Belo Monte afetou qualidade de vida de ribeirinhos da região

Foto aérea da floreta nas margens do Xingu

DOI: 10.33009/amazonia2021.11.14

Passados dez anos daquele fatídico 5 de julho de 2010, data da chegada do comboio das primeiras máquinas no cais de Vitória do Xingu (PA) para trabalhar na construção da usina de Belo Monte, os povos tradicionais e ribeirinhos na região ainda enfrentam a precarização do modo de vida.

De lá para cá, manifestações dos povos indígenas e movimentos sociais contra o projeto marcaram a trajetória da hidrelétrica, fazendo com que sua construção fosse um dos conflitos mais emblemáticos do país durante vários governos.

Mais do que disputas pelo uso de recursos, estão em jogo vidas, tradições, costumes e experiências atravessadas pela noção problemática de desenvolvimento, na qual a construção se baseou.

“Nós tínhamos uma vida de liberdade. Acabaram nossos peixes, acabou nossa vila, o verde do lago que a gente cuidava. Violaram os nossos direitos e jogaram a gente como se fosse uma coisa descartável”, lembra o ribeirinho Leonardo Batista, 61, mais conhecido como Aranô.

Desde o início da construção da usina, o pescador precisou deixar sua casa por conta das remoções. Ele se viu obrigado a morar com a filha em uma área urbana de Altamira (PA) — um modo de vida totalmente oposto ao que conhecia à beira do rio Xingu.

Com a mudança de território, o pescador perdeu contato com os irmãos e entrou num profundo processo de desgaste emocional.

Um barco parado em uma parte rasa do rio Xingu

Área de alagamento após o barramento do rio Xingu. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Aranô não aguentou morar muito tempo em Altamira. Não por causa da cidade; ele sentiu falta da vida que levava junto à família nas margens do rio Xingu. Resolveu, ao lado de outros ribeirinhos, ocupar um terreno à margem do rio, onde atualmente vive em um barraco de lona. Contudo, a região já não era mais a mesma devido às alagações.

“No começo eu não tinha prazer em nada”, conta Aranô. “Caí numa depressão que quase morri. Estou há oito meses numa aflição sem saber como viver. Com 61 anos de idade andando por aí, pedindo as coisas. Criei meus filhos com o dinheiro da pesca e hoje, para sair de casa, preciso de R$100,00 para gasolina e ir à cidade. Isso não é vida. Ganhava esse valor em seis horas de pesca”.

Quando eu ando nesse lago,
Lamentando a minha dor,
Olhando pra natureza a nossa maior riqueza
que Belo Monte acabou

Com um projeto de construção que ultrapassou 40 bilhões de reais, sendo a maior parte financiada com recursos do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), a Usina Hidrelétrica de Belo Monte é uma das maiores hidrelétricas do mundo. O custo humano de sua implementação, no entanto, é incalculável.

Os lagos de Belo Monte, como são chamadas as áreas inundadas do reservatório principal de água da Usina, imergiram grande parte de um território pertencente a 300 famílias de 15 comunidades ribeirinhas. São pessoas como o pescador Aranô, que sofreram impactos na saúde, na educação e nos laços sociais após o deslocamento compulsório.

Conselho Ribeirinho

Devido às violações de direitos humanos sofridas, cinco anos após a primeira máquina ser ligada para construção da Usina, a comunidade tradicional da Amazônia na região criou, em dezembro de 2016, o Conselho Ribeirinho. O intuito era cobrar do consórcio empresarial responsável por Belo Monte os direitos das famílias removidas nas margens do rio Xingu.

Uma das líderes do movimento comunitário é Josefa de Oliveira, estudante de geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e filha de ribeirinhos, criada no Beiradão do rio Xingu. “Depois de dez anos da construção da obra, todas as mazelas que foram previstas em estudos sobre os impactos no modo de vida das populações se confirmaram”, lamenta Oliveira.

Acampamento com faixa: Pare Belo Monte

A Vila de Santo Antônio foi uma das primeiras comunidades a ser diretamente impactada pelas obras. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude).

O relatório de Vistoria Interinstitucional na Volta Grande do Xingu (PA) feito pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Pará e outras dez instituições em 2019, apontou que a Usina de Belo Monte colocou em risco os ecossistemas, a produção da vida e a sobrevivência das populações da região. São conclusões que confirmam as denúncias e críticas feitas pela líder ribeirinha.

Segundo o relatório, que analisou documentos, audiências públicas, ações judiciais e a própria vistoria, Belo Monte causou “impactos sobre o meio ambiente e as condições de vida, muitas situações de penúria e carência material”. São problemas que vão da escassez de peixes, dificuldades de navegação até à precariedade de postos de saúde.

Ocorreu uma desestruturação da vida econômica e social como parte do processo de expulsão silenciosa das populações locais. É o que avalia o professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e relator nacional de direitos humanos da Plataforma Dhesca Brasil, Luiz Fábio. “Várias comunidades que viviam da pesca, da floresta e dos rios foram deslocadas para a periferia da cidade. Elas perderam suas possibilidades de sobrevivência. Esse projeto foi altamente destrutivo”, conclui.

Ainda segundo Luiz Fábio, há um número grande de jovens sem emprego, renda e projeto de futuro. “Foi uma tragédia que afetou o modo de vida das pessoas. As práticas criminais que ocorrem na cidade estão atreladas às mudanças estruturais sociais com a construção da usina”. Para ele, as transformações sociais são vistas nos altos índices de criminalidade na região, na intensa circulação de drogas e na briga entre facções criminosas.

Para a líder ribeirinha Josefa Oliveira, as pessoas em Altamira adoeceram mentalmente e perderam os filhos para a criminalidade quando foram obrigadas a sair dos baixões da cidade para reassentamentos urbanos distantes. “Quem é de fora acha que é uma melhoria de vida. Mas, para quem passou a vida próximo do rio e igarapés foi um impacto muito grande. O que diz a felicidade da pessoa não é como é construída sua casa, mas sim o lugar onde vive e isso foi tirado”, acrescenta.

Altamira deixou de ser uma cidade com hábitos interioranos, como dormir com a janela aberta e caminhar pelas ruas sem preocupação, para se tornar uma das cidades mais violentas do Brasil. De acordo com o Atlas da Violência de 2019, a cidade foi a segunda mais violenta do país, com o registro de 133,7 homicídios a cada 100 mil habitantes.

 
 

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