Os modernistas de São Paulo no banco dos réus

Foto em sépia de 16 modernistas de São Paulo na Semana de Arte Moderna de 1922
O desmonte de uma ideia positiva da Semana de 22 e dos modernistas de São Paulo não está sendo discutido dentro do campo estético, mas a partir de um contorno sociológico resulta em diminuí-los.

Este texto é um breve comentário sobre uma tendência que se instaurou neste início de avaliações do primeiro grupo de autores modernistas brasileiros associados à Semana de Arte Moderna de 22 e sobre ela em si mesma. Avaliações motivadas, em parte, pelo centenário de realização do evento considerado, em ampla escala, como instaurador da estética modernista entre nós, e que tem servido, objetivamente, para reduzir a dimensão da Semana e de seus realizadores e não para rever o nosso passado artístico sob uma ótica mais verdadeira, como alguns pretendem.

Há neste conjunto de comentários um viés redutivo que parece, em parte, bastante concentrado em dados biográficos e sócio-políticos, como aquele que associa certas participações de alguns dos modernistas da primeira geração em órgãos públicos do Estado Novo, como se isso fizesse deles ditadores, fascistas, nazistas, etc.

Não se chega a dizer propriamente isso, é certo, mas a referência ao fato acaba por lançar uma luz negativa sobre o momento inicial do movimento artístico modernista no Brasil, pois o resultado objetivo que se colhe desse tipo de informação é, também, o demérito do modernismo.

Vou lembrar, rapidamente, que no Estado Novo foi criada a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), as bases de uma indústria do aço, sempre solapada para atender aos interesses das elites econômicas norte-americanas, e se começou a gestar uma inflexão nacionalista de Estado.

Era uma ditadura? Claro que era, mas jogar no lixo o que fizeram de positivo Mário de Andrade e Villa-Lobos em suas gestões setoriais é tratar os fatos sem nenhuma objetividade. Pior ainda é atingir negativamente com isso, por tabela, um movimento estético.

Vale ainda lembrar alguns fatos isolados, como a edição do jornal A Hora do Povo, que certos comentaristas dizem agora ter sido responsabilidade exclusiva de Pagu, diminuindo a participação de Oswald de Andrade. Basta ler as páginas do jornal e seguir seus embates para entender que isso distorce os fatos, ou ainda ler os dois volumes de Marco Zero, romance também de Oswald. Os romances de Pagu não foram “apagados” por machismo, mas porque são esteticamente frágeis.

Lembremos aqui a Carta a um pintor moço, dirigida a Enrico Bianco, em 1940, para que se tenha uma pequena mostra das preocupações políticas de Mário Andrade relativas à Segunda Guerra Mundial e ver como elas inviabilizam a tese que tenta relacioná-lo com o viés político do Estado Novo de forma ampla.

Esse procedimento difamatório atinge também, guardadas certas diferenças, as atividades esquerdistas de Oswald de Andrade, que é ridicularizado sob a alegação de “fazer uma esquerda irresponsável”. Que ele fosse nada ortodoxo, que ele fosse quase sempre jocoso, no geral irônico, isso é verdadeiro, mas que sua obra não se afina com a visão da “direita”, que é o que interessa, isso é absolutamente incontestável.

Quanto à qualidade da produção desses autores e à dimensão, no tempo e no espaço, de suas influências, basta ler os textos teóricos de Mário do calor do momento, como A escrava que não é Isaura, ou Macunaíma. Basta ler O rei da vela, as Memórias sentimentais de João Miramar e o Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade. Basta ouvir os quartetos de Villa-Lobos e as Bachianas Brasileiras. Basta ver as telas de Anita Malfatti ou as esculturas de Victor Brecheret. Basta ler os poemas de autores que, se não participaram da Semana, tiveram imediata e forte ligação com as ideias que, logo depois da Semana, prosseguiram sendo divulgadas pelo Nordeste, pelo Centro-Oeste, influenciando Jorge de Lima e Carlos Drummond de Andrade. Só para que se tenha uma consciência inicial do valor estético de sua produção e da extensão das reflexões desencadeadas pela semana de 1922.

Benedito Nunes, no prefácio que escreveu sobre a obra reunida de Max Martins, intitulada Não para consolar, publicada em 1992, faz uma breve retrospectiva bastante positiva da relação dos autores paraenses de sua geração com o modernismo, e, assim, desmente as denúncias das intenções culturalmente colonizadoras do grupo de São Paulo sobre a vida intelectual do resto de país.

As inúmeras Cartas de Mário, sobre as quais disse Ruy Castro — a falta do que dizer de sensato — revelam uma personalidade narcisista, sempre foram bem aceitas pelos seus destinatários-interlocutores, que vão de Manuel Bandeira e Fernando Sabino a Eneida de Morais. Foram cartas recebidas com a gratidão de quem respeita aquele que se dispôs a conversar, com paciência e respeito, sobre a arte e a vida.

As reflexões de Mário de Andrade feitas após a Semana, ou de outros avaliadores que participaram do movimento, dimensionando-o de uma forma não apologética, e que hoje são usadas para reforçar a tese da insignificância do grupo paulista e da Semana, apenas atestam a honestidade desses artistas e seu desejo de não serem alçados à categoria de celebridades, postura, aliás, que nenhum jamais assumiu como assevera Graciliano Ramos, que todos sabem ser um grande escritor, mas de opiniões pessoais nem sempre confiáveis.

Dizer que a denominação Modernismo é inadequada não desmerece o movimento, como alguns o fazem. Claro que é, mas o que os modernos, assim chamados por si próprios, desejavam com isso era instaurar uma permanente postura moderna, ou seja, de renovação.

É verdade que todos os movimentos estéticos em relação aos seus antecedentes foram modernos, mas a consciência disso, a transformação disso em uma postura estética, era algo novo, e esse algo novo foi o que pretenderam os modernos ao chamar sua Semana de Arte, de moderna.

Eles tinham amigos na aristocracia paulistana, como disse Ruy Castro recentemente? Tinham. D. Olívia Guedes Penteado deve ter financiado a viagem em que Mário de Andrade visitou, na década de 20 do século passado, a Amazônia. Mas isso desmerece os autores da primeira geração de modernistas? Entendo que não. Graciliano não foi prefeito no interior de Alagoas, não conviveu com as autoridades das oligarquias de seu tempo, não se reuniu com elas? Isso o impediu de ser de esquerda? Claro que não.

Essas acusações que visam lançar dúvidas sobre as convicções políticas dos autores do momento inicial de nosso modernismo, ao serem formuladas, nesse nível, revelam total desconhecimento da dinâmica das lutas sociais e de como se dá a construção da malha social nos processos históricos. Nenhum avanço social, em certos momentos da dinâmica histórica, se deu sem alianças, sem inter-relações dos diversos grupos e atores da vida social

Hoje, alguns estudiosos acusam de “roubo” o uso estético de narrativas indígenas, como recentemente se fez com Mário de Andrade. Este fato, com que fecho meu breve registro de acusações e rápidas digressões, é para mim, o mais absurdo, porque revela um desconhecimento brutal do processo de criação artística. Isso, guardadas as evidentes diferenças, se assemelha a acusar Homero de surrupiar as narrativas míticas helênicas para compor a Ilíada e a Odisseia, ou James Joyce de saquear a Odisseia para escrever o seu Ulysses, e por aí vai.

Fala-se que o modelo de apresentações culturais, conferências, exposições e debates que foi utilizado pelos modernistas em São Paulo já existia na França desde o século XIX. Que em outras latitudes e longitudes houve eventos iguais nas primeiras décadas do século XX.

Tudo isso é verdadeiro, mas os eventos que ficam como fundadores de algo no decurso da história nunca foram únicos, mas aqueles de maior amplitude, de maior penetração, de maior raio de abrangência. E isso, no Brasil, relativo à estética modernista, é adequado para descrever a Semana De Arte Moderna de 1922, em São Paulo, e mais nenhum outro evento ocorrido em território nacional desta época.

A impressão que me fica deste desmonte de uma ideia positiva da Semana e dos primeiros modernistas é que ela se funda em um amontoado de equívocos, sobretudo porque não se discute com os modernistas dentro do campo estético, mas a partir de um contorno sociológico e moral duvidoso que resulta em diminuí-los.

Cabe aqui, para um desfecho provisório desse escrito, lembrar, de memória, uma famosa e pertinente frase de Flaubert em uma de suas cartas a Ivan Turguêniev, referindo-se aos críticos de seus romances: “Até agora temos sido estudados como gramáticos, como historiadores, como moralistas…quando seremos estudados como artistas?”

Wenceslau Otero Alonso Junior é professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Doutor em Letras pela USP (2019), dedica-se principalmente aos estudos de análise literária, autores brasileiros, literatura e filosofia.
Imagem em destaque: Da esquerda para a direita, de cima para baixo:
1 O jornalista italiano Francesco Pettinati
2 Flamínio Ferreira
3 René Thiollier
4 Manuel Bandeira
5 Haddock Lobo Filho
6 Paulo Prado
7 Graça Aranha
8 Manuel Villaboim
9 Gofredo da Silva Teles
10 Couto de Barros
11 Mário de Andrade
12 Cândido Mota Filho
13 Rubens Borba de Moraes
14 Luís Aranha
15 Tácito de Almeida
16 Oswald de Andrade

 

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