Perda de biodiversidade por queimadas aumenta na Amazônia com desregulação ambiental

Uma linha diagonal queimada divida a área devastada pelo fogo e uma área verde
Pesquisa publicada na Nature calculou os impactos causados por fogo na região nos últimos 20 anos; apenas em 2019, 12 mil espécies entre plantas e vertebrados foram afetadas

Um estudo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros publicado na revista Nature em setembro observou que, em períodos de relaxamento de políticas ambientais, plantas e vertebrados da Amazônia sofrem mais impactos em suas áreas de ocorrência do que em períodos com regulação mais rígida.

Para chegar a essa conclusão, o grupo de cientistas analisou incêndios detectados por sensoriamento remoto entre 2001 e 2019 por meio de um mapa da distribuição de espécies na região, elaborado a partir de um banco de dados com trabalhos de campo de outras pesquisas.

Criando um modelo de distribuição potencial de plantas e vertebrados, o estudo estimou o número de espécies que vivem na Amazônia (14.593) e as áreas em que eles ocorrem.

A partir da identificação de onde se localiza essa biodiversidade, foi possível avaliar como ela mudou em relação aos vinte anos, enfrentando mudanças por secas, desmatamento e queimadas.

áreas de floresta carbonizadas saindo fumaça

Queimada e desmatamento de grandes proporções nas margens da BR-230 (Transamazônica) em Lábrea (AM).(Edmar Barros/Amazônia Latitude)

Para Danilo Neves, professor de ecologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Minas Gerais (UFMG) e um dos autores do estudo, o número de espécies calculado é conservador. “A Amazônia é a maior lacuna de informação sobre biodiversidade no mundo”, explica. “Muitas espécies estão em áreas remotas, difíceis de mapear”.

A partir desse modelo, os pesquisadores estimaram que, ao longo de vinte anos, 103.079 e 189.755 km² da Amazônia foram impactados pelo fogo. Os números correspondem à área de ocorrência – o espaço usado por animais e plantas para se alimentar e se reproduzir – de quase 85% espécies ameaçadas de extinção.

Algumas espécies, como a árvore Remijia kuhlmannii, da família do café, tiveram 64% de suas áreas de ocorrência queimadas.

A pesquisa também calculou que 95,5% das 14.593 espécies da região foram impactadas em algum grau, com sua área afetada ficando entre 10 a 15%. Apesar da percentagem parecer pequena, “do ponto de vista ecológico, é um grande impacto”, explica Neves.

“No caso da vegetação, o impacto é mais direto. As plantas podem morrer instantaneamente ou sofrer com alteração do solo em termos hidrológicos e físico-químicos”. Já no caso dos animais, diz Neves, “os que não morrerem por causa do fogo vão se mover para outra área já ocupada por outras espécies, competindo por recursos. Eles colonizam um espaço ecológico que não é infinito”.

De forma mais geral, segundo o professor, os impactos à biodiversidade causados pelo fogo vão afetar também a regulação do clima local e regional e a resiliência da floresta, já que as espécies não estão preparadas para enfrentar essa condição.

“O fogo consolida a devastação do desmatamento em si. Ele muda as características do solo e pode mudar as características microambientais de hidrologia e afetar o banco de sementes, que estava lá preparado para germinar”.

Desregulação e queimadas

A análise de focos de fogo em vinte anos permitiu aos pesquisadores relacionar o número de incêndios e áreas queimadas ao contexto regulatório brasileiro.

Houve um período pré-regulação – sem regulação florestal – de 2001 a 2008, caracterizados por recordes de desmatamento e queimadas na Amazônia. A partir de 2008, uma série de políticas ambientais rígidas foi colocada em prática ao lado de um maior investimento nos órgãos de fiscalização, o que diminuiu drasticamente o número de queimadas e desmatamentos entre 2009 e 2018.

“Foram anos bons”, avalia Neves. “O Brasil era considerado referência no combate ao desmatamento, dada a diminuição expressiva dos desmatamentos da Amazônia. Tudo isso em 2016 começou a ser desmantelado aos poucos”.

O desmonte descrito pelo pesquisador refletiu no terceiro período observado no estudo: o ano de 2019, considerado o “mais extremo para a biodiversidade amazônica”. Apenas naquele ano, uma área entre 4.253 a 10.343 km² queimou, 20% maior do que o esperado pela seca. Foram 12 mil espécies impactadas só naquele ano.

“Apesar de estar aumentando nos anos mais recentes, a seca explica até certo ponto o fogo. Existe um número expressivamente maior de queimadas do que a seca poderia explicar, que é relacionado ao desmonte das políticas públicas ambientais”, conclui Neves.

Na Nature, os pesquisadores argumentam que “o relaxamento das políticas de desmatamento no Brasil resultou na crescente degradação da área das espécies e seus habitats”. Por isso, os resultados de 2019 são piores do que os registrados nos anos de regulação.

Um outro estudo recente, publicado na Biological Conservation, aponta esse desmonte das políticas públicas ambientais. De janeiro de 2019 a setembro de 2020, o governo de Jair Federal assinou 57 atos que enfraqueceram o sistema de proteção ambiental brasileiro.

Para Neves, da UFMG, dentre as políticas de desregulação ambiental, houve desde a diminuição da aplicação de multas, o sucateamento dos órgãos ambientais cujos orçamento executados ficaram aquém da média dos bons anos, até a lacuna de servidores públicos.

O enfraquecimento da máquina pública de fiscalização aparece no déficit dos servidores. De acordo com um levantamento do jornal O Globo, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) tinha em 2001 mais de 4 mil servidores. As projeções para 2022 indicam apenas metade desse número, o que equivale a apenas 26,6% das vagas dos fiscais necessários para a proteção ambiental.

O déficit de servidores no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) também é grande, de quase 1.300 funcionários.

“Tínhamos um sistema que funcionava relativamente bem, mas ao invés de melhorá-lo, ele acabou sendo desmantelado”, lamenta Neves.

 
 

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