Marco temporal para terras indígenas desrespeita regras da Constituição

indígenas com cocar de pensas com cor de terra com punho em riste
Parecer do professor José Afonso da Silva, da USP, argumenta que o reconhecimento dos direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam é anterior à data de promulgação da Constituição de 1988

Em 2016, a pedido de instituições como Centro de Trabalho Indigenista e Instituo Socioambiental, José Afonso da Silva, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP e advogado, elaborou um parecer jurídico sobre a tese do marco temporal de demarcação de terras indígenas, que será julgado hoje (2) no Supremo Tribunal Federal.

Um dos pontos analisados pelo parecer foi a constitucionalidade do marco temporal. A pergunta dizia: É correto interpretar a atual Constituição como se ela tivesse limitado os direitos originários dos povos indígenas às suas terras ao estado da ocupação em 5 de outubro de 1988, impedindo demarcações para etnias que só conseguiram retornai terras tradicionais depois dessa data?

A Amazônia Latitude reproduz parte do parecer que responde essa pergunta.

“Marco temporal de ocupação das terras indígenas pelos índios” é um dos conceitos questionáveis estabelecidos pelo acórdão proferido no processo da Petição 3.388 sobre as Terras Indígenas Raposa da Serra do Sol. Questionável em primeiro lugar porque foi fixado pretorianamente de modo arbitrário como sendo a data da promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988. Questionável também por ter dado ao conceito uma dimensão normativa com aplicação geral a todos os casos de ocupação de terras indígenas.

Vejamos como a ementa do acórdão enuncia o conceito:


O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa – a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígine: ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que ocupam.

Juntaram-se aqui dois conceitos que, na forma como estão sendo entendidos, são nitidamente espoliadores dos direitos fundamentais dos índios: o marco temporal em 5 de outubro de 1988 e o renitente esbulho [descrito em outra parte do parecer].

Diz o texto do acórdão que “A Constituição Federal trabalhou com data certa, a de sua promulgação a 5 de outubro de 1988”. Onde está isso na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data, se ela nada diz a esse respeito nem explícita nem implicitamente. Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do art. 231 sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão. Ao contrário, se se ler com a devida atenção o caput do art. 231, ver-se-á que dele se extrai coisa muito diversa. Vejamos:

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, língua, crenças, tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las. proteger e fazer espeitar todos os bens.

Se são “reconhecidos… os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, é porque já existiam antes da promulgação da Constituição. Se ela dissesse: “são conferidos, etc.”, então, sim, estaria fixando o momento de sua promulgação como marco temporal desses direitos.

Mas não foi isso que a Constituição estabeleceu. A Constituição de 1988 revela um grande esforço da Constituinte no sentido de preordenar um sistema de normas que pudesse efetivamente proteger os direitos e interesses dos índios. E o conseguiu num limite bem razoável.

Não alcançou, porém, um nível de proteção inteiramente satisfatório. Teria sido assim, se houvera adotado o texto do Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos, reconhecidamente mais equilibrado e mais justo. É inegável, contudo, que ela deu um largo passo à frente na questão indígena, reconhecendo direitos fundamentais dos índios e suas comunidades.

O ponto importante nos textos constitucionais e que deve ser aqui salientado – como notado por Manuela Carneiro da Cunha – é que se trata do reconhecimento da posse imemorial dos índios, de seus títulos anteriores aos de quaisquer outros ocupantes, e não uma proteção transitória, apenas assegurada aos índios enquanto o exigisse seu estado de vulnerabilidade.

Ou seja, pela facilidade com que podem ser lesados, os índios são protegidos pela tutela. Mas seus direitos à terra independem claramente dessa tutela, na medida em que são fundamentados na sua condição de seus primeiros donos.

Mostra isso que a Constituição de 1988 é o último elo do reconhecimento jurídico-constitucional dessa continuidade histórica dos direitos originários dos índios sobre suas terras e, assim, não é o marco temporal desses direitos, como estabeleceu o acórdão da Petição 3.388.

O termo “marco” tem sentido preciso. Em sentido espacial, marca limites territoriais. Em sentido temporal, marca limites históricos, ou seja, marca quando se inicia situação nova na elocução de algo. Pois bem, o documento que deu início e marcou o tratamento jurídico dos direitos dos índios sobre suas terras foi a Carta Regia de 30 de julho de 1611, promulgada por Felipe III, nos seguintes termos:

Os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na serra sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstia ou injustiça alguma, nem poderão ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando eles livremente o quiserem fazer.

Aqui temos inequivocamente um marco temporal o reconhecimento jurídico-formal dos direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam.

Outro marco nessa continuidade histórica está no reconhecimento constitucional daqueles direitos. Por que, neste caso, temos um marco temporal? Porque se dá àqueles direitos uma nova configuração jurídico-formal, retirando-os das vias puramente ordinárias para consagrá-los como direitos fundamentais dotados de supremacia constitucional. Isso, como visto, se deu com a Constituição de 1934, cujo art. 129 os acolheu numa síntese expressiva essencial:

“Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”.

As demais Constituições deram continuidade a essa consagração formal até à Constituição de 1988 que acrescentou o reconhecimento de outros direitos, como se pode ver do ser art. 231. Mas, no que tange aos direitos originários sobre as terras indígenas, a Constituição de 1988 não inovou, porque, no essencial, já constavam das Constituições anteriores, desde a de 1934.

Então, se há um marco temporal a ser firmado, este é o da data de promulgação da Constituição de 1934, qual seja 16 de julho de 1934 que, por primeiro, deu consagração constitucional a esses direitos e garantia de sua proteção efetiva. Isso não significa que se exija a presença física dos indígenas na área exatamente nesta dada como requisito essencial para a caracterização da tradicionalidade da ocupação, pois, por qualquer motivo independente de sua vontade podiam estar afastados dela na data referida.

A Constituição de 1988 é importante na continuidade desse reconhecimento constitucional, mas não é o marco, e deslocar esse marco para ela é fazer um corte na continuidade da proteção constitucional dos direitos indígenas, deixando ao desamparo milhares de índios e suas comunidades, o que, no fundo, é um desrespeito às próprias regras e princípios constitucionais que dão proteção aos direitos indígenas.

Vale dizer: é contrariar o próprio sistema constitucional, que deu essa proteção continuadamente. Romper essa continuidade significa abrir brechas para a usurpação dos direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, como provam decisões como a que foi prolatada no Recurso Ordem e Mandado de Segurança 29087.

Mesmo assim, para bem realçar esse corte prejudicial aos direitos dos índios, vou transcrever uma passagem do voto do Min. Gilmar Mendes no RMS 29087, in verbis:

Importante foi a reafirmação de marco do processo demarcatório, a começar pelo marco temporal de ocupação. O objetivo principal dessa delimitação foi procurar dar fim a disputas infindáveis sobre as terras, entre índios e fazendeiros, muitas das quais, como sabemos, bastante violentas.

Fica claro, por esse texto, que o objetivo do marco estabelecido não é a proteção dos direitos dos índios, ainda que essa proteção seja uma exigência da Constituição, que até determina competir à União demarcar as terras, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. A Constituição o diz no caput do art. 231, mas o Supremo Tribunal Federal diz o contrário em última instância.

Fica claro também que o objetivo enunciado é o de dar fim a disputas infindáveis sobre as terras não pelo cumprimento da regra constitucional que manda proteger e fazer respeitar todos os bens dos índios, ou seja, não pela coibição e repressão aos usurpadores, mas pela cassação dos direitos dos índios sobre elas. Fica claro ainda, segundo esse voto, que os conflitos entre índios e fazendeiros devem ser resolvidos em detrimento dos direitos dos índios, sem se levar em conta as normas constitucionais que os protegem!

Essa é a consequência da fixação arbitrária do marco temporal de ocupação na data da promulgação da Constituição de 1988 e não da Constituição de 1934, repita-se a primeira a reconhecer os direitos dos índios e, portanto, o marco real da proteção constitucional desses direitos.

Assim, respondendo ao questionamento proposto neste parecer, se é correto interpretar a atual Constituição como se ela tivesse limitado os direitos originários dos povos indígenas às suas terras ao estado da ocupação em 5 de outubro de 1988, impedindo demarcações para etnias que só conseguiram retornai terras tradicionais depois dessa data? Respondo:

Não, não é correto interpretar a atual Constituição como se ela tivesse limitado os direitos ordinários dos povos indígenas às suas terras ao estado da ocupação em 5 de outubro de 1988, impedindo demarcação para etnias que só conseguiram retornar a suas terras depois dessa data.

A questão posta pelo quesito se prende ao conceito de marco temporal, ficado pelo acórdão da Pet. 3.388 na data da promulgação da Constituição e 1988, ou seja, 5 de outubro de 1988. Não, não é correta a fixação de um marco temporal coincidente com a data da promulgação da Constituição de 1988.

O termo “marco” tem sentido preciso. Em sentido espacial, marca limite territorial. Em sentido temporal, como é o caso, marca limites históricos, ou seja, marca quando se inicia algum fato evolutivo. O documento que marcou o início do reconhecimento jurídico-formal dos direitos dos índios foi a Carta Régia de 30 de junho de 1611, promulgada por Fellipe III que firmou o princípio de que os índios são senhores de suas terras, “sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstias ou injustiça alguma.

Aqui temos inequivocamente um marco temporal: o reconhecimento dos direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam. Outro marco nessa continuidade histórica está no reconhecimento constitucional desses direitos, por que, neste caso, temos um marco temporal? Porque se dá àqueles direitos uma nova configuração jurídico-formal, retirando-os das vias puramente ordinárias para consagrá-los como direitos fundamentais dotados de supremacia constitucional.

Isso se deu com a Constituição de 1934, cujo art. 129 os acolheu numa síntese essencial. Demais Constituições deu continuidade a essa consagração até à Constituição de 1988 que acrescentou outros direitos, como se pode ver do art. 231. Mas, no que tange aos direitos originários sobre terras indígenas, foi a Constituição de 1934 que marcou seu início. Portanto, se há um marco temporal a ser assinalado este o da data da promulgação da Constituição de 1934, qual seja 16 de julho de 1934 (cf. item 16 supra).

A Constituição de 1988 é muito importante na continuidade desse reconhecimento constitucional, mas é o último elo da cadeia; portanto, não é o marco, e deslocar o marco temporal da data da promulgação da Constituição de 1934 para ela corresponde a fazer um corte violento nessa continuidade, deixando milhares de índios e suas comunidades ao desamparo, o que, no fundo, é um desrespeito às próprias regras e princípios constitucionais que dão garantia aos direitos indígenas.

Parecer completo

Foto de destaque: Mídia Ninja

 

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