Quem são? O que querem? A percepção da sociedade brasileira sobre indígenas

Close do rosto de um homem indígena de cabelos curtos e escuros, olhos castanhos, que olha para longe.
Foto: Kiyoshi/Unsplash
“Relatório Povos Tradicionais”, do Ipsos, solidifica que a desinformação sobre povos tradicionais reina no Brasil

Povos tradicionais e indígenas não costumam ser uma pauta de interesse da sociedade brasileira — a não ser por uma parcela da população historicamente mais engajada com essa e outras pautas sociais e ambientais. Conhece-se muito pouco sobre a organização dos povos indígenas, o movimento pelos direitos indígenas, agentes de apoio e proteção, sua capacidade de diálogo e seu histórico de resistência.

Não é exatamente novidade que esta seja a norma no Brasil. Um estudo realizado pela Ipsos para a Amoreira Comunicação, entre os dias 26 de agosto a 9 de setembro de 2021, coloca no papel como é a percepção dos brasileiros em relação aos povos indígenas, detalhando minuciosamente como são enxergados pela população geral e formadores de opinião.

O “Relatório Povos Tradicionais”, publicado em 4 de abril deste ano, foi desenvolvido no contexto de diferentes acontecimentos públicos – desde a pandemia de coronavírus à COP26 – que perpassam temas relacionados aos indígenas do Brasil. O texto aborda questões ambientais, de desinformação, a inclusão de povos tradicionais na economia e sociedade, representatividade e as principais bandeiras da causa indígena.

O objetivo da pesquisa era mapear as tendências de percepções e de pensamentos dos entrevistados sobre esse “outro”, seu lugar na sociedade brasileira, as causas indígenas, atuação política e a relação desses povos com a agenda climática.

Para isso, foi usada uma metodologia qualitativa, que busca entender valores, crenças e pensamentos sobre determinados assuntos. Ou seja, a abordagem estuda aspectos subjetivos. O material foi colhido por meio de entrevistas em profundidade, em que um moderador ou moderadora conversou individualmente com cem participantes por 60 minutos.

Os participantes foram distribuídos entre dois grupos, denominados população geral (eleitores conservadores, com variedade de posicionamentos políticos, de todas as idades e nove estados diferentes) e formadores de opinião (economistas, empresários, políticos e jornalistas).

Algumas conclusões são perceptíveis no cotidiano. Por exemplo, o próprio termo “povos tradicionais” é uma incógnita. Especialmente entre a população geral, confunde-se com tudo o que pode ser visto como “tradicional” e ligado a comunidades com raízes antigas — inclusive, por exemplo, os portugueses colonizadores e imigrantes.

No guarda-chuva, quilombolas são ainda menos compreendidos e conhecidos. São mais associados a uma questão de herança da história escravocrata, questões raciais e identitárias.

Sobre os indígenas, foco do estudo, os entrevistados demonstraram insegurança, pontuando o distanciamento e a pouca informação para embasar suas opiniões. Por isso, a pesquisa afirma que “o lugar dos povos indígenas na sociedade brasileira é, de fato, o lugar do outro — um outro desconhecido, estranho e que incomoda”.

O lugar do indígena, na verdade, está associado ao seu deslocamento em relação à sociedade: deslocados do sistema capitalista dominante, tanto na produção quanto no consumo, e distintos em seus direitos e questões identitárias.

Os direitos de povos indígenas tendem a ser vistos em “contraposição” aos de outros segmentos da população geral — a perspectiva, portanto, é de um espaço de disputas. “A posição dos povos indígenas é mais associada a demandas que prejudicam os demais segmentos da população que a contribuições atuais efetivas”, afirma a pesquisa.

Desinformação

A desinformação é um dos principais fatores que influenciam a percepção sobre povos indígenas pela sociedade. As entrevistas do relatório mostram que a consciência da diversidade e da complexidade do debate levam a um interesse maior por informação. Assim, quanto menos informados, menor é o interesse, criando um ciclo vicioso.

A desinformação contribui sobretudo para a simplificação do tema. Situações específicas de alguns povos indígenas (como indígenas pró-garimpo, por exemplo) são projetadas para o todo, e os povos indígenas são vistos como um grande bloco com um comportamento genérico.

Outro resultado é o olhar que situa o indígena em uma escala de menor ou maior assimilação cultural na sociedade brasileira. Com o acesso a iPhones, Internet e carros, o consumo tende a ser visto como indicativo de assimilação cultural. Quanto maior o consumo, “menos indígena” a pessoa é. São constantes no estudo, mas essas percepções variam um pouco de acordo com a característica do entrevistado.

População geral

  • Generalizações sobre o indígena: nem todos sabem mencionar a diversidade de identidades culturais entre os mais de 300 povos indígenas brasileiros.
  • Concepções formadas a partir de fragmentos de informação: títulos de reportagens ou publicações em redes sociais.
  • Tendem a projetar expectativas ocidentais: esperam que os indígenas, individualmente e como sociedade, “evoluam” e fiquem mais parecidos consigo mesmos.
  • Visão estática de cultura: dificuldade em compreender a cultura indígena como algo vivo, com a contribuição social fixada no passado (legados relativos a língua, comida e hábitos). Pouco são mencionadas suas contribuições para o mundo no presente, como, por exemplo, de saberes relacionados ao manejo da natureza.

No entanto, a pesquisa também destaca que em mais de um terço da amostra de eleitores conservadores existe um movimento de simpatia aos povos indígenas. Isso se relaciona a uma visão mais curiosa desses povos. Compreendem a força de sua ligação com a terra, e alguns também mencionam a importância da coletividade. Na amostra, os mais jovens (até 25 anos) tendem a ser mais empáticos.

Economistas

  • Percepção de marginalização social: a narrativa sobre os povos se concentra nos problemas de qualidade dos serviços de bem-estar social.
  • Suposição de um lugar “funcional” para os povos indígenas: falam de uma possibilidade de contribuição positiva dos povos indígenas, mas essa perspectiva busca dar legitimidade à diversidade cultural por meio de seu valor econômico, para que os povos dependam menos da ação do Estado.
  • Viés pessimista sobre a assimilação cultural: poucos economistas entendem que os povos indígenas podem incorporar os códigos da sociedade brasileira e formar pontes sem perder sua identidade.

Empresas

  • Associação do modo de vida fora do mercado com a pobreza: segundo empresários, a necessidade de auxílio governamental e carência em geral reforçam as situações de vulnerabilidade dos povos indígenas.
  • Saberes relacionados ao meio ambiente: muitos entrevistados tangenciaram o conceito de bioeconomia, estabelecendo a possibilidade de um desenvolvimento econômico sustentável dos povos tradicionais em parceria com a sociedade. Porém, a maioria das empresas entrevistadas não têm ações relacionadas aos povos tradicionais.

Um dos entrevistados da amostra de empresas afirmou: “Você não tem escolha, as empresas brasileiras que exportam, se elas não se mexem, não vão conseguir mais exportar produtos, porque ninguém vai comprar esses produtos daqui a pouco”.

Políticos

  • Baixa força dos povos indígenas no jogo político: por serem uma minoria numérica, os indígenas representam poucos votos e, portanto, têm pouca força política atualmente. Políticos também destacam a dificuldade de dar mais ressonância às questões indígenas nos debates, apontando desinteresse entre os demais políticos.
  • Lugar de fala: no âmbito legislativo federal, políticos reconhecem a importância da organização e da presença dos povos indígenas para trazer suas questões à pauta. Alguns políticos já identificam maior circulação de indígenas nos ambientes legislativos, outros apontam que ainda há pouca representação e articulação.
  • Políticas públicas: um dos pontos mais consensuais é a necessidade de políticas públicas apoiando direitos básicos à saúde e à educação. Reconhece-se, em geral, a deficiência do poder público nesse sentido.
  • Questão da terra: gera perspectivas mais opostas e polarizadas, com debate sobre a extensão das terras e a possibilidade de seu uso e exploração por indígenas ou terceiros. Políticos de esquerda ressaltam a necessidade de mais representatividade desses povos nos espaços políticos. Já os políticos mais à direita tendem a propor debates sobre o direito à terra dos povos indígenas em contraposição às sociedades envolventes.

“Se a gente olhar para os povos indígenas, há um crescimento grande de mulheres líderes nesta discussão, como a Joênia, a Sônia Guajajara. A própria discussão do Marco Temporal mostra a organização deles. Mesmo antes do Marco Temporal, é muito comum ver grupos indígenas dentro da Câmara dos Deputados, participando de sessões, comissões. Acho que tem uma organização sim”, disse uma deputada federal de São Paulo entrevistada pela pesquisa.

Em mais de uma entrevista, políticos destacaram que os interesses da sociedade mais ampla precisam ser considerados, pois percebem que o debate envolvendo os povos indígenas tende a ser radicalizado. “Os amazônidas não vivem só na cidade, muitos vivem em comunidades nas florestas, e não são índios. Precisam também ser vistos”, disse um deputado estadual do Amapá.

Jornalistas

  • Informados: trazem mais dados que problematizam as realidades locais de alguns povos indígenas. Descrevem como as sociedades, os jogos de poder e as influências locais atuam contra os povos indígenas, fazendo uso, por exemplo, dos meios de comunicação locais. O lugar percebido acerca dos povos indígenas é de uma posição de luta e resistência diante de um cenário de opressão significativa.
  • Empáticos: um jornalista do Pará afirmou que, embora indígenas sejam tidos como “atrasados”, isso não reflete a realidade. “São povos que têm sua própria estrutura social, cultural, avançados em muitas coisas. A sociedade em parte ainda tem uma visão um pouco estereotipada, que são atrasados e donos de grandes terras, o que não condiz com a realidade”, disse.

Cerca de um terço dos jornalistas afirma ter contato com lideranças indígenas, mas há quem aponte uma dificuldade em ter acesso a esses povos para entrevistá-los devido a impedimentos burocráticos ou, eventualmente, da própria liderança local.

Questão ambiental

Um ex-presidente disse à Ipsos: “No Brasil, os povos tradicionais são aliados da maior importância nos esforços de combate às mudanças climáticas.”

Esse reconhecimento da ligação profunda com o meio ambiente é repetido entre todos os grupos, mas tende a ser mais mencionado por quem já está envolvido ou interessado no tema da sustentabilidade. O conceito de “Guardiões da Floresta” é bem difundido.

A ligação com a terra está conectada a questões de conservação ambiental, em especial à ocupação de terras por indígenas (e o modo de vida sustentável) como barreiras contra o desmatamento na Amazônia. No entanto, essa percepção também denuncia falta de informação, já que atrela os povos tradicionais à floresta, sendo que eles estão ligados a diferentes biomas.

Dentro da questão ambiental, os entrevistados também ressaltam saberes ancestrais como conhecimentos diferenciados e contribuições específicas dos povos indígenas, que poderiam constituir um valor a ser compartilhado com a sociedade brasileira. Economistas, em especial, ressaltam a importância de incluir o custo ambiental das ações econômicas.

Quem são e o que querem?

Nas entrevistas, os participantes mostraram uma falta de referências atuais e nomes de porta-vozes dos povos indígenas nos cenários público e político. De qualquer forma, as pessoas mais citadas são a deputada federal Joênia Wapichana, Sônia Guajajara, Ailton Krenak, Raoni Metuktire e Davi Kopenawa.

Um número muito reduzido de entrevistados citou nomes específicos de ONGs e organizações relacionadas à causa indígena. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) foi a organização indígena mais lembrada. O Instituto Socioambiental (ISA) foi mencionado por um pequeno número de políticos, e o Greenpeace foi a única organização citada nominalmente pela população geral.

No outro espectro da desinformação, muitos atribuíram a representatividade desses povos a agentes institucionais não indígenas, como a Fundação Nacional do Índio (Funai).

Em relação às causas e desejos indígenas, existe ainda muita confusão. A possibilidade de uso e exploração de suas terras, por eles próprios ou por terceiros, é o ponto mais sensível deste debate.

As grandes causas dos povos indígenas são conhecidas, ainda que de forma genérica – saúde, educação, estrutura e tecnologia. Falta ainda um reconhecimento do porquê de essas causas serem necessárias e legítimas, e sobre como efetivá-las.

Segundo o relatório, os direitos indígenas estão amarrados à questão da identidade aos olhos da sociedade. Ou seja, direitos diferenciados são inerentes a uma identidade também diferenciada. Por isso, seria possível questionar os direitos indígenas questionando sua identidade.

A ideia parte da percepção de que, se os indígenas “mudarem”, especialmente no que diz respeito à aquisição de bens materiais ou culturais (acesso à educação superior, por exemplo), podem deixar de ser indígenas

Fontes de informação

As principais informações sobre a questão indígena vêm de veículos tradicionais: Folha, Estadão, CNN, GloboNews, Jornal Nacional, Jornal da Record, G1, UOL e Terra. As redes sociais são mencionadas com mais frequência como fonte de consulta entre o público em geral (especialmente Twitter).

No entanto, existe uma crise de credibilidade quanto à qualidade das informações sobre assuntos considerados polêmicos. Quem mais reclama da polarização, menos confia nas informações existentes, especialmente na mídia. Já entre os formadores de opinião, as fontes de origem mais acadêmica, como estudos e mapeamentos, são muito valorizadas.

Jornalistas contam com o apoio de universidades e institutos locais, além de muitas vezes terem acesso a um rol de representantes indígenas. Fala-se em jornalismo científico como um possível caminho para tratar de questões ambientais e indígenas.

O segmento de economistas é o público que mais faz menções a estudos acadêmicos, relatórios de instituições e fontes mais variadas de informação, principalmente a mídia internacional. Mas é o segmento mais questionador sobre as fontes de informação em si. Há um incômodo com a polarização e desconfiança sobre a qualidade e origem dos dados.

Para empresários, as fontes de informação consistem em uma composição variada de veículos tradicionais (jornais e revistas nacionais e algumas estrangeiras).

Os políticos baseiam suas decisões em fontes de informação específicas, como resumos analíticos elaborados por assessores de gabinete, que recebem as demandas da sociedade. Além disso, também se informam ao participarem de grupos de trabalho no Planalto. Outra fonte relevante vem de seus contatos com representantes locais e visitas e demandas que recebem nos gabinetes. Parecem confiar bastante nessas fontes próximas, segundo a pesquisa.

O que vem por aí?

Os mais engajados na questão ambiental tendem a ser mais otimistas quanto ao futuro da causa indígena, até por um olhar mais progressista. No geral, a projeção de futuro é pessimista, marcada pela atuação do atual governo de Jair Bolsonaro contra os interesses dos povos tradicionais e indígenas.

As narrativas de um futuro mais positivo se baseiam na crença da força do movimento ambiental, que, além de global, é considerada irreversível. Também depende da possível reeleição de Bolsonaro: caso outro presidente entre no poder, a agenda dos povos indígenas pode se desviar de um cenário de extermínio.

Para a população geral e para os formadores de opinião, a imagem mais forte dos povos indígenas no Brasil se relaciona à delicadeza e polêmica do assunto, que chega a incomodar, segundo a pesquisa.

Há uma dificuldade em compreender questões sobre identidade e alteridade. Em uma sociedade fragmentada como a brasileira, os povos indígenas podem ser vistos como “mais um grupo” no espaço das disputas por direitos e benefícios.

Também há um questionamento sobre sua contribuição para a sociedade. Entre os entrevistados, foi detectada percepção de trocas desiguais, sem enxergar uma possibilidade de trocas entre povos tradicionais e a sociedade brasileira

O relatório detectou, além disso, que a capacidade de organização, mobilização e representação dos povos indígenas são frequentemente subestimadas. A sociedade não enxerga sua força, colocando-os em uma posição vulnerável sempre. Os sentimentos de solidariedade e empatia não impedem que as narrativas sobre indígenas sejam enfraquecidas.

A maioria dos formadores de opinião apontam que o caminho a ser seguido é o diálogo. Apesar dos brasileiros não atribuírem tanta relevância à pauta indígena, uma boa parcela da população geral tem disposição para abrir um canal de interesse e sensibilização em relação ao tema. Essa disponibilidade sinaliza um desejo geral de abandonar a dicotomia dos debates.

Caminhar lado a lado com a conscientização ambiental, tema amplamente reconhecido por todos os segmentos, é uma possibilidade. Isso depende de estudos que comprovem a importância dos povos indígenas para a agenda climática-ambiental e que comuniquem, de forma mais ampla, essa conexão entre os dois temas.

Foto de destaque: Kiyoshi/Unsplash

 
 

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