Os Povos da Floresta e o Econegócio

pés de uma mulher indígena de chinelo sobre um chão terroso. Há pinturas geométricas em suas canelas.
É impossível discutir diversidade biológica na Amazônia sem contar com o conhecimento dos povos da floresta; o “uso racional da floresta” do econegócio às vezes se esquece disso

Corriam os anos 80 e os conflitos por terra e território se acentuavam em todo o mundo. A Amazônia se internacionalizava de outro modo: Amazônia em Chamas era uma manchete que se repetia enquanto novos personagens entravam em cena no debate ambiental.

Registre-se que, até então, esse debate estava restrito ao primeiro mundo e aos organismos internacionais, em geral, respondendo à mobilização que emanava de setores das classes médias. Indígenas e camponeses, como os seringueiros da Amazônia, assim como os negros dos bairros pobres dos EUA ampliavam o debate ambiental ensejando o que, mais tarde, Martinez Allier chamaria de ecologismo popular.

O ano de 1987 é um marco dessas novas contradições que se abrem. Naquele ano, Chico Mendes recebia o Prêmio Cidadão Global 500, conferido pela ONU por sua (r)existência contra o avanço do capital na Amazônia. A Comissão Brundtland, da ONU, nos oferecia o conceito diplomático de Desenvolvimento Sustentável e, no Acre, terra de Chico Mendes, o governo estadual criava a FUNTAC – Fundação de Tecnologia do Acre. No ano seguinte, 1988, a Revista Time elegia a Terra Ameaçada como Personalidade do ano e Chico Mendes era brutalmente assassinado em 22 de dezembro.

Desde finais dos anos 80, o debate sobre os destinos da Amazônia se mostra em torno de três vertentes, ainda que expressando uma contradição básica entre os modos de vida tradicional e o capitalismo colonial.

De um lado, aqueles cuja experiência prática se inspira na tradição milenar de conhecimentos forjados há mais de 10.000 anos e que se atualiza com a presença de mais de 180 povos/etnias indígenas, de camponeses vários, de ribeirinhos e seringueiros, de quilombolas e de migrantes de outras regiões do Brasil; aqueles que vêm praticando sistemas agroflorestais e agroecológicos com base numa convivência criativa com o enorme potencial de produção de biomassa da própria floresta, em grande parte herança dos conhecimentos indígenas.

De outro lado, dois projetos capitalistas coloniais, ainda que diferentes entre si: um, tradicionalmente devastador, que explora predatoriamente a floresta num complexo que envolve grilagem de terra, exploração ilegal de madeira, criação de gado, plantação de commoditties que, na prática, se conecta com a outra vertente capitalista colonial que reivindica uma convivência harmoniosa com a floresta em pé através de novas tecnologias, o econegócio.

Assim, se estabelece um embate epistêmico e político em torno das duas vertentes que reivindicam a floresta em pé e se colocam contra a vertente abertamente predatória. De um lado, os povos da floresta, conforme aliança encabeçada por Ailton Krenak, Davi Kopenawa Yanomami e Chico Mendes e, de outro lado, os que propugnavam pelo “uso racional da floresta”, como a FUNTAC que, na Amazônia, foi a primeira versão do econegócio.

Ainda que a visão capitalista colonial predatória não tenha sido contida, como os anos seguintes registraram com o avanço do desmatamento e da violência, uma nova narrativa começou a circular em torno da ideia de compatibilizar o desenvolvimento com o meio ambiente, tal como formulara o Relatório Brundtland da ONU.

Pude acompanhar de perto o estranhamento de Chico Mendes, a quem assessorava naquele então, diante do discurso dos técnicos da FUNTAC falando de “uso racional da floresta” que, no fundo, disputavam o sentido de convivência com a Floresta, estabelecido por outras racionalidades não centradas na tradição dos EUA. A conflitividade se acentuava mostrando que não se tratava somente de um debate técnico-teórico, ainda que o fosse.

Em 1987, o então governador do Acre, Sr. Flaviano Mello, visitara o Rio de Janeiro para participar de um evento no Clube de Engenharia objetivando atrair investimentos para o Acre para explorar projetos elaborados com base no princípio de “uso racional da floresta”.

Nesse mesmo dia, pistoleiros praticaram um atentado contra os companheiros de Chico Mendes, em Xapuri e, no Rio de Janeiro, vários ativistas impediram que o governador do Acre expusesse suas ideias, pedindo seu comprometimento com a apuração da violência que acabara de ser praticada contra os seringueiros no Sindicato de Trabalhadores Rurais de Xapuri.

A luta dos seringueiros se nacionalizava; ela já estava internacionalizada com os vários prêmios internacionais que os povos da floresta receberam através de Chico Mendes, Ailton Krenak e Davi Kopenawa Yanomami.

Homem indígena usando um cocar que emoldura seu rosto, com o punho cerrado.

Indígenas dos povos Xerente, Krahô, Krahô Takaywra, Xokleng, Kaingang, Terena, Guarani e Kaiowá, Kinikinau, Munduruku, Tupinambá e Arapium realizam uma caminhada pela Esplanada dos Ministérios, Brasília. Foto: Mídia Ninja.

A Amazônia com seus mais de 800 milhões de km² de extensão, com uma floresta que abriga, em média, entre 500 a 700 toneladas de biomassa por hectare. Suas árvores são constituídas em mais de 60% por água, conformando um “oceano verde” cuja evapotranspiração redistribui águas por vastas regiões das Américas e dos Oceanos Atlântico e Pacífico através dos “rios voadores”.

A Amazônia se tornara, publicamente, uma região importante para a dinâmica metabólica do clima de planeta, sobretudo para sua dinâmica climática, hídrica e por sua biodiversidade cujos vírus, fungos e bactérias são, agora, estacados pela pandemia.

Um velho ditado diz que alguns veem a árvore, mas não veem a floresta. O debate atual mostra que se vê a floresta, sim, mas a reduzindo à função climática/hídrica, não vendo que se trata de uma floresta que, em seus 12.000 anos (Aziz Ab’Saber), sempre foi habitada por povos que coevoluíram com a floresta.

E ninguém convive um largo tempo como esse em um ambiente sem saber caçar, sem saber coletar, sem saber pescar, sem saber curar-se de doenças com suas medicinas, sem saber proteger-se das intempéries com suas arquiteturas.

Enfim, ninguém vive sem saber. No fazer há sempre saber. E os que agora veem a floresta (e não veem os povos que nos legaram todo esse patrimônio de conhecimentos tecidos com ela convivendo 12.000 anos), sequer se dão conta, com seus bloqueios cognitivos derivados de sua colonialidade, que mais que ensinar, eles têm muito a aprender com esses povos e grupos sociais que ali habitam.

Esses novos colonizadores do econegócio não veem sequer as árvores, pois nelas veem carbono e material genético que não são visíveis a olho nu, como os grupos sociais e povos que ali habitam conformaram suas culturas.

Com soberba, os think tanks do ecobusiness esquecem o fato básico de que toda função metabólica que a floresta cumpre pode continuar a fazê-lo se não houver nenhuma invasão de seus territórios e sem um dólar sequer, como o fizeram durante milênios. Basta que se respeite seus povos.

E, mais, as regiões onde estão as maiores reservas planetárias de biodiversidade e água são aquelas que, por alguma razão, escaparam de serem “civilizadas” ou “desenvolvidas”. No fundo, escaparam da nova versão da Lei de Lavoisier: natureza nada se perde, tudo se transforma em oportunidade de (eco)negócio.

Assim, aqueles povos e grupos sociais que convivem com a floresta amazônica há tanto tempo não precisariam de nenhuma “ajuda para o desenvolvimento”, como arrogantemente se lhes propõe. Isso não os impede de intercâmbios vários, como é da natureza da evolução dos povos, aliás como o demonstram os múltiplos povos que ali habitam com suas múltiplas origens linguísticas.

Muitos dos escravos que se libertaram cimarroneando/aquilombando pela floresta souberam desfrutar da sua produtividade biológica primária (Leff) e dos ensinamentos dos povos indígenas que muito aprenderam com eles.

Portanto, alto lá! Que o intercâmbio não se defina de fora para dentro, colonialmente. Esse maná, que é a floresta e seus rios, lhes proporcionou condições de liberdade, assim como os ribeirinhos e outros povos que chegaram à Amazônia em busca de terra de trabalho/terra de vida e não em busca terra de negócio (José de Sousa Martins).

A Amazônia é um patrimônio que seus povos legaram a todo o planeta e à humanidade. A civilização centrada nos EUA que se impôs colonialmente ao mundo e se vê, hoje, em caos sistêmico, inclusive com seu padrão de poder e de saber (Aníbal Quijano) que acreditou dominar a natureza (sic), deve ser capaz de respeitar essas outras matrizes de conhecimento. Deve respeitar outras razões e modos de ser, com suas outras matrizes de racionalidades, e respeitar a máxima deixada por Chico Mendes: não à defesa da floresta sem os povos da floresta.

Grupo de povos da floresta sentados juntos. Um deles está de pé, apontando para a esquerda. Ele usa um cocar amarelo pequeno.

Lideranças indígenas de várias regiões do país participaram do Encontro Mebengokrê que aconteceu no Parque do Xingu. Foto Mídia Ninja.

E Chico Mendes tinha lá suas razões para desconfiar daqueles que afirmavam o “uso racional da floresta”, mas não respeitavam essas outras matrizes de racionalidade. A métrica do carbono que vem sendo colonialisticamente proposta tem, até mesmo, impedido o uso do fogo bom com que seus povos queimaram a floresta durante mais de 10 mil anos sem que a destruíssem.

As ONGs e o capital financeiro e estados que as financiam com seus planos de manejo do carbono hipotecado nas bolsas de valores têm impedido a queima de pequenas áreas para não lançar CO² na atmosfera. Ignoram que aqueles povos sempre usaram o fogo bom, como eles chamam diferenciando-se do fogo do capital que devasta.

Assim, o econegócio está inventando um novo tipo de latifúndio, o latifúndio genético. De nada adianta a demarcação dos territórios dos povos da floresta se não se respeitam suas territorialidades. É disso que se trata quando se impede o uso do fogo bom ou quando se criminaliza Osmarino Amancio Rodrigues, um dos principais companheiros de Chico Mendes, por retirar madeira para reparar sua casa.

Por mais que tenham conseguido demarcações de amplos territórios como RESEX, por exemplo, os povos da floresta têm sido impedidos de exercer suas territorialidades pelo econegócio do carbono. Estão entre a Cruz, a Espada e o Dinheiro: de um lado, os que querem devastar seus territórios expulsando-os e, de outro, os que querem manter a floresta em pé, mas os tutelando, não respeitando suas territorialidades.

Se queremos aprender a fazer um bom manejo florestal, não nos faltam bons exemplos, como a Amazônia com suas florestas, rios e os conhecimentos de seus povos e outros grupos sociais hoje triplamente ameaçados.

Registre-se que as áreas identificadas com maior riqueza em diversidade biológica na Amazônia são aquelas milenarmente ocupadas por seus povos. A Amazônia não é um vazio demográfico! Vida Longa aos Povos da Floresta! O planeta e a humanidade, em sua diversidade, agradecem. Que se respeitem seus territórios e, principalmente, suas territorialidades!

Carlos Walter Porto-Gonçalves é professor Titular do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. É Coordenador do LEMTO – Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades.
A Chico Mendes (1944-1988) In Memoria
Foto destaque: Mídia Ninja

 
 

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