Interculturalidade e Ecologia: parte 1

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Comunidade ribeirinha na Amazônia. Crédito: Amazônia Latitude

[RESUMO] Esta é a primeira parte do artigo. Link para a segunda ao fim do texto. Partindo da crítica de uma compreensão essencialista e universal de cultura, o autor convida o leitor a pensar a interação cultural e suas interdependências na luta pela vida. Explica o processo de interculturalidade, surgido do encontro entre os povos, e aponta para a ecologia como aspecto fundamental da elaboração de culturas. Propõe a interculturalidade ecológica, uma ideia para superar a mera mudança de hábitos, atingindo mentalidades, atitudes e estruturas sociais e econômicas — um manifesto pela redescoberta do pertencimento à grande teia da vida.

Partimos de uma realidade local, a região geograficamente chamada pelos colonizadores de Amazônia, para elaborar primeiramente a relação entre interculturalidade e ecologia “integral”. Para tecer uma compreensão da interculturalidade ecológica, precisamos discutir pausadamente os termos internos destes conceitos: culturas e suas interações e a ecologia cultural nas complexidades da vida.

Nas últimas décadas, a cultura e suas interações passaram a ser o foco na elaboração de compreensões das realidades social, política, econômica, religiosa e até mesmo da construção de teologias. Para o construtivismo cultural de meados do século XX, o conceito de cultura ainda era algo que se impunha sobre o indivíduo, determinando sua existência, provendo sua identidade individual. Esta seria uma resposta às expectativas de seu grupo, de sua sociedade.

Cultura é definida como um conjunto de símbolos, regras sociais e costumes que norteiam e respondem às necessidades mais fundamentais de significado e sentido para a existência. Nesta perspectiva, na realidade pluricultural, cada cultura luta para manter sua própria originalidade enquanto é obrigada a conviver com um mundo de expressões culturais.

Assim, culturas e religiões se toleram, dialogam, mas ainda se concebem ilusoriamente como singularidades, essencialistas, portadoras de elementos que devem ser preservados assepticamente a qualquer custo e que podem desencadear processos sutis de intolerância e preconceito.

A partir das correntes críticas de estudos da cultura, aplicada aos estudos da história cultural colonial e pós-colonial, começamos a perceber a interação e as multi-influências que as culturas sofrem em seus encontros colonizadores e nos processos atuais de decolonização.

Não é possível pensar cultura humana separada da complexidade ecológica. Cada cultura deve ao seu entorno natural seus principais símbolos, mitos, costumes, ferramentas e suas artes.

A interculturalidade nos ajuda a perceber essa interação e suas múltiplas influências ao longo da história. Aqui, no entanto, o conceito tem mais a ver com a intensificação do diálogo e do intercâmbio em um contexto onde culturas têm mais possibilidades de interação.

Trata-se do enlace de fatores culturais para a promoção da vida, o caminho para nos ajudar a discernir que rumo tomar, frente ao armagedon apocalíptico de nosso tempo. São também as condições e alternativas que nos desafiam a nos encarnar na humanidade e na natureza.

A culturalidade da interculturalidade é um chamado primeiramente à vida, por meio de interrelações com o mundo ao nosso redor e com as pessoas, nosso núcleo, berço e nicho da vida. É um chamado à humanização, compreensão da humanidade em nós e nos outros. É a consciência de que somos a parte cultural da criação, mediação para adentrar nos mistérios da vida e do cosmo.

Na interculturalidade, somos desafiados a lutar pela vida, nos despir das estruturas de morte que matam a humanidade e seu nicho de vida. Nos processos interculturais, entramos na grande escalada da vida humana – humanizar-se, alcançar plenitude de vida, subtraindo os laços da morte que ameaçam a vida e a dignidade humana.

Na interculturalidade, não existem culturas mais ou menos desenvolvidas, seres humanos civilizados ou não civilizados. É a abolição dos laços da raça, dos distanciamentos e afastamentos — o humano intercultural forja uma humanidade aberta porque está consciente de sua condição original: advém do “barro” (tu és pó), tu és terrenal, tu és consciência universal, tu é filha (o) de Deus, tu és sujeito de cultura, de símbolos e mistérios. Tal constatação oferece a base para o encontro, porque a interculturalidade ocorre no encontro de dar e acolher o outro no seu anseio de vida e liberdade.

A interculturalidade ocorre nesse encontro que descobre o que as culturas têm em comum e o que as diferenciam, na busca de uma comunidade intercultural universal e mestiçada. A dinâmica intercultural estará sempre caracterizada pela reciprocidade, olhar o outro na face e reconhecer sua humanidade e sua luta. Partilhamos as diferenças para descobrir a totalidade de uma vida que deve ser experimentada com plenitude por todos.

A inventividade humana e sua cultura tecnológica para enfrentar os desafios naturais tem um impacto tremendo sobre a natureza. Mas, ao mesmo tempo, não é possível pensar cultura humana separada da complexidade ecológica. Cada cultura deve ao seu entorno natural seus principais símbolos, mitos, costumes, ferramentas e suas artes.

A humanidade elabora cultura tanto olhando para seu ambiente natural, aprendendo com a natureza, quanto tentando modificá-la para seu benefício próprio. Deste modo, podemos perceber a relação fundamental entre cultura e ecologia, para compreender também a relação entre interculturalidade e ecologia.

A relação intrínseca entre ecologia e cultura nos leva a uma compreensão mais radical da interculturalidade a partir da ótica que enfatizamos nesta reflexão — a ótica cosmobiótica em toda a sua complexidade. A interculturalidade ecológica nos desafia a ir mais fundo nas representações e significados elaborados pelas culturas ao longo de sua evolução e interação com a natureza, que podem ser geradoras de vida ou podem levar a humanidade à autodestruição.

A interculturalidade ecológica, nas interações com os aspectos das culturas promotoras da vida em suas diversidades e complexidades, pretende uma crítica cultural, uma descolonização de aspectos da cultura ocidental colonial que perdeu seu elemento vinculante com a natureza, sua interação com as diversidades de vida e o aspecto universal da humanidade – somos deste mundo, terráqueos, filhos e filhas da mãe terra, irmãos e irmãs na cadeia da vida.

A interculturalidade ecológica propõe uma transformação profunda, não somente uma mudança de hábitos. Nas palavras do Papa Francisco, precisamos de uma “conversão ecológica” que atinja mentalidades, atitudes e estruturas sociais e econômicas.

Não se trata somente de fomentar práticas de cuidado com a natureza, precisamos retornar à terra, redescobrir aspectos vinculantes vitais com a natureza e suas criaturas. É urgente uma redescoberta de nosso pertencimento, de nos sentirmos parte, dentro, interligados na grande teia da vida.

Precisamos ir além do aspecto tecnológico: temos que buscar nossas raízes mais profundas, uma sabedoria maior que o conhecimento científico cartesiano, que promova mais comunhão, igualdades, prazer e alegria, ajudando-nos a curar a Terra e a nós mesmos.

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Organizado por mais de 25 instituições, o ‘Amazônia, Centro do Mundo’ foi pensado para deslocar sentidos e lugares e colocar a floresta como espaço central de mobilização e discussão política. Para isso, diversos ativistas europeus foram a Altamira, no Pará, para conhecer agentes locais e criar novos diálogos sobre o futuro. Foto: Lilo Clareto/ Amazônia Latitude.

1. Interculturalidade Ecológica amazônica a partir de seus mitos fundadores

Um dos aspectos importantes desta reflexão é a passagem de uma compreensão essencialista e universal de cultura para adentrar na interação cultural e suas interdependências na luta pela vida. Outra é apontar para a ecologia como aspecto fundamental da elaboração das culturas. Como esses aspectos estão presentes no contexto da América indígena e da Amazônia? Este será nosso desafio: compreensão da interculturalidade ecológica na Amazônia.

1.1. Cosmovisão colonizadora ocidental

Para abraçar a interculturalidade ecológica como uma das vias para o futuro da vida no planeta, precisamos, como povos do sul do mundo, dar um passo atrás. Não é um retorno ao passado, mas um passo de fora da caixa, dos limites absolutizados, visualizar o mundo a partir da poética, dos rituais, dos simbólicos mitos fundantes da humanidade cósmica. Tal atitude nos leva a ter uma consciência e confiança ativas para forjar novos modos de viver e interagir na dinâmica de Gaia.

Para adotar a interculturalidade ecológica em nossas vivências e interações sociais, necessitamos descolonizar nossos corpos e mentes. No entanto, ter interculturalidade na dinâmica descolonial não significa abandonar os etnoconhecimentos, ontologias próprias, fundamentais para uma compreensão e organização dos povos. Exige um saber falar, escutar e aprender juntos. Tecer conhecimentos e práticas de vida como resposta às grandes ameaças de destruição planetária.

Descolonizar a diversidade cultural para assumir uma atitude intercultural se distancia da perspectiva antagônica das binaridades coloniais e patriarcais: civilizados/não civilizados, negros/brancos, crentes/pagãos, macho/fêmea. Descolonizar esses dualismos é assumir a diversidade como promotora de vida plena que modifica modos de pensar e agir.

Descolonizar para interculturalizar nos leva a Freire, quando este discute o deslocamento do sujeito opressor que, na perspectiva colonizadora, se imagina um solitário receptáculo de conhecimentos generalizados e específicos, alheio às experiências e saberes dos outros.

O ato de educar-se, na interculturalidade, nos conduz a um estado de solidariedade e compaixão com os outros; não significa simplesmente colocar-se no lugar do outro, pois pode gerar paternalismos opressores. A solidariedade intercultural é um diálogo em que se comprometem aqueles que contemplam a realidade de modo diferenciado, é o reconhecimento e confronto de nossas carências, limitações e incertezas.

A interculturalidade em perspectiva ecológica reconhece que parte de nosso conhecimento emana da natureza, é expressão da própria inteligência criativa do cosmo. Deste modo, a interculturalidade ecológica não se restringe às culturas humanas. O dinamismo intercultural ecológico e descolonial pode também incluir os seres vivos e inanimados e não humanos, como as florestas, os rios, os animais e os fenômenos naturais de modo geral.

A interculturalidade descolonial nos coloca em uma atitude de contemplação à complexa interação do mundo, apontando para conhecimentos, criatividade e imaginação que ainda não foram completamente desvendados. Os sistemas indígenas são os que melhor se aproximam desta abordagem. Essa perspectiva pode fundar um novo modo de coexistência das diferentes expressões de vida da mãe Terra, cada um com sua cultura se complementando e gerando vida.

Esta é a primeira parte do artigo. Leia a segunda aqui.
Imagem em destaque: pescadores no Lago do Maicá. Santarém. Amazônia Latitude
Pe. Ricardo Castro é doutor em Teologia das Religiões pela Faculdade de Teologia de Nossa Senhora Assunção — São Paulo (2004) e em Teologia Pastoral pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) (2018). Pesquisa teologia da revelação, teologia das religiões, filosofia da religião, filosofia da natureza, gênero, cultura Amazônica, xamanismo, ecologia, fenomenologia, masculinidades e violência.
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