Pandemia agrava vulnerabilidades de famílias venezuelanas e expõe violações a direitos sociais

Foto de diversas barracas colocadas sob um barracão
Rodoviária de Boa Vista. Foto Diane Sampaio/Correio do Lavrado

[RESUMO] A pandemia agravou as vulnerabilidades de famílias venezuelanas que imigraram para o Brasil em busca de uma vida melhor. Sem documentos, o grupo enfrenta dificuldades e violações de direitos tanto no percurso de chegada, com fronteiras fechadas, quanto na burocracia para o acesso a serviços básicos. Dentre eles, o Primeira Infância em Boa Vista, que cuida da gestação e do crescimento de crianças de até 6 anos, ainda tem barreiras para famílias indocumentadas.

“Você não pode ficar aqui”. Estas foram as primeiras palavras em português que Frank** aprendeu quando chegou a Roraima em janeiro de 2021. Ele e a esposa Adriannys, na época grávida de oito meses, arriscaram a vida atravessando a pé a fronteira terrestre Venezuela-Brasil pelas trochas, como são denominadas as rotas clandestinas, em uma área semi-montanhosa que separa os dois países.

O salário de professor na Venezuela – algo como dez reais por mês – era insuficiente para Frank sustentar a família, que decidiu migrar para a Colômbia em 2019. Ele acreditava que seria mais fácil conseguir um trabalho e revalidar o diploma, o que não ocorreu. De volta ao país natal, o casal arrumou novamente a pouca bagagem e partiu em busca do desconhecido.

Homem de costas, com uma máscara preta no rosto, olhando para uma bandeira do Brasil.

“Tenho fé de que minha vida vai mudar”, diz Frank. Foto: Diane Sampaio/Correio do Lavrado

Com a fronteira fechada desde março de 2020, quando a pandemia do novo coronavírus foi declarada e o Brasil decidiu impedir a entrada de estrangeiros, com a justificativa de prevenção e redução de riscos à saúde, a alternativa que Adriannys e Frank tinham era caminhar a pé por horas, correndo o risco de serem flagrados, presos e até deportados. “Não tínhamos dinheiro para pagar o coiote. Precisávamos de R$ 800, uma cifra relativamente alta. Negociei com o coiote, entreguei meu relógio e meu sapato”, recorda o professor.

A negociação foi suficiente para chegar ao lado brasileiro da fronteira. A partir dali a caminhada continuou. “Quando caminhei, não sabia para onde ia. Só sabia que era um lugar chamado Boa Vista. Chorei. Nunca imaginei que fosse passar por isso na minha vida”, conta Frank. “Eu me sentia como uma criminosa, uma fugitiva que poderia ser capturada a qualquer momento”, acrescenta Adriannys.

Nas comunidades indígenas de Pacaraima onde pararam, os dois receberam ajuda de algumas pessoas: um casal cedeu um colchão inflável com furinhos, que vazou todo o ar na madrugada; e um senhor, também venezuelano, ofereceu o quarto e dividiu o pouco de comida que tinha.

Eu tinha 95% de vontade de voltar para a Venezuela. Era um domingo. Foi o primeiro dia que amanheci no Brasil. Deus me deu mais um dia de vida. Quantas pessoas hoje não podem abrir os olhos? Levantei e disse ‘vamos embora, meu amor’. Recolhi o colchão e agradeci

Os R$ 200 que a família de Adriannys mandou foram fundamentais para a compra das passagens de táxi até a capital roraimense. Em Boa Vista, o corpo dela cobrou a fatura pelo excesso de esforço físico feito durante a longa caminhada, mas nada grave. Passado o susto e ainda sem a regularização migratória, suspensa naquela época em razão da portaria de fechamento de fronteira, o casal foi para o Posto de Recepção e Apoio da Operação Acolhida, instalado nas proximidades da Rodoviária Internacional da cidade.

Naquela época, outras centenas de famílias venezuelanas estavam na mesma situação, dormindo em barracas de campanha e recebendo alimentação a partir de doações. Criou-se então uma estratégia, liderada pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur) e pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), para identificar as pessoas hipervulneráveis, como famílias com crianças, pessoas com problemas de saúde ou sob grave ameaça física.

Essas famílias, incluindo a de Adriannys e Frank, foram encaminhadas para os abrigos da Operação Acolhida, uma força-tarefa humanitária coordenada pelo Governo brasileiro com o apoio de organismos internacionais e entidades da sociedade civil. “Na rodoviária, dormimos em uma barraca, sem colchão, e era melhor segurar a necessidade fisiológica do que usar o banheiro. Um mês depois, fomos para o Abrigo Pricumã. Já havia uma cama, podíamos tomar banho a hora que quiséssemos, podíamos usar um banheiro digno”, relata Frank.

Dois dias depois, Adriannys sentiu as dores do parto e deu à luz uma menina no Hospital Materno-Infantil Nossa Senhora de Nazareth. De janeiro a maio desse ano, 4.066 partos foram realizados na única maternidade pública de Boa Vista, sendo 824 de mulheres venezuelanas. “Minha esposa entrou com dores, fez exercícios, sentiu as contrações… Todo o processo do parto foi uma experiência única. Ela estava andando quando a bebê nasceu, eu me abaixei e recebi minha filha em minhas mãos. Ainda não sabíamos se era Victoria ou Victorio”, conta o pai.

Homem segura um bebê nos braços

Frank com a filha Victoria, na época com dois meses, no colo. Foto: Diane Sampaio/Correio do Lavrado

Mesmo abrigada nas instalações da Operação Acolhida, a família continuava em situação irregular no Brasil. Frank sequer conseguiu registrar a filha no cartório, o que só aconteceu depois de muita insistência. Com o registro de nascimento da pequena brasileira em mãos, Adriannys foi regularizada, mas Frank não.

O documento permitiu que a mãe e a bebê fossem interiorizadas, atuação da Operação Acolhida que facilita o transporte voluntário de refugiados e migrantes venezuelanos para outros estados, e reencontrassem a mãe e a filha mais velha de Adriannys no Rio Grande do Sul. “O processo me dói, claro. Quando eu voltarei a vê-las? Não sei. Algum dia? Sim, Deus vai permitir. Enquanto isso, estou fazendo cursos de capacitação e quero voltar a ser professor”. Esse era o desejo de Frank no dia que se despediu no aeroporto da esposa e da filha, que comemorava o segundo mês de vida.

Uma mulher encosta a cabeça no ombro de um homem na fila de espera em um aeroporto.

Adriannys e a filha foram interiorizadas, enquanto Frank aguardava regularização migratória. Foto: Diane Sampaio/Correio do Lavrado)

O sonho de estar junto da família novamente logo se tornou realidade e, em dois meses, Frank conseguiu a regularização migratória, podendo ser interiorizado com a garantia de uma vaga de emprego com carteira assinada. “Eu não teria saído da Venezuela se não fosse por causa da minha filha. A Venezuela é o nosso país, onde está a nossa vida, nossos amigos, nossas histórias… O Brasil é um país de oportunidades e eu agradeço por toda a ajuda que recebi aqui, onde minha filha terá um futuro melhor”.

Na mesma semana, o Governo brasileiro editou nova portaria, permitindo a execução de medidas de assistência emergencial para acolhimento e regularização migratória a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária, especificamente vindas da Venezuela.

Violações pelo meio do caminho

O longo caminho percorrido pelos pais de Victoria em busca de melhores condições de vida em plena pandemia foi repleto de obstáculos. Alguns físicos, outros sociais. O 1º Informe Defensorial: Relatório de monitoramento dos direitos humanos de pessoas migrantes e refugiadas em RR, da Defensoria Pública da União, retrata essa situação:


A pandemia de covid-19 não apenas agravou a situação de vulnerabilidade dos migrantes venezuelanos no Brasil, mas, sobretudo, descortinou violações que vão além do vírus, como os diversos problemas estruturais, e já existentes, relacionados ao acesso a direitos de pessoas imigrantes indocumentadas, o direito dos povos indígenas não-brasileiros e à resposta humanitária dada ao fluxo venezuelano. Além de expor situações já existentes, a pandemia de covid-19 marcou um grave retrocesso nos avanços alcançados pela Lei de Migração, ao criar a figura da ‘deportação imediata’ e determinar a ‘inabilitação de pedido de refúgio’, com nítido caráter discriminatório para o tratamento dos não-brasileiros advindos da República Bolivariana da Venezuela

João Chaves, defensor público federal e coordenador do Grupo de Trabalho de Migrações, Apatridia e Refúgio da Defensoria Pública da União (DPU), considera inefetivas as portarias de fechamento de fronteira, uma vez que restringem a entrada de pessoas por via terrestre, mas permitem por via aérea. “Além da previsão absolutamente ilegal de deportação imediata na fronteira, de não considerar o direito da criança e do adolescente ser acolhido no Brasil, algo previsto pela Lei de Migração, é uma medida pouco inteligente porque o fechamento de fronteiras não impediu a circulação de pessoas e permitiu uma migração irregular muito grande, gerando um verdadeiro bolsão de pessoas em situação irregular, sem documentos, mas vivendo no Brasil”, assevera.

Para a diretora de programas da Conectas Direitos Humanos, Camila Asano, deixar pessoas em situação migratória irregular é fomentar um espaço onde elas serão colocadas à margem da sociedade e ficarão ainda mais vulneráveis. “Essas pessoas ficam invisíveis aos olhos da proteção social. Se a criança não existe à luz das estatísticas, é muito difícil conseguir protegê-la”.

A opinião é compartilhada, em parte, pelo coordenador operacional da Operação Acolhida, general Antônio Manoel de Barros. “Se ele [migrante] não está regularizado, é como se não existisse para o Estado brasileiro. Seus direitos e obrigações vão se perdendo. Porém, temos que trabalhar dentro da legalidade e da legitimidade do caráter humanitário da operação”, afirmou durante coletiva de imprensa sobre a flexibilização da fronteira.

Sob várias perspectivas, diz Camila da Conectas, a regularização migratória é benéfica: na lógica da Segurança Pública, é melhor que se tenha acesso às informações dos migrantes. Pelo viés financeiro, pessoas regularizadas podem investir, abrir pequenos negócios, buscar linhas de crédito e aquecer a economia. Para as políticas públicas, é importante ter acesso ao número de pessoas para que o gestor possa conduzir as medidas de curto, médio e longo prazo.

Quanto à situação de crianças, Chaves da defensoria pública lembra que o problema se potencializa porque na Venezuela não são emitidas cédulas de identidade para crianças abaixo de nove anos. “O que vemos é a entrada de um grande número de crianças, acompanhadas ou não, que não têm documentos com fotos e simplesmente não são contadas, ou seja, não estão nos mapeamentos, não são monitoradas pelas estruturas do Brasil de proteção à infância. Com isso, abre-se a porta para o aumento do tráfico infantil, de desnutrição, de problemas de saúde e de evasão escolar”, exemplifica.

O defensor acredita que o fundamental seria colocar a criança em primeiro lugar, pondo o aspecto da infância no centro das atenções. “Infelizmente não é o que ocorre. Seguimos batalhando para que as crianças tenham prioridade, que se garanta o direito de qualquer criança entrar no Brasil. Superada essa fase crítica da pandemia, vai ser muito importante discutir esse tema, dar atenção real à toda a infância”, conclui.

Indocumentados, famílias não têm acesso ao principal programa para a Primeira Infância em Boa Vista
Placa marrom que diz: Bem-vindo à Boa Vista. Capital da Primeira Infância

Placa na entrada de Boa Vista. Foto: Diane Sampaio/ Correio do Lavrado

Referência no desenvolvimento de ações voltadas para o início da vida, Boa Vista investe desde 2013 nos cuidados com a Primeira Infância, quando criou o programa Família que Acolhe, política pública integral que cuida da criança desde a gestação até os seis anos, garantindo acesso à saúde, educação e desenvolvimento social.

Em oito anos, o programa já beneficiou mais de 18 mil famílias. Durante a gravidez, as mães participam de encontros quinzenais temáticos, como idade gestacional, importância do pré-natal, dos exercícios físicos e dos vínculos com o bebê ainda na barriga, trabalho de parto e amamentação.

Após o nascimento, os encontros passam a ser voltados ao desenvolvimento da criança e são chamados de Universidade do Bebê. “Isso acontece para que a mãe possa aprender e oferecer estímulos à criança, para que ela se desenvolva de forma saudável e adequada de acordo com a idade”, esclarece a superintendente de Programas e Projetos do Família que Acolhe, Elane Florencio.

Outros benefícios oferecidos às famílias são acompanhamento mensal de saúde, doação de enxoval no nono mês de gestação e de três latas de leite por mês a partir do primeiro ano da criança. Também é garantida vaga nas Casas Mães, como são chamadas as creches em Boa Vista, se a família tiver pelo menos 75% de presença nas atividades da Universidade do Bebê. A partir dos três anos da criança, o acompanhamento da Primeira Infância continua nas Casas Mãe ou nas escolas.

Famílias de baixa renda ou em situação de vulnerabilidade são o público-alvo do programa. A mulher deve estar grávida de até vinte semanas, com exceção das adolescentes de até 19 anos, que podem ingressar no programa em qualquer período gestacional por serem um público vulnerável.

Apesar de não exigir comprovação da renda para a inscrição, é necessário que a pretensa beneficiária apresente RG, CPF, comprovante de residência, cartão do SUS, cartão da gestante e cartão do Bolsa Família, se possuir. Indocumentadas, as migrantes e refugiadas que poderiam ser beneficiadas pelo Família que Acolhe não conseguem acessar o programa.

É o caso de Denise**, de 21 anos, que migrou para reencontrar o filho, de seis anos, que vive no Brasil com a avó desde 2019. “Vim da Venezuela para cá por necessidade. Foi um momento horrível”, relembra a jovem, que estava grávida de um mês quando atravessou a fronteira pelas trochas. A gestação só foi descoberta no Brasil.

Ainda aguardando a regularização migratória, Denise conseguiu atendimento na rede pública de saúde, direito garantido a todos, onde faz o acompanhamento pré-natal e recebe os suplementos nutricionais recomendados. Grávida de três meses e morando em uma ocupação espontânea com o marido, ela diz que nunca ouviu falar no programa Família que Acolhe.

Uma grávida de vestido verde com a mão na barriga. Ela segura uma caderno escrito Caderneta da Maternidade

Denise atravessou a fronteira pelas trochas a pé e não sabia que estava grávida. Foto: Diane Sampaio/Correio do Lavrado.

Coordenador do Grupo de Trabalho de Migrações, Apatridia e Refúgio da Defensoria Pública da União, o defensor público federal João Chaves cita um trecho da Lei de Migração, de 2017, “que diz algo muito simples”: Ao migrante, é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como é garantido o acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória.

“Ou seja, o migrante pode trabalhar sem documentos, a criança tem direito à educação, à saúde. Existe uma dificuldade do Estado brasileiro em encarar essa situação. O acesso à política pública é a porta de entrada para a documentação, para a regularização migratória, não o contrário”, afirma.

Elane Florencio, do Família que Acolhe, garante que o programa atende igualmente todas as famílias, independentemente da nacionalidade. “Claro que o maior público, fora os brasileiros, é de venezuelanos por conta da migração. Mas, para se cadastrar, a gestante precisa estar legalizada. Se aparece alguma beneficiária que não possui documentação, encaminhamos para a rede de assistência social fazer o atendimento e orientar para a regularização”, justifica.

O defensor público reconhece que a política pública para a Primeira Infância em Boa Vista é de excelência, mas que é preocupante a existência de pequenas restrições. “É muito assustador que, em 2021, num contexto de emergência, de pandemia, com serviços restritos, se crie esse fetiche inexplicável por documentação, quase como se a criança estivesse errada em existir. A gente tem uma tendência de só pensar nos grandes empecilhos. Quando você vai somando os pequenos empecilhos, as ausências, os fluxos não transparentes, você enxerga o grande problema”.

Criança Feliz nas carpas

Inspirado no Família que Acolhe, o Criança Feliz – programa de Atenção à Primeira Infância do governo federal – tem como ponto central a visita semanal de técnicos às casas das famílias de baixa renda para acompanhar e estimular o desenvolvimento das crianças até os três anos de idade.

Para adaptar a estratégia de visitas domiciliares ao contexto dos abrigos, onde mais de uma família mora na mesma carpa (barraca), o Ministério da Cidadania e o Fundo das Nações Unidas para a Infância estão desenvolvendo um projeto piloto do Criança Feliz. A meta é elaborar um modelo de visita que possa ser replicado em outras partes do país e que funcione em qualquer realidade de domicílio.

“Roraima está servindo como uma grande escola de como o Brasil pode adaptar as suas políticas públicas para a Primeira Infância. Daqui podem sair vários bons modelos, várias boas referências, se houver um trabalho articulado”, acredita a chefe do escritório do Unicef em Roraima, Marcela Bonvicini.

Três abrigos da Operação Acolhida participam do projeto piloto: Rondon 1, Rondon 3 e Pintolândia, esse destinado à população indígena warao. “A gente tem muita dificuldade em atuar com as famílias nos abrigos porque estão sob estresse, sob vulnerabilidade e parece que não sobra tempo para o afeto no seio familiar. Com esse projeto, queremos fomentar a parentalidade, tornando esses ambientes mais saudáveis, levando em consideração a diversidade cultural. O que é o cuidado parental para os warao? Você não pode simplesmente importar uma estratégia, que é a visita domiciliar com a mãe e o pai, se o conceito de cuidado daquela comunidade for diferente”, acrescenta.

Esta reportagem foi publicada originalmente no Correio do Lavrado e recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship: Desigualdade e Covid-19 no Brasil, Venezuela e Colômbia”, do Dart Center of Journalism and Trauma, da Columbia University
**Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados

 
 

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