Aos povos indígenas, o fel. Aos grileiros, o mel

Floresta derrubada. Apenas um árvore em pé.
Área recém derrubada para plantação de soja em Santarém, Pará
Projeto de Lei “2.633”/2020 (PL da Grilagem) anuncia que crime compensa e suscita debate do tratamento judiciário a povos indígenas e grileiros

No final de seu primeiro ano de mandato, o presidente Bolsonaro editou a Medida Provisória nº 910\2019, apelidada de a “MP da Grilagem”. Tal norma se propôs a anistiar a ocupação ilícita e o desmatamento de vastas extensões de terras públicas, inclusive em territórios indígenas não homologados, possibilitando a concessão de títulos de propriedade aos invasores.

Depois de ampla mobilização social, a MP foi retirada de pauta e substituída pelo Projeto de Lei nº 2.633\2020, que guarda os mesmos objetivos, e ontem, 03\08\2021, foi aprovado no Plenário da Câmara dos Deputados. Seguirá ao Senado e, caso aprovado, será submetido à sanção do Presidente da República.

O fato anuncia o claro comunicado de que o crime compensa, bem como suscita um importante debate: qual o tratamento jurídico que o Estado brasileiro tem dispensado às reivindicações por terra de dois segmentos populacionais antagônicos, os povos indígenas e os grileiros? O intento destas linhas é inventariar algumas recentes medidas que denotam o quão discrepante é a resposta estatal a essas pretensões.

Para esse fim, poderíamos nos remeter a um passado remoto, em que institutos como as sesmarias e as capitanias hereditárias, e expedientes normativos como as Cartas Régias e a Lei de Terras, já inauguravam o processo de legitimação formal de um plano capitalista que aniquila as alteridades e mira os territórios dos povos originários como fontes extrativas de recursos naturais. No entanto, foquemos no tempo presente, cuja análise permite uma constatação: de um lado, uma progressiva flexibilização das regras exigíveis para a regularização fundiária de posses particulares ilícitas; de outro, uma crescente contenção do regime jurídico pertinente ao reconhecimento e defesa estatal dos territórios indígenas.

Na realidade, o PL 2.633 associa-se a diversos outros atos normativos, dentre eles, exemplificativamente, a MP 255, de 2005, a MP 422, de 2008 e a MP 458, de 2009, editadas nos governos de Lula, e a MP 759, de 2016, editada no governo de Michel Temer. Chama a atenção o fato de todos esses atos terem sido veiculados inicialmente por meio de Medidas Provisórias, provenientes, portanto, do Poder Executivo, que não possui atribuição constitucional precipuamente legiferante, evidenciando, portanto, o caráter de estado de exceção que marca as questões fundiárias brasileiras.

Outro traço em comum desses atos é o estabelecimento de um marco temporal sucessivamente postergado para que invasões ilícitas de áreas públicas, as vulgarmente denominadas grilagens, sejam perdoadas e se tornem lícitas, configurando-se “um ciclo pelo qual ilegalidades geram leis, e essas leis geram novas ilegalidades” (TORRES; CUNHA; e GUERRERO, 2020).

Indígena segura uma cruz e um instrumento, usando um cocar e uma máscara. Ao fundo, lê-se: STF defendam nossos direitos

Indígenas dos povos Xerente, Krahô, Krahô Takaywra, Xokleng, Kaingang, Terena, Guarani e Kaiowá, Kinikinau, Munduruku, Tupinambá e Arapium realizam uma caminhada pela Esplanada dos Ministérios, Brasília. Foto: Mídia Ninja.

Em fevereiro de 2021, o governo federal lançou o Programa Titula Brasil, que busca acelerar a concessão de títulos de propriedade privada em áreas rurais da União. Enquanto isso, as demarcações de terras indígenas estão completamente paralisadas desde abril de 2018, quando houve a última homologação no país. Desde então, nenhuma reivindicação indígena por reconhecimento territorial avança, fazendo com que as violências que vitimizam os povos indígenas e sedimentam um caminho de reanimação do genocídio se agravem.

Práticas racistas e discriminatórias, negações de identidade e acesso às políticas públicas, invasões e explorações ilegais de recursos naturais por terceiros, projeções e construções de grandes obras de infraestrutura, bem como reintegrações de posse determinadas pela justiça, possuem, na grande maioria das ocasiões, um fator gerador comum: a omissão estatal em reconhecer e proteger os territórios.

Levantamento realizado e publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI, 2020) evidencia com clareza a escalada exponencial da violência em face dos povos indígenas e suas terras desde 2019. O número de invasões aos territórios e crimes contra a pessoa cuja vítima é indígena mais do que dobrou em comparação aos números correspondentes a 2018, que já apresentavam alta em relação aos anos anteriores.

Foi a partir de 2019 que o estado exceptivo que acomete os povos indígenas no Brasil se intensificou. O Poder Executivo Federal, incumbido da tarefa de demarcar as terras indígenas, passou a ter seu cargo máximo, o de Presidente da República, ocupado por alguém confessadamente contrário às reivindicações por terra desses grupos. “Não demarcarei um centímetro quadrado a mais de terra indígena. Ponto final.” , vaticinou Jair Messias Bolsonaro, em 12 de dezembro de 2018, dois dias após sua diplomação, que ocorrera justamente no dia internacional dos direitos humanos declarado pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Já em 04 de julho de 2019, no exercício do cargo, Bolsonaro deixou claro a quem serve sua gestão: “esse governo é de vocês” , declara em café da manhã com deputados da Frente Parlamentar da Agropecuária, principal força política e econômica anti-indígena.

Mas não são apenas discursos e omissões que marcam o presente do agir estatal em relação aos povos indígenas. O primeiríssimo ato do governo Bolsonaro foi a edição da Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019, que, dentre outras intenções, buscava transferir as atuais atribuições relativas à demarcação das terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai), autarquia vinculada ao Ministério da Justiça, para a então criada Secretaria de Assuntos Fundiários, titularizada por Luiz Nabahn Garcia, empresário do ramo do agronegócio e que durante muito tempo presidiu a União Democrática Ruralista, entidade anti-indígena. Não convertida em lei em tempo hábil, a MP perdeu eficácia.

Descontente, Bolsonaro reeditou o ato, por meio de outra Medida Provisória, que também foi derrubada, em virtude de decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu vício formal consistente na reedição de MP idêntica na mesma sessão legislativa.

Em 22 de abril de 2020, há exatos 520 anos da eclosão do maior genocídio da história do Brasil, o tal “descobrimento”, um outro ataque. A Presidência da Funai expediu a Instrução Normativa nº 09, por meio da qual o órgão, que é incumbido legalmente de promover a defesa dos direitos dos povos originários e assegurar a higidez dos territórios ocupados por esses grupos, determinou a exclusão de todas as terras indígenas que não estejam no último estágio de reconhecimento estatal da base de dados do Sistema de Gestão Fundiária nacional, tornando-as invisíveis.

Na prática, a Instrução, assim como fizeram as Medidas Provisórias acima mencionadas, se dispõe a validar detenções e posses particulares de imóveis incidentes no interior de terras indígenas. Vale frisar: a Constituição de 1988 é clara, são nulos e não produzem efeitos jurídicos atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio ou a posse de imóveis sobrepostos às terras indígenas.

Mais uma vez, o Estado se mobiliza para desproteger as terras dos indígenas e incentivar a ocupação privada. A Funai, que, pela Lei, deveria estar integralmente voltada a defender os direitos dos povos indígenas, rompe com seu dever institucional, promovendo e celebrando a privatização de terras.

O Poder Judiciário, que também guarda o compromisso constitucional com a defesa dos direitos territoriais indígenas e que, portando, deve fazer cessar a mora e as ofensivas, tem falhado. Indubitavelmente, o mais emblemático exemplo recente de intervenção judicial nociva aos direitos territoriais indígenas foi o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Petição n° 3.388, que tratou da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

Na ocasião, o STF, apesar de ter reiterado o caráter meramente declaratório do ato administrativo que demarca as terras indígenas, estabeleceu 19 (dezenove) condicionantes aos processos administrativos de demarcação. Algumas delas fulminam a autonomia dos povos indígenas sobre seus territórios.

Mas o ponto alto do exercício opressor de poder pela Corte máxima da Justiça brasileira neste caso foi a fixação de um marco temporal, em 05 de outubro de 1988 (data de promulgação da atual Constituição), para que seja possível o reconhecimento da posse dos povos indígenas em suas terras. Em outras palavras, disse o Supremo que apenas os povos indígenas que estivessem em seus territórios na referida data teriam direito ao reconhecimento estatal.

Desprezou-se, assim, práticas espoliatórias virulentas que vitimaram esses grupos no período pré-constituinte, inclusive com a morte de milhares de indígenas no período imediatamente anterior ao advento da Constituição, a ditadura civil-militar¹.

Ocorrido em 2009, e apesar de aplicável unicamente ao caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o julgado inspira desde então diversas outras decisões judiciais país afora e foi alçado à posição de principal pauta reivindicada pelos ruralistas. Deu azo, inclusive, à edição da Portaria n° 303/2012, da Advocacia-Geral da União, que orientava toda a Administração pública federal a se pautar nas condicionantes estabelecidas, representando entrave às demarcações. Após ampla mobilização dos indígenas, a aludida Portaria foi revogada.

A pressão do setor do agronegócio pela compulsoriedade e aplicação automática das condicionantes a todos os processos administrativos de demarcação em trâmite jamais cessou desde a decisão do Supremo. Tanto que em 19 de julho de 2017, a Advocacia-Geral da União publicou o Parecer n° 01, que, assim como a Portaria n° 303, antes invalidada, atribuiu efeitos vinculantes ao julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, obrigando Funai e o Ministério da Justiça a observar todas as condicionantes, inclusive o marco temporal.

O mais recente ataque às demarcações no país é o requentado Projeto de Lei n° 490, protocolado na Câmara dos Deputados em 2007, mas que somente em junho de 2021 voltou à tona das discussões, tendo sido aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara ao mesmo tempo que centenas de indígenas protestavam e eram reprimidos violentamente em Brasília.

Dentre as muitas perversidades e inconstitucionalidades incluídas no aludido PL e suas emendas está a tentativa de elevação do status normativo do “marco temporal”, que deixaria de se sustentar no Parecer n° 01 da AGU (norma infralegal) e passaria a constar em lei em sentido estrito. O PL, que, se definitivamente aprovado, pode vir a representar a institucionalização do fim das demarcações no país, segue para ser votado no plenário.

Até o fim de agosto de 2021 esse campo de disputa poderá vir a ficar em menor desequilíbrio. Está mais uma vez previsto para ocorrer no STF o sucessivamente adiado julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que trata do território do povo Xokleng, em Santa Catarina, que poderá expurgar de vez a insensatez constitucional denominada de “marco temporal”.

A diferença em relação ao julgamento de 2009, que incutiu esse disparate, é que agora a apreciação terá, formalmente, efeitos gerais a todos os processos de demarcação no país. Outra distinção é que na conjuntura atual não existe mais qualquer dúvida: há uma guerra declarada em face dos povos indígenas e a arma que mais se maneja é o Direito. Ao manusear essa arma no julgamento, poderá o Supremo retirar do alvo os povos indígenas e, por conseguinte, a Constituição.

Rerefências

Foto de destaque: Amazônia Latitude
Luís de Camões Lima Boaventura é mestrando em Direito pela Universidade de Brasília, na linha Movimentos Sociais, Conflitos e Direitos Humanos. Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Procurador da República.

 

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