Crença de infanticídio de pessoas com deficiência em toda aldeia indígena é equivocada, diz antropóloga

Uma criança indígena veste uma túnica branca em meio a uma floresta
Estudo de Íris Morais Araújo, da Universidade Federal do Tocantins, descreveu práticas de acolhimento e inclusão da etnia Karitiana.

A ideia de que não existem no Brasil pessoas indígenas com deficiência por conta de um infanticídio generalizado é refutada por Íris Morais Araújo, antropóloga e professora da Universidade Federal do Tocantins, no estudo Dangerous Representations: ‘Indigenous Infanticide,’ Disability, and Karitiana Relations in Brazil (Representações perigosas: ‘Infanticídio Indígena’, Deficiência e Relações Karitianas no Brasil), publicado recentemente no periódico científico Disability Studies Quartely.

Para a antropóloga, esse tipo de crença tem origem na época colonial, mas recebe novas roupagens do conservadorismo brasileiro contemporâneo. Além de dados etnográficos e históricos, a falsa crença desconsidera as particularidades de cada povo indígena.

“Temos 305 povos indígenas diferentes, cada um com suas especificidades sociohistóricas. Qualquer generalização sobre os mesmos costuma ser bastante apressada e muitas vezes não é corroborada por dados da realidade”, destaca.

O principal argumento de Araújo centra-se em evidências etnográficas acumuladas em sua pesquisa de doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), quando trabalhou com o povo indígena Karitiana, em Rondônia. A etnia reúne cerca de 400 pessoas distribuídas em sete aldeias nos municípios de Porto Velho e Cacoal.

Foto em preto e branco da pesquisadora Íris Morais Araújo. Ela é branca, tem cabelos lisos na altura do ombro. Ela sorri sem abrir a boca.

Íris Morais Araújo, autora do artigo “Dangerous Representations: ‘Indigenous Infanticide,’ Disability, and Karitiana Relations in Brazil”. Arquivo pessoal

Ao longo de oito meses espalhados entre 2011 e 2014, Araújo fez trabalho de campo com os Karitiana para entender o papel social atribuído às pessoas com deficiência do grupo, que são chamados de osikirip (se pronuncia Os-s-quirip).

No idioma karitiana, da família linguística Tupi-Arikm, a partícula O significa cabeça, enquanto Sikirip expressa a ideias traduzidas pelo grupo como danado, safado ou doido. “Osikirip é uma palavra formada por uma justaposição dessas duas outras”, detalha Araújo. “É um termo abrangente que caracteriza pessoas do grupo em situações diversas”.

A abrangência de significados de osikirip faz com que o termo possa se traduzir ao português como pessoas com deficiência ou “especiais”. Dentro das aldeias Karitiana, por exemplo, há indivíduos que se beneficiam de políticas públicas, como tratamentos médicos realizados pelo SUS (Sistema Único de Saúde) ou o BPC (Benefício de Prestação Continuada). Ou seja, a definição de osikirip se enquadra na concepção de pessoas com deficiência do governo brasileiro.

Araújo chama atenção para os critérios próprios dos Karitiana para considerar se uma pessoa é osikirip ou não. “Eles se atentam para a especificidade de seus corpos, seu comportamento caracterizado pela “raiva” e pelas dificuldades (ou impossibilidades) que cada um deles têm para falar, comer e aprender”.

“Raiva” não seria característica única aos osikirip, mas um comportamento negativo que todo Karitiana pode ter. Para o grupo, a preocupação com esse comportamento vem desde a gravidez, com o uso de plantas para que o novo ser, desde bebê, saiba lidar com tal emoção.

Se os dados etnográficos de Araújo mostram a existência de osikirip (pessoas com deficiência) nas aldeias Karitiana, que inclusive recebem o BPC, a falsa crença de que indígenas não toleram indivíduos com impedimentos físicos ou intelectuais cai por terra.

Mais do que uma existência permitida, quem é osikirip tem seu lugar na comunidade. As observações de Araújo descrevem uma cosmovisão que não cria obstáculos para participação social das pessoas com deficiência. “As pessoas consideradas osikirip são incentivadas pelos Karitiana a ocuparem os mesmos papéis que os demais”, diz.

“A caça, por exemplo, é uma atividade sobretudo masculina, e de muito prestígio. Os homens Karitiana osikirip são incentivados, na medida de sua condição específica, a realizar tal tarefa”.

Estratégias políticas

O infanticídio de crianças indígenas com deficiência não é uma ideia nova. Surgiu primeiramente em missões católicas no período colonial, mas ganhou roupagem contemporânea com o conservadorismo no Brasil, e hoje serve de manobra política para limitar a agência dos indígenas no Brasil, denuncia Araújo.

A pesquisadora aponta o documentário Hakani (2008) como um exemplo do entrelaçamento entre a retórica de infanticídio e grupos conservadores no Brasil.

Baseado em uma notícia do Correio Braziliense de 2007, o filme de 30 minutos conta a história de Hakani e Niawi, irmãos da etnia Suruwaha, que teriam sido enterrados vivos por pressão de membros da comunidade. As crianças estariam possuídas por espíritos de má sorte. Apenas Hakani haveria sobrevivido.

Por meio de dramatização e uso de atores, o documentário recriou a cena do enterramento, tendo uma criança indígena dos Karitiana no papel da Niawi.

Na avaliação de Araújo, o filme faz parte dos esforços para patologizar pessoas indígenas ao generalizar o infanticídio. Em 2007, Hakani (2008) foi argumento para um projeto de Lei que incluía no Código Penal o crime de infanticídio indígena. O PL 1057/2007, aprovado pela Câmara dos Deputados, espera apreciação do Senado.

A produção do documentário teve apoio da Youth with a Mission (Jocum) e da ONG ATINI – Voz pela Vida, da qual a agora ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, participou da fundação. Alves foi uma das divulgadoras do documentário. Em 2016, porém, Hakani (2008) foi retirado de dois sites por ordem da Justiça Federal, após uma ação do Ministério Público Federal.

Apesar dessas manobras encontrarem apoio no primeiro escalão do Executivo, elas encontram resistência, avalia Araújo. “As falsas controvérsias enfrentam um movimento indígena fortalecido no Brasil, que procura garantir seus direitos específicos e combater a discriminação de amplos setores da sociedade brasileira”.

“Um dos modos de combater essa representação enganosa e danosa à reputação dos indígenas recai na escuta e no apoio à visibilidade dos povos indígenas que são alvos dessas estratégias”, conclui.

Foto de destaque: Los Cuervos Crew/Pexels

 

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