Interculturalidade e Ecologia: parte 2

interculturalidade ecologia protesto demarcação
Indígenas em protesto contra a transferência da demarcação de suas terras para o Ministério da Agricultura, em Março de 2019. Foto: APIB.

[RESUMO] Esta é a segunda parte do artigo. Leia a primeira aqui. Como referência para propor a interculturalidade ecológica, o autor utiliza referências nas sociedades amazônicas.

1.2 Os saberes dos povos ancestrais da Amazônia

Nossas sociedades na América indígena são resultado de um intenso processo histórico de convergência de culturas. Enquanto o conceito pluricultural é utilizado para caracterizar o aspecto social, a interculturalidade descreve a relação entre as culturas dentro de um determinado contexto.

Interculturalidade é parte dos processos históricos de encontro e interação entre culturas. O que se pensou foi que este processo teria como resultado uma homogeneização, mas o que ocorreu foi um processo de influência entre as culturas, em que as diferenças permanecem e ao mesmo tempo evoluem. Como a interculturalidade nos ajuda a compreender o contexto religioso amazônico?

Na Amazônia, a convergência histórica da cultura indígena com a ibérica, afro e nordestina fez nascer um contexto pluricultural e intercultural particular, com influências recíprocas que ainda hoje geram convergências e divergências, porém sempre num dinamismo relacional. Aspectos culturais indígenas estão presentes no cotidiano dos amazônidas, assim como elementos ocidentais, principalmente no aspecto linguístico.

O projeto colonizador procurou elaborar representações de inferiorização e demonização da cultura daqueles que foram colonizados, construindo essas formas de poder para o domínio colonial. Deste modo, as culturas e as sociedades locais foram dominadas e exploradas.

“Em todas as sociedades onde a colonização implicou a destruição da estrutura societal, a população colonizada foi despojada dos seus saberes intelectuais e dos seus meios de expressão exteriorizantes ou objetivantes. Foram reduzidas à condição de indivíduos rurais e iletrados”, afirma Aníbal Quijano em “Da Colonialidade à Descolonialidade”.

Os povos ancestrais da Amazônia, assim como os escravizados africanos, foram entendidos como não humanos ou semi-humanos, quase animais, sexualmente monstruosos e selvagens. Hoje, as culturas se esforçam para se conhecerem a partir de si mesmas, para eliminar preconceitos e estereótipos.

A base sobre a qual se assenta a cosmovisão tanto social como religiosa da Amazônia é indígena. Durante o período colonial, a catequização e a evangelização envolveu não somente a imposição de uma visão eurocêntrica sobre os indígenas, mas também a “hibridização”, na medida em que os colonizadores espirituais adaptaram a religiosidade católica, para se adequar às populações não-ocidentais.

Deste modo, os indígenas interpretaram o cristianismo de acordo com os seus próprios quadros culturais. Ao longo do processo de evangelização, o que se teve foi uma “semiose colonial”, ou seja, uma interação de signos e significados europeus e indígenas. Este processo envolveu uma ação criativa por parte dos missionários católicos como dos povos indígenas, apesar de claras assimetrias de poder.

É sobre essas bases fundadoras que se pode compreender o que é a Amazônia e como nos relacionar com ela. A cosmovisão mitológica indígena que estrutura a vida pessoal, social e religiosa quer manter o vínculo umbilical com a terra molhada, suas florestas e rios. Pajelança e espíritos dos encantados definem identidades e sentidos práticos para a vivência do cotidiano aparentemente caótico e desordenado.

Para os povos da América indígena, segundo vários pesquisadores da teologia indígena, “Deus” não é uma realidade para ser explicada, mas uma sabedoria religiosa que se torna resistência, convivência com o cosmo e a natureza. Há múltiplas imagens para se descrever a experiência transcendente, tanto para expressar as origens, como para descrever a condição humana e os acontecimentos.

Antes de ser uma busca racional de interpretação da experiência, é experiência cotidiana da vida, que depois é expressa de modo mítico-simbólico. No vocabulário indígena existem inúmeros termos para designar o sagrado e o divino. Para expressar o mistério, possuem uma linguagem muito rica. Neste sentido e de modo geral se pode falar de um núcleo teológico mais especificamente chamado de “teocosmologia” ou “cosmoteologia” devido a seu ponto de partida.

A maioria dos povos ameríndios não possui a figura de um Deus único, criador e retribuidor, como as religiões monoteístas do Mediterrâneo e Médio Oriente. A maioria desses povos possui figuras mitológicas (demiurgos), cujas ações enaltecem. É uma visão cosmo-humana, mais que antropocêntrica. A religião na sua essência possui uma visão redutiva do tempo e do meio ambiente. O elemento utópico é relacional, o presente inclui o passado e o futuro.

Este aspecto está presente principalmente no rito e na festa. O mundo físico se limita à biosfera, ou à floresta, à terra natal. O mundo sócio-político se encontra, principalmente, na família nuclear, formada por parentes reais ou fictícios, na família extensa (linhagem), nas alianças tribais e intertribais.

O mundo metafísico é constituído de heróis mitológicos, monstros, visagens, espíritos, almas, animais em forma de pessoas que simbolizam seu “alter-ego”. A visão histórica tem o limite dos antepassados imediatos (quatro ou cinco gerações). De modo geral, as ações dos heróis mitológicos aconteceram durante a vida dos antepassados mais velhos.

O sagrado é o agente que tem poder. Sua transcendência se dá neste mundo pelo modo como se manifesta em suas próprias criaturas. Ele possui sinteticamente todos os seres em si mesmo, podendo se transformar em qualquer um deles. As criaturas brotam de dentro de si. Não é um “faça-se” (criacionismo), mas, “eu também sou isso”. Não cria a partir ou sobre a matéria, é autotransformação. O primeiro ser humano continha em si todos os seres e ele mesmo é uma presença transcendente.

Os saberes dos povos amazônicos possuem uma raiz agrária. A natureza é sentida como matriz, útero de vida com a qual o ser humano está umbilicalmente conectado. Participar de sua vida exige outra lógica, distinta daquela da materialização e coisificação da natureza, que leva a uma concepção de desenvolvimento depredador da oikos. Conhecer a natureza é um ato espiritual e embebido de uma compreensão ética do cuidado com aquela que é mãe e base da igualdade entre todos os seres.

Só poderemos aprender com a história da Amazônia na medida em que estivermos disponíveis a valorizar a resistência encarnada de seus povos e sua dinâmica cósmica, ao mesmo tempo em que buscarmos nas tradições culturais, religiosas e comunitárias o que não foi totalmente desfigurado e destruído pela dominação colonizadora.

Resistir significa contribuir para a eliminação de tudo que nos leva a perpetuar a mecânica avassaladora do império, que hoje chega nesta realidade com nomes de “desenvolvimento sustentável”, monocultura, migração forçada, pólo industrial e outros.

2. A cura da terra

A interculturalidade ecológica se torna projeto ético, uma ética do cuidado que tem como destinatário a mãe Terra e as vítimas que sofrem o resultado de sua destruição: no corpo, na marginalização e exclusão social. No interior das culturas, vida e morte se tornam princípio universal para julgar a si mesmas e para engajar no diálogo intercultural e ecológico seus conteúdos. Para Dussel, o critério de verdade é a vida e a morte. Este princípio mede a eticidade de toda norma, ação, instituição ou sistema de eticidade possível.

A cura da Terra na perspectiva pós-colonial pode ser compreendida como descolonização e interculturalidade ecológica. A descolonização refere-se a fatos específicos da luta política de independência e emancipação política. Contudo, a descolonialidade abre a possibilidade para desencadear um processo epistêmico, hermenêutico, compreensivo, político, ético, ecológico e teológico pastoral de deslegitimação da matriz colonial de poder de dominação e opressão do mundo natural e da humanidade. Criando, assim, a possibilidade de ações e estruturas que sejam não-imperiais e não-capitalistas.

Significa adotar caminhos que permitam o surgimento de comunidades e sociedades reguladas pelo princípio do “bem viver” ou do “viver harmonicamente”. Para isto é necessário descolonizar os fundamentos epistêmicos da matriz de poder colonial e elaborar epistemologias decoloniais que ofereçam legitimidade para uma vida individual e coletiva fundada em uma vida harmônica e na reciprocidade. Esta é uma alternativa às sociedades, economias e políticas imperiais e capitalistas baseadas na competição, na exploração da natureza, no consumismo e na meritocracia.

Neste processo, será necessário adotar uma posição frente à violência e à opressão de gênero, denunciar o poder patriarcal destrutivo da natureza, incluindo a vida humana. Assim como elaborar alternativas para erradicar a desigualdade, trabalhando na construção de sociedades equitativas, justas e de convivência harmônica entre os gêneros e suas diversidades.

Curar a Terra e nosso ser terrenal significa criar novas perspectivas de relacionamento com o eu-pessoal, construir e nutrir um novo modo de experimentar e se relacionar com Deus nas diversas relações comunitárias, no exercício do poder e na construção de uma nova relação com a natureza como espaço de vida. Para Boff, “cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto abrange mais que um momento de atenção, zelo e desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento afetivo com o outro”.

A mística intercultural-ecológica dos povos da Amazônia conduz não somente um sentimento de se estar ligado aos antepassados, mas também de “conexão” com os espíritos da natureza. Um aspecto importante é que certas categorias de espíritos estão diretamente relacionadas a árvores, rochas e caminhos, que, por isso, são santificados, sacralizados.

Há um sentimento de ser parte do cosmo vivo e vibrante que possui suas próprias leis misteriosas, intuídas pelas culturas e tornadas práticas cotidianas, ainda que não se consiga compreendê-las totalmente. Estas tradições possuem um forte senso do espírito que atua no mundo, uma ativa presença divina. Para eles não há uma fronteira clara entre o mundo espiritual e a vida diária. Seu mundo é vivo com essa presença.

Há uma grande diferença entre o modo religioso ocidental excluidor e o modo sincrético de explicar o que vemos acontecer no mundo. No modo ocidental, busca-se uma explicação científica a partir da causalidade. Para a maioria das tradições do sincretismo-intercultural, o que se busca é uma explicação pessoal.

Sobre os diversos problemas da vida, como doença, relacionamentos e acontecimentos, a resposta não é dada no aspecto coletivo da estrutura da realidade, mas muito mais no aspecto pessoal — o que ou quem está causando a situação. Em outras palavras, a explicação de como acontece não é suficiente, o mais importante é porque isto está acontecendo a esta pessoa.

Normalmente, dentro deste contexto religioso, a ênfase se dá na esfera do mito, do ritual e da celebração. A expressão mais concreta de sua percepção espiritual está na dança, no canto, na incorporação das entidades e nos mitos poéticos. Na experiência do sagrado, o mais importante não é a ideia, a doutrina, mas fundamentalmente o que está acontecendo no corpo, em sua relação com as forças da natureza e as pessoas.

A experiência sagrada é principalmente um senso de maravilha frente ao espiritual. Há uma enorme valorização do aspecto intuitivo aplicado à vida cotidiana. Os elementos básicos dessas tradições formam a primeira etapa de todas as tradições religiosas: contato direto e união com a divindade.

Esta profunda dimensão religiosa do espírito humano é o fundamento da dignidade humana. O devoto, na busca de seu santo, experimenta as características dessa divindade infusa em sua personalidade.

2.1. Corpo, rio, terra e dança

A interculturalidade ecológica se propõe a resgatar a relação humanidade e Terra, corpo e Terra, Terra sagrada que somos todos, somos dom de Deus. Tal relação se dará principalmente na compreensão e valorização do dinamismo intercultural.

Com as culturas dos povos das florestas e dos rios temos que aprender a nos tornar uma sociedade sustentável, ou seja, que produz o suficiente para si e para os seres dos ecossistemas onde se situa; que toma da natureza somente o que ela pode repor; que mostra um sentido de solidariedade generacional ao preservar para as sociedades futuras os recursos naturais de que elas precisarão.

Com as populações da periferia da cidade que se organizam em movimentos, partidos, pastorais sociais, temos que lutar juntos pela superação da lógica do capital, de sistemas econômicos que olham somente para o lucro e não para a humanidade e para o planeta.

Nas nossas expressões religiosas, espirituais, celebrativas e místicas temos que valorizar as formas mitológicas de nosso povo, os rituais que enaltecem o corpo e a Terra nos lembram constantemente o valor sagrado de todos os tipos de vida, nossa dependência dela e um dos outros. Vivemos numa teia de vida e nos tornamos cada vez mais humanos na medida em que descobrimos e nos ligamos a essa maravilhosa cadeia que é o planeta Terra.

Esta é a segunda parte do artigo. Leia a primeira aqui.
Pe. Ricardo Castro é doutor em Teologia das Religiões pela Faculdade de Teologia de Nossa Senhora Assunção — São Paulo (2004) e em Teologia Pastoral pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) (2018). Pesquisa teologia da revelação, teologia das religiões, filosofia da religião, filosofia da natureza, gênero, cultura Amazônica, xamanismo, ecologia, fenomenologia, masculinidades e violência.
Imagem em destaque: indígenas protestam contra a transferência da demarcação de suas terras para o ministério da Agricultura. Março de 2019/APIB.
Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Assine e mantenha-se atualizado!

Não perca nossas histórias.


Translate »