Porto da Cargill em Abaetetuba (PA) é nova Espada de Dâmocles na Amazônia

Um grupo de pescadores em Abaetetuba (PA) no rio.
Comunitários da Ilha do Capim, Abaetetuba (PA), realizando a pesca com a rede de três malhos no Igarapé Vilar. Foto: Jacy Santos, 2020.
Mito grego de ameaça iminente se repete no Pará após projeto de empresa americana; construção pode afetar populações ribeirinhas e sua cultura, além de espécies da região

Conta a história que Dâmocles era conselheiro da Corte de Dionísio, o tirano de Siracusa, por volta do século IV a.C. Dâmocles desejava as benesses do cargo de Dionísio e esse, por simpatia ao conselheiro, lhe cedeu o trono por um dia. Contudo, o tirano amarrou com um fio de rabo de cavalo uma espada pesada e afiada sobre o assento do trono, sensibilizando seu conselheiro para o risco inerente ao posto desejado. Qual a relação entre a história da Espada de Dâmocles e a Amazônia Brasileira? A situação do porto da Cargill em Abaetetuba(PA) explica.

Em sua dimensão rural e urbana, habitam a região de Abaetetuba populações tradicionais indígenas que tiveram seus ancestrais chegados a esta planície há aproximadamente 13 mil anos; ribeirinhos amazônicos e quilombolas, população tradicional de formação mais recente, há aproximadamente 400 anos; além de outros brasileiros e estrangeiros de muitas paragens, trazidos por motivações individuais, coletivas ou fomentados por empreendimentos.

As populações tradicionais indígenas, os ribeirinhos amazônicos e quilombolas do interior da floresta desenvolvem atividades na pesca, no lavrado, na apanha de frutas, no corte de lenha, nas proas das embarcações, nas olarias, na confecção e condução de rabetas, na puçangaria, no artesanato de miriti.

Essas populações também trabalham mariscando, bordando, tecendo, calafetando, entre outros universos de saberes tradicionais que dão significado à vida e possibilitam a reprodução material e simbólica, o que lhes garante exercer a territorialidade local. Vivem em simbiose com a floresta, dela retiram seu sustento e, por isso, desenvolvem um modo de vida equilibrado e claramente menos predatório quando comparado ao das sociedades urbanas.

Ainda assim, a vida no interior da floresta não é puro romantismo. Depois da denominada integração da Amazônia ao restante do país, tendo também como marco o golpe, não o de agora, o descarado e não legitimado de 2016, mas o outro antes desse, o de 1964, no qual o consórcio de golpistas, tendo a vergonhosa participação dos militares brasileiros na linha de frente, procurou implementar projetos os quais classificou como de “desenvolvimento”, “integração” e “crescimento” da Amazônia.

Desenvolvimento? Crescimento? Para quem? Para quê? Para o povo que vive na região, os denominados grandes projetos têm lhes imposto ainda mais dificuldades. A luta pela terra e a degradação ambiental, social, cultural e humana são exponencialmente crescentes na Amazônia e visíveis até em municípios impactados de forma indireta por esses projetos, como o município de Abaetetuba.

Abaetetuba localiza-se, em linha reta, a 72 km da cidade de Belém, capital do Estado do Pará. Segundo dados do IBGE de 2019, Abaetetuba tem 157.658 mil habitantes, o que faz dela a sétima maior cidade do Pará em densidade populacional. 41% de sua população vive na zona rural, majoritariamente à margem dos rios e igarapés. Abaeté, como é chamada carinhosamente por seus moradores, é uma cidade tipicamente amazônica, com uma expressiva população ribeirinha, dividida em 72 ilhas, mas que também apresenta problemas sociais complexos, como a violência, o desemprego e o tráfico de drogas.

Assim, neste instante histórico, uma nova Espada de Dâmocles foi amarrada sobre a cabeça das comunidades tradicionais da região das ilhas de Abaetetuba. Trata-se da possibilidade de instalação de um porto para atracação de grandes navios que deverá ocupar a área que compreende a comunidade do Igarapé Vilar, estendendo-se até a Costa Marapatá, voltado para a exportação de commodities, particularmente soja in natura. Trata-se do Terminal Portuário de Uso Privado – TUP Abaetetuba, pertencente à multinacional estadunidense
Cargill.

Foto de uma clareira aberta pela Cargilll na mata

Detalhe do Ramal aberto pela Cargill Agrícola nos limites da Comunidade Guajará de Beja-Abaetetuba
Foto: Jacy Santos, 2020

Segundo informes da própria empresa, em 2018, seu faturamento alcançou, apenas no Brasil, uma receita líquida de R$47 bilhões, e quer mais. De acordo com a famosa revista norte americana de economia e negócios Forbes, a Cargill é hoje a segunda maior empresa de capital fechado do mundo, depois de ter liderado esse ranking por 12 anos até 2020.

O empreendimento representa mais um perigo iminente para a população nativa. O intenso fluxo de grandes navios de ferro no rio Tocantins, de início, tornará ainda mais perigosa a navegação da população local, que atualmente é realizada por pequenas embarcações de madeira.
Por essa região também comportar diversos pontos de pesca, tal fluxo impedirá algumas modalidades. O que inclui pesca com rede de arrasto de reponta na captura da dourada e do filhote; a pesca de “borqueio” para pegar mapará; rede de tresmalhos, que captura ictiofauna diversa em menor proporção. Todas são atividades de re-existência e fontes de sustento de centenas de famílias do lugar, ao lado de outras atividades haliêuticas que garantem a reprodução material e simbólica daquelas comunidades.

De acordo com a Colônia de Pescadores de Abaetetuba, o município possui cadastrados mais de 11 mil pescadores e pescadoras que, no período do defeso (época em que a pesca é proibida por conta da reprodução dos peixes), recebem do governo federal quatro parcelas de um salário mínimo para se manter longe das redes e dos anzóis.

Isso implica dizer que, por ser uma região pesqueira, a economia abaetetubense recebe por ano um estímulo de mais de R$ 44 milhões. Dito isso, uma pergunta se impõe: Caso o mapará e a branquinha (pescada) desapareçam, quem vai pagar por isso? A Cargill?

Segundo Pepê, pescador do furo Maracapucu entrevistado em 2015, a pesca com a rede de arrasto de reponta na costa Marapatá já apresentava risco por causa do trânsito de navios de origem e/ou destino ao Porto de Vila do Conde, no município de Barcarena, que faz fronteira com Abaetetuba.

É nesse porto de Vila do Conde que, desde o dia 6 de outubro de 2015, encontra-se afundado o navio boiadeiro Haidar, de bandeira Libanesa, com mais de 5 mil cabeças de gado e 700 toneladas de óleo, que polui a água que a população nativa consome. Em dezembro de 2018, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMAS) confirmou o vazamento de óleo do navio naufragado. Mas, se em mais de cinco anos não o retiraram do fundo do rio, com toda essa matéria orgânica apodrecendo na água local, não é possível crer que haja responsabilidade de empreitadas dessa natureza com o meio ambiente e com as pessoas do interior amazônico.

Ocorre também que estes navios, quando saem de seus lugares de origem, geralmente não trazem mercadorias e precisam estar pesados para enfrentar as ondulações, ou seja, ter calado suficiente para suportar um mau tempo. Para tanto, preenchem o espaço interno com água. De ecossistemas diferentes do nosso, essa água traz consigo organismos e microorganismos que no porão do navio se encontram com resíduos poluentes como óleo queimado e, possivelmente, agrotóxicos utilizados como defensivo agrícola em larga escala nas plantações de soja. Chegando ao porto para o recarregamento das commodities, esta água, chamada água de lastro, é lançada para fora, despejada no ecossistema, atitude predadora protagonizada por navios que seguem em direção ao porto de Vila do Conde e que inclusive já foi vista por comunitários da Vila de Beja, em Abaetetuba, durante a noite.

Organismos e microrganismos de outras paragens, uma vez lançados fora, podem acarretar desequilíbrio para os ecossistemas locais. Os resíduos dos agrotóxicos da soja podem poluir e contaminar a água local. Quanto ao óleo queimado, um litro pode poluir até um milhão de litros d’água. Mesmo assim, a população resiste.

Entidades, mandatos políticos e as próprias comunidades tradicionais se organizam a fim de compreender, sensibilizar e denunciar aos órgãos de fiscalização e em mídias sociais as ameaças. Reivindicam o direito à Consulta Prévia Livre e Informada. Nesta luta, as comunidades do Pirocaba, Guajará de Beja, Igarapé Vilar, Capim e Caripetuba têm se organizado e realizado movimentos locais e protestos para que sejam ouvidas.

Um pescador segura um peixe com mão direita

Dilmayco Freitas, comunitário da Ilha do Capim – Abaetetuba-Pa-Br com os peixes (mapará) capturados com a rede de três malhos no Igarapé Vilar. Foto: Jacy Santos, 2020.

As promessas de crescimento e modernização da sociedade sempre fizeram parte da aura dos empreendimentos que pretendem se instalar na Amazônia; o Porto da Cargill não parece diferente. O Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do TUP-Abaetetuba, produzido pela própria Cargill como exigência do licenciamento ambiental, cita a geração de emprego como justificativa. “Durante a instalação do TUP, serão 388 empregos diretos; já para a operação do Terminal empregará um total máximo de 176 trabalhadores” (2017, p. 53), diz o texto.

Apenas a título de comparação, uma rede de supermercados de Belém, que instalou uma única filial no município recentemente, emprega mais de 500 trabalhadores em sua operação. A maioria é mão de obra local. Apesar de termos hoje muitos ribeirinhos que ingressaram nas universidades e, portanto, possuem nível superior, a população nativa é, em sua maioria, formada pela tradição oral.

Pela falta de políticas públicas efetivas, poucos tiveram acesso à cultura letrada e formal. Por essa razão, a maioria terá míseras chances de concorrer aos poucos empregos gerados pelo porto. Fora isso, os ribeirinhos não se sentem seduzidos pelo empreendimento, preferindo a pesca ou manejo do açaí.

Outro aspecto brutalmente desrespeitoso do Porto da Cargill, presente no RIMA da TUP, diz respeito aos Programas Ambientais, particularmente o Programa de Educação Ambiental (PEA) que envolve:

Atividades de educação ambiental para a população afetada pelo empreendimento e também para os trabalhadores, de modo a promover a construção de valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes, e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem como de uso comum do povo, contribuindo para a sua qualidade de vida e sustentabilidade (2017, p. 57).

Se não fosse trágico e humilhante, seria cômico. A instalação do Porto da Cargill em Abaetetuba representa a Espada de Dâmocles do tempo presente. Como os empreendimentos antecessores, o Porto deverá acentuar ainda mais os problemas ambientais, sociais, culturais e humanos locais. A Cargill coloca-se em um pedestal, com a pretensão de ensinar à população local a cuidar do meio ambiente. Não sabem que o que resta da Amazônia só existe graças à resistência das populações tradicionais que há séculos cuidam desta planície e desenvolveram modos de vida mais harmônicos com o ambiente natural, fazendo, há longa data, a manutenção da floresta.

É afrontosa a postura da Cargill porque o local onde se pretende instalar o terminal já foi alvo de denúncia do Ministério Público, Defensoria Pública e SEMAS. É uma uma área que pertence a um projeto de assentamento e que, portanto, não poderia ser vendido individualmente. A investigação pode conduzir a crimes que envolvem agentes políticos do município e também do Estado que, no exercício de suas funções, favoreceram-se de informações privilegiadas para auferir vantagens pessoais.

Vendido para a população local como a oitava maravilha do mundo, o Porto da Cargill deverá se instalar. Empreitadas dessa natureza são realizadas na Amazônia com a validação das ciências naturais e dos poderes políticos. Vencer uma luta contra o poder predador do capital é uma epopeia. O fio que suspende a Espada de Dâmocles, colocada pela empresa Cargill sobre a cabeça da população tradicional ribeirinha das Ilhas de Abaetetuba, está puindo.

Referências

Ademir Bitencourt Azevedo, Graduado em Pedagogia pela UEPA. Atualmente é Coordenador Pedagógico da EEEFM Leonardo Negrão de Sousa, Abaetetuba-Pará-Br. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contemporânea. Exerceu a função de vereador eleito pelo PSol em Abaetetuba (2016-2020). Cursando Mestrado em Ensino de História pela UFPA. Amazônida e militante pela causa socioambiental da floresta.
Walter Chile Rodrigues Lima, Arte-Educador/Pesquisador; Doutor em Estudos Culturais pelas Universidades UA/UMinho – Portugal; Professor da Cadeira Cenografia na UFPA; Membro da Sociedade de Preservação aos Recursos Naturais e Culturais da Amazônia – SOPREN, onde desenvolveu por 26 anos atividades técnicas e pedagógicas com Populações Tradicionais amazônidas; Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais na Amazônia – GECA; Membro do Grupo de Investigação em Gênero e Performatividade da UA- PT. Amazônida e militante pela causa socioambiental da floresta.
foto destaque: Jacy Santos, 2020

 
 

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