Patentes de conhecimentos tradicionais estão nas mãos de países ricos

Foto com zoom da Phyllomedusa bicolor, rã verde da Amazônia cuja secreção é de interesse interesse de corporações de países ricos para patentes.
Estudo da Universidade Federal de Juiz de Fora revela apropriação de recursos genéticos de rã da Amazônia e reforça a necessidade de reformulação de leis de Propriedade Intelectual.

Entre os dias 14 e 29 de março, Genebra, na Suíça, recebeu delegações de quase 200 países para a elaboração de um acordo que pode significar para a biodiversidade do planeta o mesmo que o Acordo de Paris significou para a proteção do clima. O evento foi a segunda parte das negociações de preparação para a 15ª Conferência de Partes (COP-15) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) da Organização das Nações Unidas (ONU), que acontecerá em Kunming, na China, no terceiro trimestre deste ano.

A CDB foi criada em 1992, como um mecanismo legal internacional para o uso sustentável e a conservação da diversidade biológica.

Em 2022, no primeiro encontro presencial das partes após a pandemia, a principal discordância foi o uso de dados genéticos em formato digital — os DSI, na sigla em inglês. Representantes de países em desenvolvimento alegaram no encontro que a atual legislação internacional deixa brechas para que grandes organizações façam uso incorreto da biodiversidade, sem ganho aos países mais pobres.

A apropriação de dados genéticos feita por empresas estrangeiras é uma realidade no Brasil. Os resultados do estudo “Biodiversidade, conhecimento tradicional e direito de patente: o estudo de caso da Phyllomedusa bicolor, publicado na Revista Direito GV, revelam o interesse de corporações de países ricos na secreção da Phyllomedusa bicolor, uma rã da Amazônia conhecida como rã Kampô.

Após análise do banco de dados da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), o professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autor da pesquisa, Marcos Vinício Feres, encontrou onze patentes concedidas a empresas e pessoas de países como França, Rússia, Canadá e Estados Unidos. Os conhecimentos sobre os benefícios medicinais da rã Kampô, contudo, vêm de pelo menos quinze povos indígenas do sudoeste da Amazônia que fazem uso da secreção do animal.

Para Feres, casos semelhantes aos da rã Kampô são um aprofundamento dos processos de colonização. Há uma transferência de recursos genéticos naturais e conhecimentos tradicionais do Sul para o Norte Global, avalia o pesquisador.

“Os resultados desta pesquisa reforçam esse processo colonial que ainda persiste em nossa história contemporânea. Afinal, países desenvolvidos pilham recursos e conhecimentos de países em desenvolvimento para continuarem a exercer o domínio econômico e político”, diz Feres.

No estudo, o professor cita a filósofa e ativista indiana Vandana Shiva para ressaltar que “a resistência aos monopólios de patentes é um aspecto importante do movimento contemporâneo de descolonização”.

Um dos objetivos da pesquisa era analisar se a legislação internacional sobre patentes e biodiversidade contribui para a apropriação de conhecimentos tradicionais, como os relativos à rã Kampô.

Feres vê nos dados encontrados evidências de que a CDB não é seguida com eficiência. “A pesquisa demonstra uma escolha de priorização das normas de propriedade intelectual sobre as normas de proteção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais”, argumenta.

“Embora a Convenção sobre Diversidade Biológica tenha estabelecido um padrão de proteção aos recursos genéticos naturais e ao conhecimento tradicional, as evidências empíricas reforçam o quão precária tem sido a efetividade da Convenção se comparada com a efetividade do TRIPS”, afirma o professor da UFJF. O TRIPS é a sigla em inglês para o Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, de 1995, que define padrões globais de proteção de patentes.

Além dos casos envolvendo animais, como a rã Kampô, o diretor do Museu da Amazônia (MUSA), Ennio Candotti, chama atenção para episódios envolvendo patentes de medicamentos feitos com DSI de plantas. “A questão se torna mais complexa quando se trata de fitoterápicos, que, uma vez testados em sua eficácia, são reproduzidos/copiados por engenharia genética, in vitro, pelos laboratórios”, explica.

Essa cópia genética acontece, também, em outros países em desenvolvimento, recebendo atenção especial na COP-15 como um tipo de “biopirataria”. Uma das alternativas à ineficácia das legislações internacionais discutidas no evento em Genebra em março deste ano veio de Pierre du Plessis, representante da delegação da Namíbia.

Du Plessis pediu a elaboração de um mecanismo de compensação financeira aos países de onde os dados e as descobertas vieram, pois a legislação atual permite que empresas farmacêuticas com patentes não compartilhem seus lucros.

A proposta não recebeu apoio de todas as delegações. Após discordâncias, diversos representantes solicitaram a realização de uma nova reunião antes da COP-15, para que tenham mais tempo para analisar as proposições do acordo.

Assim como proposto pelo delegado namibiano em Genebra em março, Candotti defende o pagamento de royalties (quantia paga ao proprietário de um bem ou conhecimento por seus direitos de uso) pela utilização de conhecimentos tradicionais e da biodiversidade pelo mercado.

O diretor do MUSA acrescenta, contudo, que o pagamento deve ser feito a um fundo controlado pelas comunidades indígenas em vez de a um único povo, visto que é difícil saber, com certeza, a origem de um conhecimento.

“Muitos conhecimentos são compartilhados por diferentes etnias/comunidades”, explica.

Para Feres, da UFJF, a questão vai além de mecanismos de compensação financeira e está diretamente relacionada à necessidade de reconhecimento e respeito à autonomia dos povos detentores de conhecimentos tradicionais.

“O desafio é o de convencer a todos os agentes envolvidos que conhecimentos tradicionais, embora não estejam inscritos na dinâmica do conhecimento científico eurocêntrico, devem ter status e relevância equivalentes”.

O pesquisador acredita que resultados como os obtidos em seu estudo são prova concreta para que agentes políticos e diplomáticos revisem, em nível nacional e internacional, legislações e acordos que prejudicam os interesses nacionais relativos à biodiversidade e à conservação.

Imagem em destaque: Phyllomedusa bicolor. Ediego Batista/iNaturalist.org.
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