Para pensar os chamados Grandes Projetos de Desenvolvimento

foto do gigantesco campo de obras, que se estende por todo horizonte

DOI: 10.33009/amazonia2021.11.2

Os discursos de modernização do espaço e de progresso técnico geralmente encontram nos chamados grandes projetos de des-envolvimento¹ uma espécie de paradigma espacial fundacional, ou seja, pelos olhos de planejadores do Estado e de alguns intelectuais. Há um atrelamento imediato e acrítico, que esvazia o debate, entre megaempreendimentos econômicos e o chamado desenvolvimento. Essa reflexão pretende ser uma entrada crítica nesse debate, tentando demonstrar algumas marcas de expressão do que vem se convencionando chamar de “grandes projetos”, no sentido de ampliar nosso olhar sobre eles.

Diversos níveis de paredes de pedra do canteiro de obras de Belo Monte.

Canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Projetos mineiro-metalúrgicos, petroquímicos, grandes usinas hidrelétricas, estradas, portos, hidrovias, ferrovias, megaempreendimentos de requalificação e reestruturação urbanos. Todos esses seriam exemplos contundentes do que estamos chamando aqui de grandes projetos. Uma primeira marca desses megaempreendimentos se caracteriza pela concentração, centralização e intensividade espaço-temporal de investimentos (VAINER, 2010).

Essa concentração, centralização e intensividade é uma necessidade, vale dizer, para fazer funcionar alguns setores específicos da economia, como o da exploração intensiva de recursos naturais, vide os setores mineiro-metalúrgico e petroquímico. Entretanto, essa racionalidade também está em outros dois segmentos: o energético, especialmente em relação à construção de grandes usinas hidroelétricas, sendo Belo Monte o caso mais exemplar; e o setor de construção civil e de logística, que viabiliza megaempreendimentos urbanos, mas também estradas, portos, hidrovias e ferrovias.

Mas, afinal, o que há de comum entre setores? O que há de comum, por exemplo, entre o projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, o maior projeto de extração de ferro do mundo, o S11D, da empresa Vale S. A., situado em Carajás, o projeto do mineroduto Minas-Rio e as grandes intervenções urbanas ligadas à Copa do Mundo de 2014 ou às Olimpíadas de 2016?

A resposta provisória a tal questionamento só pode ser construída se entendemos que esses empreendimentos significam, antes de mais nada, grandes apropriações de terras, do subsolo, da água, da biodiversidade… Em outras palavras, um movimento rentista de transformação de bens comuns em mercadoria, seja pelo barramento de um rio para produzir energia, seja pelo saque exponencial de minérios para exportação, seja pelo desenho logístico de infraestruturas a cortar e sangrar outros territórios, seja ainda, pela valorização rentista da terra urbana.

Foto aérea do Xingu, mistura de floresta, água e terra vermelha

Vista aérea do rio Xingu nas proximidades da constrição da hidrelétrica de Belo Monte. As obras causaram grandes impactos ambientais na região. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Por essa característica comum chegamos a uma segunda marca destes megaempreendimentos, uma vez que a concentração, centralização e intensividade dos investimentos, particularmente nos setores econômicos acima elencados, têm uma motivação fundamental. É a necessidade capitalista de incorporação de novas áreas até então não plenamente interligadas às dinâmicas do capital, ou mesmo a reestruturação das articulações mercadológicas anteriores de dados espaços em processos de destruição criativa.

Nesse sentido, os grandes projetos fazem parte de um processo de “ajuste espacial”, pois eles se articulam à dinâmica de abertura de novas fronteiras a uma lógica de acumulação de capital que produz riqueza, inicialmente, pela transformação de bens comuns em mercadoria. Pelos grandes projetos, portanto, o capital expande seu domínio territorial sobre espaços que não estavam totalmente incorporados aos circuitos da acumulação global, o que significa, entre outras coisas, um violento processo de apropriação e expropriação de recursos naturais, terras e territórios: acumulação por espoliação (HARVEY, 2005).

Esse movimento de expansão das fronteiras de um capitalismo extrativo, fossilista e rentista sempre carrega discursos de progresso. A chegada do “novo”, mesmo que signifique destruição e violência, sempre carrega o discurso do triunfo, talvez porque, para se processar o “ajuste espacial”, faz-se necessária a instalação de um novo sistema técnico no território. Aí está, então, a terceira marca dos grandes projetos: a necessidade de expansão de um novo meio técnico-científico e informacional, ou seja, novos sistemas de objetos e de ações para a consolidação de uma base produtiva e logística capaz de imprimir velocidade e fluidez – atributos fundamentais na reprodução do capital (SANTOS, 1996).

Caminhões fora de estrada em minas de ferro, grandes pontes sobre imensos rios, o gigantismo de usinas hidrelétricas, o caminho sem fim de um mineroduto, de uma estrada, de uma ferrovia, a imagem asséptica de uma nova cidade… tudo isso começa a fazer parte de discursos e imagens que passam a compor o imaginário dos lugares onde se instalam os grandes projetos.

Entretanto, não podemos esquecer que a base da dinâmica de produção de riqueza e valor desses megaempreendimentos é a transformação de bens comuns em mercadoria. Didaticamente falando, é a transformação de uma terra indígena em uma área de extração mineral. É o atravessamento de territórios quilombolas, camponeses e de outras populações tradicionais por um mineroduto, uma ferrovia ou uma rodovia. É a expulsão de comunidades inteiras para o alargamento de processos extrativos. É a desapropriação de bairros inteiros para processos de requalificação urbana. É a inundação de povoados, comunidades e povos pelos lagos resultantes dos barramentos dos rios… O que estamos querendo dizer é que não há instalação de grandes projetos sem mudanças devastadoras, violentas e traumáticas nos espaços nos quais eles se instalam.

Um homem caminha de costas em um lixão. Há centenas de abutres sobrevoando o local

Antigo lixão na cidade de Altamira, onde cerca de 60 famílias trabalhavam coletando material reciclável. (Anderson Barbosa/ Amazônia Latitude)

Essa marca de violência e devastação nos leva a uma quarta marca dos grandes projetos. Além de uma nova densidade técnica no território para a instalação desses megaempreendimentos, é necessário criar uma outra densidade normativa, um modo de regulação do território que implica na flexibilização ou supressão de instrumentos jurídicos, como leis, códigos e zoneamentos (ACSELRAD, 2013). Uma verdadeira desnormatização tem como intuito “alisar” o espaço, ou seja, retirar os “obstáculos” jurídicos para, assim, redefinir o acesso, o controle e os usos do território.

O exemplo paradigmático do Programa Grande Carajás (PGC), que integrou vários grandes projetos na Amazônia, nos dá a exata noção dessa desnormatização. O Programa foi criado por um conjunto de estruturas institucionais e regimes normativos especiais para garantir a sua implantação. O primeiro decreto-lei de nº 1.813, de 24 de novembro de 1980 instituiu um regime especial de incentivos aos empreendimentos integrantes do PGC, além de criar uma estrutura institucional especial para geri-lo, qual seja, o Conselho Interministerial do Programa Grande Carajás, ligado diretamente à secretaria de planejamento da presidência da república.

No mesmo dia, foi lançado o Decreto-lei nº85.387, que definiu a composição e atribuição do Conselho Interministerial criado, concedendo um tratamento especial e preferencial a um conjunto de medidas na região de abrangência do PGC. São 12 itens, valendo destacar a “concessão, arrendamento e titulação de terras públicas”, o estabelecimento de “contratos para o fornecimento de energia elétrica” e a “autorização para o funcionamento de empresas de mineração” (BRASIL, 1980, n/p). Em um único dia, portanto, dois decretos criaram um regime especial de incentivos e uma estrutura política de exceção, suspendendo as relações institucionais na região, além de conceder garantias de tratamento diferenciado à questão fundiária, energética e de concessão e autorização de lavra dos minérios.

Falamos do Programa Grande Carajás, mas poderíamos falar da UHE de Belo Monte que, mesmo diante de um conjunto de suspensões na justiça de sua obra, continuou a ser erguida na região da Volta Grande do Xingu no Pará, sem respeitar nem sequer as condicionantes exigidas nos Estudos de Impacto Ambiental. Ou mesmo poderíamos falar das leis de exceção da Copa, das Olimpíadas…

A observância das leis, que deveria ser a condição para execução de qualquer empreendimento numa democracia, simplesmente vira uma escolha política quando se trata dos grandes projetos. Quando não se desobedece, flexibiliza-se, ou mesmo, criam-se legislações especiais, o que faz com que esses megaempreendimentos, muitas vezes, efetivem-se legalmente fora da lei. Neles, portanto, os limites de nossas democracias são expostos pela ascensão do estado de exceção e de uma governamentalidade autoritária do território.

Dessa forma, criam-se verdadeiros territórios de exceção, onde ocorre, também, a suspensão do estado de direito de indivíduos e de grupos (direitos ambientais, territoriais, trabalhistas, direitos humanos e da natureza), minando as garantias fundamentais da vida.

Essas marcas fundamentais até aqui elencadas já nos permitem a desvinculação imediata e acrítica entre grandes projetos e desenvolvimento, mas também nos permitem construir uma crítica a uma noção que, por muito tempo, figurou na explicação desses megaempreendimentos, a saber: a ideia de enclave. Essa noção só tem algum sentido explicativo se reduzirmos os projetos neles próprios em uma perspectiva econômica autocentrada, que desconsidera que eles participam de uma dinâmica regional de mudanças, reestruturações e impactos, que alteram, sobremaneira, as lógicas de produção e organização do espaço e as relações de força e controle do território nas regiões onde se instalam.

Um grupo de indígenas usa enxadas na beira de um rio

Indígenas Munduruku da aldeia do Teles Pires. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Mas uma quinta marca talvez nos permita aprofundar nessa crítica e, ao mesmo tempo, ampliar o entendimento dos grandes projetos. Essa quinta marca se refere aos processos de rupturas e fraturas metabólicas que esses empreendimentos provocaram, afetando paisagens, ecossistemas e toda a dinâmica geo-bio-física dos espaços onde são implantados, promovendo mudanças e reestruturação socioespacial e ambiental na escala local e regional.

Não podemos esquecer que a instalação dos grandes projetos acompanha uma lógica de expansão capitalista pela espoliação, o que demonstra que há uma integração necessária entre os setores em que a concentração, centralização e intensividade dos investimentos se dão, ou seja, extração, logística, energia, grandes infraestruturas andam juntas; ou ainda, estamos falando da imposição de um metabolismo social do capital reestruturando o metabolismo social da vida.

Para o saque mineral se realizar, ele precisa, além dos processos de extração, de uma logística de transporte e exportação. Para a drenagem de energia acontecer, falamos das Usinas Hidroelétricas interligadas a grandes linhões de distribuição, mas também falamos de grandes estradas que garantem a realização dos fluxos capitalistas de verdadeiros corredores de monocultivos de soja, dendê, cana…

A montagem de eixos capitalistas de exploração, rentismo e exportação transforma os grandes projetos na expressão espacial das dinâmicas de espoliação. Por isso, desde os processos de apropriação e transformação até às dinâmicas de circulação e excreção, os grandes projetos impõem um metabolismo do capital que alteram regionalmente dinâmicas de realização da vida.

Trata-se, portanto, da destruição de mundos e da expropriação da energia vital de múltiplos sujeitos, pois tal processo afeta, de maneira dramática, os recursos e os modos de vida de camponeses, indígenas, quilombolas e dos povos e comunidades tradicionais em geral, resultando em intensos conflitos ambientais e territoriais, o que gera milhares de “refugiados do desenvolvimento” (VAINER, 2010).

Esse caminho de violência e devastação não parece ser tão observado pela maioria daqueles que analisam os grandes projetos. Por isso, uma sexta marca desses megaempreendimentos é sua transformação em um dispositivo epistemológico, ou seja, um centro hipnótico de análise que faz com que boa parte da ciência consiga colocá-los num caminho de acertos, do progresso e da modernidade.

A entrada critica aqui proposta quis ver a colonialidade inscrita, mas não dita, que é condição para a realização dos processos denominados de modernização. Os rastros de violência e ruínas nos locais, onde se instalam e regiões que atravessam os grandes projetos, são modos de nos tirar da hipnose de leituras de mundo que transformam o outro afetado e atravessado por esses empreendimentos em uma exterioridade absoluta à análise.

Das reflexões propostas, podemos pensar os grandes projetos, em síntese, por uma dinâmica de concentração, centralização e intensividade espaço-temporal de investimentos que se faz necessária em processos capitalistas de espoliação, que incorporam novos espaços até então não plenamente interligados às dinâmicas do capital.

Neles, instala-se um novo sistema técnico no território, mas, também, uma outra densidade normativa, que flexibiliza ou suspende ordenamentos jurídicos para tornar legítimos verdadeiros processos de rupturas e fraturas metabólicas. São rupturas que afetam paisagens, ecossistemas e toda a dinâmica geo-bio-física; afetações regionais que muitas vezes são ignoradas por quem reflete sobre essas megaempreendimentos, uma vez que eles também se forjam como dispositivos epistemológicos que escondem os rastros de violência e devastação que produzem.

Um indígena de pé em uma canoa no meio do rio. Ele está sem camiseta e segura um arco grande.

Povos indígenas da região tiravam seu sustento do rio antes da construção de Belo Monte. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Entretanto, para completarmos o movimento crítico, é necessário que entendamos que a geografia dos grandes projetos não é apenas constituída de movimentos do capital. Nem somente das ruínas produzidas por esses movimentos, uma vez que essa geografia é também feita de lutas, conflitividades e antagonismos que se amplificam, expressando-se em uma diversidade de formas de r-existências.

Assim, a luta dos povos e comunidades em defesa dos rios, das florestas, da terra e dos seus territórios contra a racionalidade dos grandes projetos é uma luta em defesa da vida, que tenciona e politiza os processos e os sentidos de apropriação da natureza.

Essas lutas nos exigem um deslocamento de nossas referências espaço-temporais para pensarmos mais em envolvimentos e criação de vínculos e menos em des-envolvimento. Não nos parece haver horizonte de futuro sem debatermos como garantiremos as condições materiais da vida, e são essas lutas que tencionam nossa atual crise civilizatória. São essas lutas que nos fazem repensar os processos de produção e consumo e os limites da natureza. Suas agendas, portanto, ultrapassam suas particularidades; nelas, outros horizontes de sentidos se constroem como uma aposta pela vida.

Referências

Bruno Malheiro é doutor em Geografia e professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Coordena o Laboratório de Estudos em Território, Interculturalidade e R-existência na Amazônia (LaTierra- Unifesspa). É um dos autores do Livro “Horizontes Amazônicos: para repensar o Brasil e o Mundo”, Expressão Popular/ Rosa Luxemburgo, 2021.
Valter do Carmo Cruz é doutor em Geografia e professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Território, Ações Coletivas e Justiça NETAJ-UFF.

 
 

Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Assine e mantenha-se atualizado!

Não perca nossas histórias.


Translate »