A poética da Pan-amazônia serve para quê?

homem em um barco, escrevendo. A poética da pan-amazônia
Neste ensaio, a pesquisadora Fernanda Cougo conta sua experiência com o estudo da cultura e literatura da e na Amazônia, vivenciada em uma disciplina no Programa de Pós-Graduação em Letras, Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre.

Escrevo, talvez, como quem borda e ao mesmo tempo costura retalhos. Gostaria de escrever como quem pinta uma aquarela multicores… Sutil, de suporte flexível, aquosa, sublime. Mas o fato é que não sei pintar. Destarte, inicio meu bordado em retalhos na tentativa de criar um texto que dê conta de expressar, criticamente, o que pude apreender da/na disciplina “Culturas e Literaturas na Pan-Amazônia”. Disciplina ministrada pelo professor Gerson Rodrigues de Albuquerque e seus ilustres convidados Ana Pizarro e Leopoldo Bernucci – da qual participei, também, como pesquisadora palestrante ao lado de Cristiane de Bortoli – para as turmas de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre, no período de 15 de janeiro a 19 de fevereiro de 2021.

“Disciplina” me parece ser um nome um tanto quanto equivocado para o conjunto de encontros (mesmo que no formato virtual) e estudos; leituras, explanações e debates realizados. Me parece que, ao nos propormos a ir além do que está dado, sonhamos sim o voo; contudo, na prática ainda nos mantemos, muitas vezes, atados aos grilhões do que foi/é normalizado (tido como normal e/ou posto como norma). O próprio texto que aqui teço se insere nesse contexto.

Na tensão entre as possibilidades dos sonhos e os limites dos grilhões, percebo que a agulha – instrumento que perpassa e borda, de maneira imprevisível, talvez, os retalhos dos referidos encontros/estudos – é a palavra. Não uma palavra qualquer; mas a palavra poética. Escrita e falada (cantada, sonhada, silenciada…). A palavra poética pensada/pronunciada na presença do caos-mundo em que estamos inseridos (para usar uma expressão de Glissant); a palavra poética como instrumento e espaço-tempo de lutas sociais, políticas, culturais. A palavra criadora, grávida de sentidos – para lembrar o mestre Paulo Freire e também as leituras trazidas pelo professor Gerson acerca da obra de Florentina Esteves e do “útero fecundo das palavras”. Palavra deslocada; nômade, metafórica (e também impositiva, normativa, dominadora) que não traz a realidade; a cria!

Os fios principais com os quais é composto o colorido bordado são denominados: Cultura, Literatura, História e Memória, que de maneira alguma podem ser essencializados. Em verdade, seria melhor dizer que cada qual constitui um conjunto de fios que apresenta diferentes gradações de uma cor; que apresenta, inclusive, cores destoantes, a depender do contexto e da intenção com que são utilizados. Os retalhos nos quais esses fios se entrelaçam: as leituras indicadas/realizadas e, especialmente, as explanações e debates efetivados. O suporte espaço-temporal para que se entrelacem no bordado fios e retalhos: a Pan- Amazônia; região continuamente inventada e reinventada pela palavra (como Durval Muniz nos faz compreender); parte substancial da América Latina (outra região inventada) que, na concepção da professora Ana Pizarro, só pode ser entendida enquanto um todo, se pensada como “diversidade articulada”. E o que a articula é sua condição de “periférica”; de desigualdade frente às metrópoles; de colonialidade (efeito persistente da colonização). Região, portanto, marcada por trânsitos, deslocamentos e por seu diálogo/tensão com o caos-mundo, com o global.

Em um trabalho coletivo e pioneiro, a obra organizada e apresentada por Ana Pizarro coloca a importância de repensarmos os conceitos de Literatura e de América Latina, de pensarmos “A literatura latino-americana como processo” e criarmos novas categorias de análise. “Utopias outras” que instituam um discurso autônomo ao pensarmos/constituirmos nossa História Literária, uma independência discursiva em relação às metrópoles coloniais.

Essas pessoas pensantes propõem, à sua época, a existências de quatro sistemas literários sobrepostos na América Latina: oral, erudito, popular e indígena. Literaturas que expressam diferentes imaginários sociais e nas quais há distintos emissores, receptores e objetos. Estéticas diferenciadas que não devem ser hierarquizadas. Refletindo e falando a partir da atualidade, a professora pondera: Sistemas que não podem, contudo, ser essencializados. Possuem contradições e movimentos internos, dialogam entre si, se transformam e atualizam ao longo dos tempos e espaços, de acordo com as relações que estabelecem e diferentes fluxos culturais que recebem. Neste contexto, a pesquisadora sugere abordar as literaturas amazônicas.

“Pensar sistemas literários é um ato político!”

A expressão de Ana Pizarro afirma que hoje pensamos de forma mais rizomática! Concebendo esses “sistemas” como fluxos culturais que estão em permanente movimento e que se articulam de diferentes maneiras, em distintas temporalidades e durabilidades… Movimentos culturais sociais que se mesclam em um entremeado complexo, em movimento. Sistemas abertos e relativos. Intercâmbios, trânsitos. Cultura que “vai sendo”; que não “é” (lembrando que todo movimento produz perturbações).

Para ilustrar aquela enfática afirmação inicial, Ana nos presenteia com a leitura e análise do “Etnopoema didático”, do poeta amazônida Paes Loureiro. Tão atual; tão pertinente! Uma expressão poética da atual tragédia brasileira… A professora inicia sua apreciação pela perspectiva cultural, procurando no texto elementos que remetem ao que está além dele: elementos culturais, sociais, históricos, políticos que atravessam, dialogam e se chocam no poema. Mas adverte que essa perspectiva cultural não dá conta do caráter estético. Dito isto, mergulha no texto e aponta, com habilidade, os elementos literários que produzem o efeito estético da poesia. Uma emocionante aula de política na literatura, ou vice-versa, e também uma aula de análise/crítica literária. Foi uma oportunidade estarmos com essa octogenária.

E “falando” em literaturas amazônicas… A partir da apresentação da minha pesquisa (publicada) em diálogo com as memórias e artes verbais de Luiz Mendes – líder ancião de uma comunidade do Daime (um dos nomes/usos da Ayahuasca) e conhecido como “O Orador do Mestre Raimundo Irineu Serra” – e também da exposição de Cristiane de Bortoli acerca de “Tradições Orais e Canções Shanenawa através das memórias de Shuayne, patriarca da aldeia Shane Kaya”, destaco que vem à tona a multiplicidade de tradições orais, culturas e imaginários das/nas Amazônias, cada qual com suas características próprias. Literaturas orais (e, portanto, nômades) que são indissociáveis das histórias de vida, das memórias lembradas/contadas/cantadas pelos narradores, em diálogo com suas comunidades e também com as pesquisadoras.

Ecos de Poéticas Amazônicas silenciadas em/por discursos “oficiais” da “História” – seja “do Brasil”, “da “Amazônia”, “do Acre” – e também por sistemas literários hegemônicos. Poéticas da diversidade registradas, ainda que em gotas, por meio de gravações de áudio e/ou vídeo feitas pelas pesquisadoras e posteriormente pela grafia/suporte fixos de nossas escritas (de dissertações e livros). Memórias e literaturas vivas que, para serem transmitidas às demais pessoas, mesmo que em outros contextos, parecem se querer novamente orais….

Ficam evidentes os contínuos desafios éticos e teórico-metodológicos enfrentados pelas pesquisadoras nesses processos de escutas, diálogos, registros, escritas e falas. Em contínuas traduções de textos, suportes e contextos; nesses trânsitos, contatos, embates; sucessivos deslocamentos de/entre pessoas, memórias, oralidades, escrituras e culturas das/nas Amazônias… As incertezas presentes ao ousar caminhos fora dos trilhos. Fica evidente a impossibilidade de fixar e/ou analisar, a partir de uma ótica norte-ocidental, essas memórias, vozes, literaturas e culturas fluidas, errantes, complexas; vivas! Que se inserem naquele “sendo” tão bem evocado por Glissant.

Em diálogo com as proposições trazidas por Ana Pizarro, adentramos ao terreno de Literaturas Amazônicas. Literaturas orais (e, portanto, para além das Letras) produzidas nas Amazônias, onde o olhar e as formas de vida são perpassadas por outros imaginários e cosmologias, a exemplo das “narrativas de Ayahuasca” (com seus muitos nomes e usos).

Procuramos nos distanciar de literaturas que versam sobre esta vasta e diversificada região que se convencionou chamar Amazônia. Literatura produzida a partir de um olhar externo, na maior parte das vezes carregado pelo viés do “amazonialismo”, para usar um termo cunhado pelo professor Gerson Albuquerque e que lhe é tão caro.

Como Pizarro e suas contemporâneas amigas e amigos pensadores colocaram tão oportuna e pioneiramente, é preciso repensar “a” literatura latino-americana e, por consequência, repensar “a” América Latina. Da mesma forma, nós precisamos pensar e repensar o que são literaturas amazônicas ou pan-amazônicas e de que maneira ou, a partir de que referenciais, lidamos com elas. E para isso é fundamental que sejamos capazes de deslocar os sentidos dados sobre “a Amazônia”. Que sejamos capazes de escutar, repensar, redizer, reescrever, reinventar essa região inventada a partir de dentro mesmo, cientes de que, diante do caos-mundo, impossível será um olhar ou uma palavra “virginal” que traga à tona uma “pureza original” (imaginada) da “região” (inventada).

Somos parte de “Todo-o-Mundo” e estamos continuamente nos relacionando com ele (me remetendo mais uma vez ao poeta da Martinica). Nesse sentido, assim como Pizarro e companheiras* pensaram a América Latina como uma “diversidade articulada” posta em relação de tensão com as metrópoles coloniais, talvez seja importante investigar e compreender o que articula a “Pan-Amazônia” (em sua diversidade e complexidade).

É interessante que a mesma “disciplina” seja compartilhada com o professor Leopoldo Bernucci! Aqui outro viés de apreciação literária. Outras literaturas. Os três exemplos de obras escritas/organizadas, apresentadas e discutidas pelo professor (que dialogam diretamente com as produções literárias de José Eustasio Rivera, Euclides da Cunha e Benjamín Saldaña Rocca) mostram claramente o que é, ou como se faz, a construção de pesquisa no campo dos Estudos Literários; nesse caso, tomando Literatura no sentido literal de Letra, ou estudo das Letras.

Bernucci evidencia que “a Literatura” não se constitui como um campo autônomo da sociedade. Ela relaciona pesquisa literária com pesquisa histórica, social e política. A partir de sua prática, mostra a necessidade de contextualizar as obras estudadas, “situar” os autores, suas intenções e seus interlocutores contemporâneos. Também precisa buscar/cruzar informações, “ir aos arquivos” (sejam eles jornais, relatos de viagens, elementos das biografias dos autores e outras publicações da época) e comparar escrituras (do mesmo autor e outros escritores). O pesquisador vai além dos textos para buscar compreendê-los, fazendo uma espécie de análise social e histórica. Mas também permanece nos textos fazendo a apreciação estética das obras; dos estilos e recursos literários utilizados pelos autores.

Suspeito, contudo, que as obras em questão façam parte daquele “outro” conjunto de literaturas… Aquelas que versam sobre “a Amazônia”, a partir de um olhar externo, de imaginários que não lhe são inerentes. Em alguns casos, são escritas a partir do choque que os autores sentem entre a expectativa decorrente do conhecimento livresco prévio e o que encontram e podem perceber in loco. Mesmo que seus autores tenham adentrado a algumas localidades da “região” por períodos de tempos específicos, e mesmo que tenham a intenção e utilizem a literatura habilmente como instrumento político de crítica social, de denúncia contra abusos e crimes cometidos, seus escritos corroboram, muitas vezes, com discursos amazonialistas.

Essa questão não é abordada e/ou problematizada por Bernucci. O pesquisador deixa evidente sua imensa admiração pela “qualidade literária” das obras e pela “capacidade genial” de seus autores. E adota o ponto de vista dos mesmos, sem colocar em questão os referenciais culturais, digamos, “coloniais” e ao mesmo tempo nacionalistas, bem como os sistemas de classificações hegemônicos norte-ocidentais. Embora eu considere que tais obras façam parte de um conjunto de “obras eruditas” sobre “a Amazônia”, entendo, também, que elas não devem ser essencializadas e tampouco menosprezadas. Podem ser lidas sob óticas diferenciadas. Deslocadas, desnaturalizadas, repensadas…

Me parece que somos bardos de bardos… (E, pasme, não há um feminino para bardo). Talvez, como Cecília afirma que é poeta,e não poetisa, o substantivo possa ser comum de dois gêneros. No ofício de pesquisadoras, somos espectadoras ativas e erguemos nossas vozes (ou letras) para contar os feitos dos sujeitos com os quais dialogamos, no intuito de que suas proezas e seus nomes se eternizem. Sujeitos que, no caso de Luiz Mendes, Shuayne, Rivera, Euclides da Cunha, Saldanã Rocca, são eles próprios bardos que narram, cantam, poetizam feitos e nomes de outras pessoas e outros seres (seja no tom de exaltação/consagração ou de denúncia).

Como bardos, vemos (ou procuramos ver) coisas invisíveis. Também assumimos o papel de “endireitar” a história para que seja melhor contada. Somos ao mesmo tempo, “atoras” e espectadoras ativas pensando, imaginando, recriando e narrando sujeitos, memórias, saberes e fazeres; em busca, talvez, de realizar intervenções literárias no caos-mundo. No entanto, devemos estar atentas à questão: nossas escrituras bradam um grito atávico, de raiz única – ou poéticas da diversidade, da relação?

Na constituição bastante compósita e rizomática desses encontros, Gerson Albuquerque, professor regente, em diálogo com seus convidados e também com Èdouard Glissant e Hannah Arendt, nos convida abertamente à Poética! E se somos interpeladas por aquela pergunta racional (muitas vezes internalizada) advinda de um pensamento/sistema colonizador, devastador, nascido na modernidade norte-ocidental: “Para que serve isso que fazemos!?”; com um riso subversivo apoiado na mais contemporânea e antiquíssima literatura/visão de mundo “indígena”, respondemos: Serve para nada!

Afinal, nos lembra Ailton Krenak, “A vida não é útil”! Me parece que buscamos ecoar – pela palavra escrita e/ou falada, cantada, dançada, pintada, bordada – saberes que evitem “a queda do céu” sobre nossas cabeças, como alerta Davi Kopenawa. Procuramos escutar, constituir e fazer soar histórias que nos permitam “adiar o fim do mundo”.

No decorrer desses encontros, adentramos e permanecemos, portanto, no terreno subjetivo da linguagem, estabelecendo diálogos e travando embates. Procuramos pensar, repensar, sonhar, narrar, deslocar, desordenar, desconstruir, reconstruir, problematizar, denunciar, desterritorializar, recriar a nós mesmas, nossos textos e contextos; medindo, desmedindo, tornado a medir e a desmedir culturas e literaturas; tecendo e “retecendo” sentidos; mergulhando em mundos invisíveis do pensamento, da reflexão, da invenção e almejando articular nossas ideias por meio das palavras (principalmente aquelas dotadas da poderosa substância da poesia!); bordando imaginários, (re)inventando passados e sonhando em fazer surgir, da multiplicidade de linhas, cores e retalhos, novas metáforas! Algo imprevisível; inspirador; verdadeiramente transformador.

Na impossibilidade de trazer o real (mediatizado) vivido, apresento aqui esse mosaico tecido com a agulha (imaginada) da palavra e os fios e retalhos (invisíveis) da memória. Minhas palavras e memórias, que são também compostas, distorcidas e recriadas por palavras e memórias outras. Por muitas vozes… E letras. Agradeço, enfim, a oportunidade de participar, como pesquisadora convidada e também como aluna especial, dos encontros e desencontros dessa “disciplina virtual”. E quero arrematar a costura com uma “epígrafe às avessas”, evocando a inspiração do grande e insurgente poetas das miudezas:

Quem anda nos trilhos é trem de ferro,
sou água que corre entre as pedras:
liberdade caça jeito

– Manoel de Barros

Referências

*No estudo e exercício de desnaturalizar o que está dado (imposto) na linguagem, sempre que utilizar aqui o plural de substantivos ou adjetivos no feminino estou me referindo às pessoas, sendo elas homens e/ou mulheres.
Fernanda Cougo Mendonça é doutoranda e mestra em Letras: Linguagem e Identidade pelo Programa de Pró-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, da Universidade Federal do Acre. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa História e Cultura, Linguagem, Identidade e Memória (CNPq). Licenciada em Artes e Pedagogia. Publicou em coautoria com Luiz Mendes o livro “O Orador do Mestre Raimundo Irineu Serra _ diálogos, memórias e artes verbais” pela NEPAN – Editora do Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-Amazônicas. Artista/educadora responsável pela Companhia Casmerim: Ação Cultural para o Bem Viver.

 

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