Bepe, um outro herói modernista

Foto em preto e branco de Abguar bastos à esquerda. Ele usa óculos escuros. Na direita, há a página inicial do romance Terra de icamiaba
Protagonista de Abguar Bastos em ‘Terra de icamiaba’ é resposta direta a Mário de Andrade no embate para compreender realidade nacional.

Quando se aborda o Modernismo no Brasil, geralmente se toma como referência o grupo de escritores e artistas reunidos em São Paulo como foco irradiador do movimento – tidos como responsáveis diretos pela disseminação das inovações estéticas propagadas a partir da Europa.

Tal versão, no entanto, firmou-se em função de um posterior processo de legitimação de São Paulo como centro cultural do país. Na verdade, as ideias modernistas já fervilhavam pelas diversas regiões do país e nos variados cenáculos de escritores e artistas, inclusive na Amazônia, em cidades como Belém e Manaus, com publicações de revistas com conteúdo e programa modernista.

A polêmica e os embates quanto à temática do regional e do nacional emergem, portanto, da disputa que se vai acirrando entre os autores e artistas. A importância do movimento Modernista no Brasil reside no fato de ter sido responsável pela constituição de um campo artístico e literário relativamente autônomo. Isso propiciou um processo de criação nas artes e na literatura mais distanciado das ingerências externas ao mundo da escrita e da arte (a despeito de todos os vínculos e articulações existentes entre as obras e o contexto político então em ebulição) e, ao mesmo tempo, voltado para um experimentalismo da linguagem.

O rompimento com o passadismo literário e com linguagens artísticas tradicionais atiçou a disputa entre intelectuais e artistas em prol de uma legitimidade quanto aos modos de se efetivar uma representação da realidade nacional e regional.

Cada obra convertia-se não só em um experimento estético a promover um novo entendimento da realidade brasileira, mas também em uma cartada decisiva por parte daqueles que, de certa forma, encontravam-se em disputa por posições mais legítimas no campo artístico e literário.

Quando analisei o início da trajetória intelectual de Abguar Bastos e o seu romance de estreia Terra de icamiaba: romance da Amazônia, publicado pela primeira vez em 1931, percebi que esse pano de fundo de disputa política e estética é que dava algum sentido para entender o processo de formulação e de armação do enredo.

Capa do livro Terra de icamiaba

Edição do romance de estreia de Abguar Bastos “Terra de icamiaba”.

A contraposição entre o herói de Abguar Bastos, em Terra de icamiaba, e o herói de Mário de Andrade, em Macunaíma, além de explicitar a oposição entre concepções distintas acerca de um entendimento da realidade nacional, também contrapõe os dois autores como posições em disputa nesse campo literário/intelectual.

Por outro lado, negligenciou-se na leitura tanto de uma obra quanto da outra os modos de aproveitamento diferenciados que cada autor fez dos mitos e lendas dos povos indígenas amazônicos.

A preservação da mitologia

Vale esclarecer, antes de tudo, que a incorporação e a utilização dos mitos oriundos dos povos indígenas da América Latina, de um modo geral, invariavelmente ocorrem como material singular a conferir certa especificidade cultural à região perante a visão eurocêntrica hegemônica.

Mas tal incorporação de mitos e lendas como motivo de criação literária sempre foi analisada a partir de uma perspectiva ainda eurocêntrica, na medida em que foram tomados como meras aplicações de um primitivismo valorizado no âmbito dos vanguardismos europeus. Eu mesmo, quando da análise comparativa entre Macunaíma e Terra de icamiaba, enveredei por esse caminho.

A contraposição entre Bepe, protagonista de Terra de icamiaba, e Macunaíma é uma estratégia analítica que facilita a compreensão da oposição entre Mário de Andrade e Abguar Bastos, especialmente quanto à interpretação da realidade nacional e regional amazônica e, por consequência, de suas posições antagônicas no âmbito de um campo literário.

Ou seja, os heróis míticos convertidos em personagens em suas respectivas obras espelhariam, assim, os próprios autores.

Os vanguardismos europeus, de um lado, e a particularidade dos mitos dos povos indígenas, de outro, balizavam a busca por uma “terceira margem” para o delineamento da realidade nacional em um contexto de mudanças. Portanto, não foi levada em conta a análise acerca dos modos de aproveitamento especificamente estético dos mitos e lendas indígenas por parte dos dois autores em suas respectivas obras, o que acentuaria ainda mais o contraste entre as duas posturas.

A rigidez de Bepe contrasta com a plasticidade de Macunaíma, bem como a contundência de um em empenhar-se na solução dos problemas das populações amazônicas em contraposição às meras estrepolias do outro que, de fato, apenas sintetiza uma realidade já dada.

Diferenças na representação da Amazônia

O próprio Abguar Bastos já havia ressaltado em artigos e manifestos divulgados antes da publicação de seu primeiro romance que se fazia necessário distinguir entre brasilidade e nacionalidade. Tal diferenciação, na verdade, já era um sinal das rachaduras dentro do movimento Modernista e que foi explicitado, a partir de São Paulo, entre o movimento da Antropofagia e o Verdeamarelismo, por exemplo.

Capa do livro Macunaíma

Edição do livro Macunaíma, de Mario de Andrade.

Do ponto de vista da fatura das obras – do modo como cada obra se debatia com o tema da realidade brasileira por meio de determinados aspectos estilísticos –, o autor paraense desconfiava do experimentalismo de Macunaíma. Para ele, havia ali uma proposição de uma síntese da realidade brasileira e, desse modo, não se voltava para os problemas efetivos da nação.

O anti-herói de Mário de Andrade percorria o Brasil de Norte a Sul e de Leste a Oeste, transmutando-se em formas distintas para adaptar-se às diferentes situações, mas não se empenhava em construir uma civilização.

Bepe é interpretado como, de fato, um herói civilizador no âmbito da realidade amazônica. Está preocupado em construir uma sociedade. Daí advém seu caráter rígido, em tudo divergente de Macunaíma. A defesa da população explorada das cidades e rincões amazônicos é o objetivo de Bepe.

O Modernismo no Brasil atrelava-se aos novos modos de representar a nação brasileira. Mas o todo nacional, tal como tematizado em Macunaíma, desconsiderava as especificidades das regiões do país. A obra de Abguar Bastos voltava-se para as peculiaridades amazônicas, mas como parte do país.

A concepção da Amazônia como um espaço da Natureza é uma herança que vem de muito longe e que se reafirma na obra do autor paraense. Aliás, toda uma tradição literária acerca da Amazônia ancora-se na Natureza ou a toma como referência para os processos de fabulação da região.

Este texto é um depoimento feito com base em uma entrevista por escrito do pesquisador Marco Aurélio Coelho de Paiva. Paiva é cientista social, mestre e doutor em Sociologia, professor e chefe do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas.

 

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