo, o risco associado a esse produto é muito maior.

Do ponto de vista ambiental, os SAFs são excelentes formas de recuperação de áreas degradadas, onde o monocultivo, a pecuária extensiva e o uso predatório da terra exauriram a capacidade natural produtiva. Recuperar a produtividade garante uma sustentabilidade a longo prazo muito maior do que no sistema de cultivo. Além disso, um SAF possui maior biodiversidade do que o sistema convencional. Isso significa que há mais polinizadores e controladores naturais de pragas, como morcegos, pássaros e abelhas. Essa diversidade aumenta a produtividade a longo prazo, lembrando que a conta deve ir além do que dá maior retorno na próxima safra.

De que forma sistemas agroflorestais combinam conhecimentos ditos “científicos” com os chamados de “tradicionais”?
Existe uma falsa visão hoje de que a agricultura dos povos originários era extremamente rudimentar, sem conhecimento, sem tecnologia. De repente, a ciência moderna vem e descobre o caminho da produtividade. Isso não é verdade. Comunidades tradicionais, como o próprio nome diz, estão tradicionalmente trabalhando nessa região há muito mais tempo e, portanto, têm um conhecimento empírico muito maior da diversidade de espécies presentes e de formas de cultivo.

No cultivo do milho na América Latina, por exemplo, comunidades tradicionais sabem qual espécie é mais adequada para um clima seco ou úmido, uma altitude maior ou altitude menor, um solo com pH ácido ou alcalino. A própria etimologia dos nomes indígenas das espécies já traz em si a fórmula de uso do produto: copaíba quer dizer uma árvore que tem um óleo forte, “pau de óleo”, literalmente. Esse conhecimento é transmitido de forma diferente da ciência moderna, com seus catálogos, artigos, acervos e descrições técnicas. Nas comunidades tradicionais, a preservação do conhecimento está ligada à preservação do ambiente como um todo.

Quando o conhecimento tradicional e científico se juntam, o resultado é muito mais eficiente. Ninguém está dizendo que o avanço científico agronômico deve ser desprezado. Ao invés de fazer só uma coisa, vamos usar de forma diferente o espaço de forma heterogênea, combinando usos diferentes da terra com tradições diferentes. E essa diversidade vai gerar uma probabilidade muito maior de acerto.

O lado reverso dessa história: o conhecimento desses povos está ligado às suas tradições culturais e linguísticas. Toda vez que um povo nativo desaparece, perdemos um pedaço dessa biblioteca, perdemos uma possibilidade a mais, um conhecimento que foi acumulado tradicionalmente por milhares de anos. Por isso, é importante não apenas preservar os espaços, a geografia física, mas também a geografia humana. Isso é de interesse de todos nós.

O que os estudos recentes dizem do potencial socioeconômico das agroflorestas?
O etnoconhecimento e a etnobotânica são bibliotecas de conhecimento tradicional. Não são feitas de livros, como as de conhecimento científico, mas de gente. A passagem desse conhecimento é uma tradição oral. Hoje existe uma tendência de valorização desses saberes, o que tem a ver com o melhor aproveitamento dos produtos florestais não-madeireiros, como a castanha-do-pará e o açaí. A erva mate, na Mata Atlântica. Há um conjunto grande de produtos que são fruto da floresta e podem ser aproveitados de uma maneira inteligente. Mas, para isso, o investimento em ciência e tecnologia é essencial. Há um mudo de possibilidades se caminharmos em direção à valorização da pesquisa, com o aproveitamento do conhecimento tradicional.

No aspecto econômico, o que impede que sejam implementadas mais SAFs?
Todo produto perene requer uma formulação de expectativas de longo prazo. Produtos de SAFs só ficam disponíveis após anos e, por isso, precisam de crédito e garantia de preço mínimo, já que todo ciclo econômico passa por oscilações. Pode acontecer de, quanto o produto ficar pronto, haver uma crise internacional em que o preço está lá embaixo – daí a garantia de preço mínimo. E o crédito se faz necessário porque é preciso sobreviver até o produto ficar pronto. É mais seguro do ponto de vista financeiro ganhar logo com sistemas de monocultivo, mesmo sabendo que, no longo prazo, ganha-se menos. Assim, a saída se dá pela equalização dos dois sistemas.

Como a destruição da floresta degrada os serviços ecossistêmicos, poderiam ser instaurados pagamentos por esses serviços. Os próprios agricultores de monocultivo transfeririam recursos aos produtores de SAFs, que protegem a floresta junto com o seu cultivo. O drama jaz no fato de que o grupo que domina o país está ligado à visão predatória, colonialista, de lucro máximo no curto prazo, para o enriquecimento de poucos. A política agrícola, que deveria ser voltada para sistemas de baixo carbono, incentiva a mecanização, o consumo de agrotóxicos, o monocultivo e a pecuária extensiva.

Você enxerga um futuro onde a regra sejam sistemas agroflorestais e não outras formas de cultivo?
O conhecimento tradicional deve ser mais valorizado e conhecido. Isso não significa ir contra a ciência convencional, muito pelo contrário: é empoderar a ciência tradicional com o que chamamos hoje de soluções baseadas na natureza. Há uma explosão de possibilidades apenas com base na observação da natureza. Além disso, precisamos de sistemas agropecuários mais inclusivos socialmente. Agro não é pop, mas mecanização, agrotóxico, pastagem. O sistema convencional de agricultura é desempregador e resultou em 3,5 milhões menos vagas nas últimas duas décadas. Precisamos de um agro socialmente inclusivo, que não enriqueça um fazendeiro às custas da exclusão social.

Os sistemas agroflorestais são muito mais intensivos em mão de obra, porque a capacidade de mecanização é muito menor. Ainda por cima, adicionam valor aos produtos, porque o consumidor também passa a proteger toda a cadeia produtiva. Vejo um enorme espaço para desenvolvimento das agroflorestas, especialmente se combinadas com a tendência dos produtos orgânicos e um crescimento significativo de pessoas que querem se alimentar melhor.

Esses elementos conversam com a importância dos serviços ecossistêmicos. Está cada vez mais claro que vivemos de uma forma integrada, e manter o clima planetário e estabilizar fluxos hídricos passa pela forma que a terra é usada. As queimadas são, de longe, a maior fonte de emissão brasileira de gases de efeito estufa. Isso gera problemas significativos de alteração dos fluxos hidrológicos, já que a floresta é rainha das chuvas, produzindo os rios voadores. Estamos destruindo a nossa riqueza agrícola. O agro precisa entender que proteger a floresta é proteger a ele próprio.

Ninguém aqui é contra a agricultura. Não queremos substituir todo o monocultivo por agroflorestas. Mas queremos uma agricultura mais inteligente, que adicione valor aos produtos, gere mais empregos, mais tributos. Espero que nosso futuro caminhe para uma agricultura melhor, e não uma cada vez mais barata. Quero um futuro de diversidade. Quero um futuro onde a regra seja termos muitas regras convivendo ao mesmo tempo. Essa é a mensagem do sistema agroflorestal.

Carlos Eduardo Young é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Também é professor colaborador dos programas de pós-graduação em Ciências Ambientais da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e de Ciências do Ambiente e Sustentabilidade da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Doutor em Economia pela Universidade de Londres – University College London, concentra sua pesquisa em Economia do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais.
Foto de destaque: Mansado Louis/Unsplash

 

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