O domínio de Belo Monte sobre o território chamado Xingu

Floresta alagada pelo represamento do rio

DOI: 10.33009/amazonia2021.11.12
 
[RESUMO] Autora reflete sobre o encontro de Belo Monte com o rio Xingu, e o dela com ambos, a partir da versão goetiana da ‘História Trágica do Dr. Fausto’. Sua escolha pela poesia não romantiza a dor ou floreia a violência causada pelo megaprojeto. O uso de palavras poema, com frases entrecortadas, representa a realidade, seja ela bela ou atroz, e visa propor uma outra dinâmica de leitura. É um texto escrito para ser verbalizado, de modo que o leitor seja inteiramente conduzido a visualizar as imagens que antecedem a escrita.

Golpes sob o sol ressoavam,
mas em vão.
Em noite fria,
mil luzinhas enxameavam.
Diques vias no outro dia.

Carne humana ao luar sangrava,
De ais ecoava a dor mortal,
Fluía ao mar um mar de lava,
de manhã era um canal².

Na versão goethiana
da ‘História Trágica do Dr. Fausto’,
esses versos denunciam
o ambicioso projeto fáustico!

Uma utopia permeada
pela crença do anti-herói
na luz que carrega dentro de si.
Que ilumina com brilho seu caminho.
Paradoxalmente impulsionada por um pacto.

Um pacto com o demônio.
Incumbido de concretizar
o sonho de redenção da humanidade.
Em glória que viria do desencanto do mundo.
E da destruição de tudo o que remete ao passado.
Pré-história do homem.

Fausto visualiza um gigantesco canteiro de obras.
Condicionando as forças da natureza para o sentido certo.
Canaliza e enlaça
a energia do mar.
Até então desperdiçada no seu vai e vem interminável .

À terra sem homens ,
Fausto levará todos os homens sem terra ,
que aderirem à liberdade
que seu projeto enuncia.

No fim das contas,
o que Fausto pretende
é devolver a terra para si própria:
acelerar o inevitável .
É estabelecer fronteiras para as ondas.
E colocar um anel ao redor do oceano .
Algo que apenas um certo homem ousaria sonhar fazer³.

Moderno!
Vai fundo o projeto fáustico…
Pretende recriar a sociedade
à sua imagem.
Libertá-la.
Vai longe…
Literalmente até onde os olhos conseguem ver.
Ao sem fim da terra!

Grande canteiro de obras. Mistura de pedras, cimento e terra vermelha

Canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, onde hoje ficam as turbinas de geração de Energia. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Abre estradas.
Constrói portos e canais.
Novas cidades emergem ali…
Onde o sol ainda não havia chegado.
Destrói os muros.
Cria luz.
Gera energia…

Desde o pacto,
Mefisto fizera da vida de Fausto
um movimento incessante.
Na busca do momento pleno
em que este se realizaria
e teria enfim que entregar sua alma.
Como prometido.

Mas, quando Fausto anuncia
que pretende mover o próprio mundo,
Até o demônio se põe perplexo.
Atordoado.
Sem palavras.
Esmorece
enquanto Fausto renasce…

Agora, não é o diabo ou o pacto que o impulsionam.
Mas a necessidade de romper a angústia
que desafia o seu espírito.
Desespero de ter força,
e não agir para subjugar
tudo o que deveria estar a seu serviço.

No fim das contas,
Fausto se deslumbra
diante da profecia de se tornar
Senhor e Possuidor da Natureza.

Uma profecia que se fez verbo
pela descoberta do método4
Pronto a iluminar o caminho único.
Alicerce da modernidade,
que brota da travessia empreendida por Descartes.
Transposto da dúvida absoluta
à única certeza possível.
Descrita no discurso
em que o filósofo renasce,
ao compreender sua própria existência de ser pensante.
Ser que independe de tudo o mais,
que faz do mundo uma imagem projetada
única e exclusivamente
pelo seu próprio pensamento.
E que funda toda a verdade
na certeza dessa representação5.

Profecia!
Mas sem encanto!
Que anuncia um miserável mundo novo.
Destinado a sobreviver
aos efeitos da brutal separação
entre o Ser e o Ente.

E a conviver com o risco de os entes,
agora esvaziados de tudo o que é sagrado,
estarem sob controle
e à disposição de um sujeito
que se lança a povoar o mundo,
como um solo pouco explorado.
A ser destruído e recriado…
E que concebe a natureza
tão somente
como fonte de recursos
para o seu desenvolvimento.

Encoraja Fausto
o vislumbre dos meios
que tornariam realidade seus fins.
A técnica e planos operacionais
para transformar a terra e o oceano.

O pacto com Mefisto:
era a garantia do capital necessário
e do trabalho sujo.

O pacto com o Estado:
a segurança de que seriam contornados
os entraves burocráticos
e as barreiras para o controle de grandes porções de terra.

É um projeto territorial!
De expansão de um interminável canteiro de obras,
sustentado na certeza de uma representação
que exclui outras representações possíveis.
Da natureza.
Da terra.
Da água.
Do rio.
E anuncia o caminho único.

Áreas de floresta alagadas, com pontos de terra vermelha

Vista aerea do rio Xingu nas proximidades da constrição da hidreletrica de Belo Monte. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

O resto.
Tudo o que ficou para trás na passagem cartesiana
é posto em dúvida,
feito mito ou crendice.
Desqualificado.
Apagado da história
e da memória.
Como os reinos do passado
ou que remetem ao passado.

Definitivamente,
o velho está fadado
a ser história de papel.
O projeto moderno
é de universalidade.
É o prenúncio da chegada do novo mundo
aos sertões da terra.
E a certeza da representação
é o argumento
que desqualifica tudo que não cabe neste tempo.
Não vale para este tempo,
Onde todo ente é moeda a ser trocada.
Combustível.
Instrumento.
Elemento apropriável.

Na obra de Goethe,
o velho emerge como um obstáculo
à conquista final de Fausto.
Nega-lhe o prazer
de contemplar a sua glória.
O direito ao ritual narcísico
por meio do qual consagraria seu próprio mérito.
E ali, nessa porção de terra
onde projetara um mirante
com vistas ao infinito,
nessa pequena parte que não coube no seu latifúndio,
um par de velhos… teimosos! 6
não aceita dar preço ao seu lugar.

A imagem da pequena cabana,
sozinha no meio da vastidão do domínio de Fausto,
é facilmente transposta
para muitos canteiros de obras,
tão reais quanto atuais.
Ilhas de sombra
diante de ambiciosos projetos redentores.
Onde o velho e o novo se encontram.
Em que figuras como o campesino,
o pescador,
o índio,
o ribeirinho,
a quilombola,
a quebradeira
insistem em existir… do seu modo.

Pessoas obsoletas!
Diria um certo Fausto.
Que escolheram manter-se
fechadas ao novo mundo.
Que não aceitam
deixar seu miserável lugar.
Que não admitem o que são
e o que estão destinadas a ser,
desapare-sendo.
Que, enfim, se colocam frente ao inexorável
processo de desenvolvimento.

Como os velhos teimosos,
Filemon e Baucis,
que ousaram desafiar Fausto,
ao enunciarem seu Direito a ter Direitos.
Pretendendo ganhar proteção
neste mundo,
sem deixar de ser o que são.
Vivendo e morrendo
do seu modo.
Cultuando, mais que aos entes quantificáveis,
suas próprias representações da natureza.

Tal qual o encontro de Fausto
com o par de velhos (e tantos outros).

O (mal)encontro de Belo Monte
com os Povos do Xingu
é o encontro entre duas representações distintas
de um mesmo ambiente natural.

Grupo de indígenas em uma construção. Eles vestem cocar e outros apetrechos

Indigenas Xikrin durnate ocupação de um dos canteiros de obras da hidrelétrica de Belo Monte. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Uma, herdeira do método
e da separação entre Ser e Ente,
tem a natureza como meio
para os fins de assenhoramento.

A outra, tem a natureza como um lugar de vida.
O rio como essência.
O Ente como Ser.
Ancestral.
Encantado…

Demorei a entender os Juruna – Yudjá.
Povo das águas.
Canoeiro.
Quando dizem que o rio corre em suas veias.
É seu Sangue
e sua Alma.
E afirmam que o Xingu não existe sem os Juruna.
Nem os Juruna sem o Xingu.

Descobri que perguntar ao ribeirinho
porque ele preserva o seu lugar
é como indagar às mães
porque elas protegem seus filhos.

Quando insistem que o rio Xingu não está à venda,
estão dizendo que ele é da ordem do que não se negocia.
Não é meio para se obter algo.
É vida.
Uma só vida.
Que liga umbilicalmente a terra ao índio.
A ilha ao pescador.
E o rio a ambos.

Se assim é…
Então, definitivamente,
o rio de Belo Monte não é o rio Xingu!

Belo Monte toma as águas do Xingu
como combustível.
Puro recurso energético.
Um ente que pode ser destruído
e recriado
em canais de cimento.
Na crença de que será dado a uma Empresa mantê-lo vivo
por um hidrograma ecológico artificial.

Que não tem a vida como imperativo.
Mas que foi concebido
para a conquista de dividendos
suficientes a garantir…
Retorno financeiro
a um projeto sem viabilidade afirmada.
Gestado nos corredores
das trocas de favores
dos Palácios Federais.

O rio de Belo Monte
é um Ente qualquer.
Substituível.

O Xingu não!

Do outro lado do paredão.
O povo das águas – Yudjá –
chama de fim de mundo
o ano em que o Xingu foi partilhado.
Em que seu sangue foi sugado
para abastecer as turbinas de Fausto.

Debaixo de suas águas:
o carvão das ilhas incendiadas.
O babaçu,
o murici,
o galinheiro,
o chão batido da casa.
E todo resto deste sertão de mundo
que pela narrativa fáustica
estaria destinado a submergir.

Vista de uma janela para uma rua feita de rio, com uma canoa atravessando

Bairro na região central de Altamira. (Anderson Barbosa/ Amazônia Latitude).

O índio pode gritar de horror.
O ribeirinho pode esbravejar.
O pescador pode ecoar a dor mortal.
O xamã alerta, em vão,
que o céu vai cair sobre todos.
Seu eco é silenciado.
E o Xingu… sacrificado.

Mas insistem…
Reexistem.
Mantendo viva sua representação
da água,
do céu
e da terra.

Numa perspectiva que se vale de tudo o mais,
para além do pensar.
E que guarda o saber no tempo.
Transmitido por uma ancestralidade.
Que une o presente ao passado.
E o passado ao futuro.

Sua insistência em existir desafia,
a este e a tantos projetos fáusticos,
Simplesmente por fugir à regra proclamada pelo método.
E cogitar outro caminho.
E enunciar outro destino para o rio.
E para espaços de vida
que ainda tem algum valor.

Afronta.
Confronta a certeza de uma representação do mundo,
que depende da ficção de que a natureza ofertará
infinitamente
suas dádivas ao gozo daqueles que se intitularam Senhores.

Volto à imagem da pequena cabana…
Mas agora, como um feixe de vida
na penumbra da terra queimada.

Ilhas sobreviventes num mar de lama
da barragem de água tóxica,
herança de outro Fausto,
que também se anuncia belo…

O novo e o velho então se confundem.
E aquele grito de que o Xingu não está à venda
ecoa como semente
à espera de ser semeada.

Ecoa como afirmação espontânea
de que a vida tem que ser protegida.
Não a sua, a minha ou a de alguns.
Mas toda a vida.
Daqueles que já morreram
e daqueles que ainda não nasceram.

Ecoa como a pergunta pelo sentido.
Como indagação sobre a proporcionalidade do sacrifício.

O ódio de Fausto ao par de velhos
serve para dimensionar
o desafio que a resistência dos povos do Xingu
impõe a Belo Monte.

Está entendido porque a sua voz
faz estremecer as toneladas de concreto
que sustentam as casas da usina.

Diversas escavadeiras parecem pequenas na escala do gigante canteiro de obras.

Canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte. (Anderson Barbosa/ Amazônia Latitude)

Está entendido também porque foi necessário silenciá-los
para a obra seguir.
Desorganizá-los.
Enfraquecê-los quase à dependência completa
dos donos do projeto.

Por isso, é tão importante
a um certo Fausto fazê-los acreditar
que todos querem a mesma coisa.
Que só há um uso possível
a ser dado às suas terras.
Que fazê-las produzir até a última gota de vida
é o único caminho possível.
Que arrendá-las
é jogada de mestre.
Que ficar olhando o vai e vem do vento nas florestas
é algo que não cabe neste tempo.

Há que se silenciar o eco…
É preciso forjar consensos.
Ou… o projeto seria inevitavelmente
lançado à luz do debate público.

Na versão goethiana,
o consenso é imposto pela aniquilação do par de velhos.
Saída diabólica!
Que Mefisto justifica
lembrando a Fausto
que seu projeto é colonizador 7.
Violência
que Goethe resume na fumaça
que amanheceu no lugar da velha cabana.

Porque é óbvio:
de tudo que Fausto cogita,
não vislumbra levar seu projeto à discussão
com o par de velhos.
Ouvi-los??
Se a decisão já foi previamente tomada?
Resta saber como fazer!

No Xingu,
quanto mais descobrimos sobre Belo Monte,
menos encontramos de abertura
para o debate sobre os porquês do projeto.
Sobre a prova da viabilidade
do sacrifício pretendido.
Sobre as necessidades
de se otimizar o que já se tem.
As alternativas
do uso da técnica
para proteger a vida

A decisão prévia
é tornada consenso.
E quando imposta
a troca impossível.
Toda diplomacia é inócua.
E serve para mais violência.
Assim como cada decisão proferida
com base na decisão prévia.

Em Belo Monte,
a segurança de Fausto é a certeza de que,
faça-se o que fizer,
seu projeto estará garantido.
De que sob seu domínio instaura-se
um mundo em que tudo é possível.

O pacto com o Estado
é a garantia de que cada limite seria transposto,
sem necessidade de honrar a lei
e os compromissos assumidos.
É a garantia do uso do slogan
da vontade geral
para suspensão da ordem jurídica.
Permitindo prosseguir a violência
sob o olhar da Justiça.

O pacto com o capital e a grande mídia:
garante que a pergunta seja desfeita
tão logo levantada.
Resposta pronta.
Prévia.
Consenso forjado.
Debate silenciado.

Nos raros momentos
em que a intervenção no Xingu
chega às telas dos centros urbanos.
O preâmbulo da notícia
traz a imagem do apagão.
E o que se noticia
é a absoluta necessidade do projeto.

Ou: a vida confortável
posta em risco.
O retorno à lamparina,
ao ferro a carvão…

O debate conduzido
pelo medo do escuro
é infantilizado,
banalizado,
em torno de uma pseudodisputa.

Forjada por quem reduz o mundo a coisas
calculáveis.
E pretende reduzir a números
a batalha que se trava no Xingu.
Propondo.
Impondo.
A ideia de justificar tal intervenção
na crença do sacrifício de poucos
para o benefício de muitos
.

Assim conduzido…
O debate não descobre
para quem é Belo Monte.
Não reflete sobre o alerta
de que secar o Xingu
é um risco não permitido.
E que a morte de um grande rio
pode ser a sede de outros tantos rios
que dele dependem.
Num ciclo da natureza.
Que está além do controle
de Fausto e de Mefisto.

É do futuro que se trata.
Mas o medo apenas sugere
o temido retorno ao passado.

O debate assim
desfoca o diálogo de perspectivas
que se trava no Xingu.
A batalha epistêmica,
que faz da disputa pela água
uma disputa pelo significado da água.

Um impasse
que na versão goethiana
teve a solução conferida a Mefisto.

Em Belo Monte,
a decisão sobre o uso que será autorizado
ao território chamado Xingu
é tomada pelo próprio governo.

Caminhões com caçambas levantadas na beira de um rio.

Obras na margem do Xingu.(Anderson Barbosa/Amazônia Latitude).

Num processo administrativo
tornado arena.
Onde se decide sobre a prevalência de uma narrativa.
Sobre o poder de um saber.

Mas nesse mundo
em que o direito perdeu a capacidade de pôr limite.
O devido processo de licenciamento
é flexibilizado.
Para dar legitimidade à decisão prévia.
Renomeá-la.
E gravá-la com o signo de
sustentável.

Assim, a disputa entre as narrativas é decidida,
pela certeza de uma representação,
a favor de si própria…

Da imagem de Raimunda Ribeirinha
guardo o olhar desafiador.
Com a bandeira de seu país presa à testa
no solo incendiado de sua ilha.
Ela canta…
Expressa as dores que sente.
Lamenta a espinheira danada.
A tristeza, de quem é vítima.
Reafirma a narrativa silenciada.
E indaga:
Que diabo é esse?
Que se coloca no lugar de Deus!

Não há dúvida de que Fausto
se sentiria em casa nos nossos dias.
E que a reconstrução
de um dos principais rios da Amazônia
por canais artificiais
poderia perfeitamente figurar entre os sonhos de Goethe.

Mas, ambos – Fausto e Goethe –
esmoreceriam diante do que se instaura no Xingu.
Porque o caso é daqueles
em que o discípulo supera o mestre.
A empreitada de Belo Monte
neste imenso território
está além do universo imaginativo
das utopias de séculos atrás.

Porque o Xingu não foi apenas dividido.
O fluxo de um rio sazonal
é posto sob o domínio
de uma Empresa soberana.
Que passa a ter o controle da água.
A prerrogativa de imitar a chuva.
O poder de sozinha fazer verão!
E dirigir toda a forma de vida
que depende do ciclo da natureza.

A Tragédia de Belo Monte
atualiza o projeto fáustico!

O amplia para além
do que os olhos conseguem ver.
Materializa as utopias negativas do século XX
que anunciam uma outra escala de destruição.

Definitivamente.
Sob o silêncio de um consenso forjado.
Conduzido por um emaranhado de pactos.
O domínio que se impõe sobre o Xingu
é um poder sobre o pulso da vida.

Um biopoder.
De fazer viver e deixar morrer.8

Referências

Thais Santi possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2000); especialização em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (2002); especialização pela Escola Superior do Ministério Público da União (2012) e mestrado em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005). É membro do Ministério Público Federal.

 
 

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