Grilagem como causa do desmatamento na Amazônia

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Área derrubada e queimada para formação de pasto na TI Cachoeira Seca, no município de Brasil Novo, no Pará. Lilo Clareto/Amazônia Latitude

[RESUMO] Com ampla experiência em fiscalização no Ibama, autor discute a grilagem como causa do desmatamento na Amazônia. Propõe uma análise dos processos a partir de uma cadeia produtiva própria e aponta a necessidade de investimento na qualificação dos recursos humanos, para uma compreensão e enfrentamento realmente efetivos do desmatamento.

O desmatamento ilegal na Amazônia vem ganhando atenção mundial. É necessário aprofundar as explicações de suas causas. Uma delas é a grilagem de terras. Como estratégia de análise, indagaremos o processo de grilagem que ocorre em Terras Indígenas (TI) do Brasil ao longo do recrudescimento desse desmatamento a partir de 2018.

Com esse ensaio, esperamos contribuir com o debate acerca das causas do desmatamento e auxiliar na construção de estratégias voltadas para a contenção da destruição criminosa da Amazônia.

Como analisar

Na tentativa de explicar as causas do desmatamento ilegal predominam como estratégias metodológicas as análises que se utilizam de dados quantitativos. Esses dados são em geral obtidos a partir de análises de geoprocessamento, que indicam locais de ocorrência do desmatamento, sobretudo pelo Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Em um primeiro plano, predominam as análises que sistematizam e publicizam dados de alertas de desmatamento, indicando os locais de maior ocorrência e o incremento. A partir daí, desdobram-se inferências sobre as causas do desmatamento — atribuindo-se subjetiva e intuitivamente justificativas às ocorrências observadas pelo Deter.

Essas supostas inferências predominam na imprensa em geral quando noticia o aumento dos alertas de desmatamento constatados pelo Inpe. Surgem hipóteses sobre suas causas, em geral conclusões oriundas de proposições já conhecidas ou diretamente recolhidas do senso comum. Contudo, é preciso destacar que os alertas em si não explicam o desmatamento, eles simplesmente apontam a sua ocorrência.

Outro grupo de análises, também quantitativo, busca criar o cruzamento entre bases de dados distintas para a partir daí explicar o desmatamento ilegal. Predominam os cruzamentos entre as bases de dados de alertas de desmatamento (Deter) e o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Assim, sobre determinado alerta identifica-se a propriedade cadastrada no CAR e com isso pode-se desdobrar outras análises e hipóteses.

Contudo, igualmente à anterior, esse tipo de análise não é suficiente para explicar o desmatamento em si, uma vez que em geral aponta somente para a autoria (CAR) e materialidade (alertas) do desmatamento, sem explicar sua dinâmica e causas de ocorrência.

Análises outras buscam explicar o desmatamento a partir das cadeias produtivas que estão de certa forma relacionadas ao desmatamento ilegal. Nesse grupo de análises constam aquelas que atribuem ao agronegócio e à indústria madeireira as principais causas que contribuem para o aumento do desmatamento a corte raso na Amazônia.

Essas análises conseguem avançar mais na explicação e utilizam-se também muito fortemente de dados quantitativos, mediante o cruzamento de bases de dados de extração/comércio de madeira, incremento do rebanho de gado bovino e alertas de desmatamento.

Contudo esse grupo de análises, que será aqui chamado de análises externalistas, explicam muito mais as relações entre outras cadeias produtivas e o desmatamento, no lugar de explicar a própria cadeia produtiva que ocorre no desmatamento ilegal na Amazônia. Nesse caso, a cadeia produtiva da madeira e da pecuária são partes que contribuem para o incremento da taxa de desmatamento, mas estão distantes de explicar sua dinâmica interna de funcionamento.

Neste ensaio, apontamos para a necessidade de se indagar sobre o desmatamento a partir de uma abordagem internalista e qualitativa. Isso consiste basicamente em uma abordagem cujos dados são coletados aos moldes etnográficos e de campo, mobilizando o conhecimento empírico do contato direto com as pessoas envolvidas na prática do desmatamento e buscando identificar, a partir daí, a dinâmica interna do desmatamento.

Entendemos que estender a análise para a compreensão da dinâmica interna de funcionamento do desmatamento (e excluindo da análise temporariamente eventuais causas externas) auxilia na compreensão da sua mecânica de funcionamento, possibilitando atuar para o seu controle de forma mais eficaz e direta. Ou seja, entender o desmatamento em si permite atacar diretamente as causas que o sustentam no lugar de atacar causas periféricas.

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Construção de estrutura no interior de área alvo de grilagem. Autores/Amazônia Latitude

Para auxiliar na compreensão do olhar que adotamos, podemos entender o desmatamento como uma máquina. Assim, o processo de desmatamento de um polígono possui determinados dispositivos e engrenagens que possibilitam seu funcionamento e sua ocorrência na realidade.

Essa compreensão reformula a compreensão do desmatamento como um alerta de polígono feito por um satélite (como uma fotografia) e passa a enxergá-lo como um processo, o qual exige determinadas condições para sua ocorrência e as quais, se forem suprimidas, fazem cessar o seu desenvolvimento.

O desmatamento também possui uma economia própria, que não depende integralmente de outras economias — da madeira ou da pecuária — para ocorrer. Embora essa relação seja comprovada por outros trabalhos, aqui tratamos de aprofundar a análise internalista do desmatamento. Não se nega, claro, a participação de causas externas no processo de constituição do desmatamento, mas simplesmente neste ensaio essa não será a abordagem.

Para operacionalizar esse modelo analítico, escolhemos testar como objeto de análise uma das principais causas do desmatamento: a grilagem de terras.

A grilagem de terras é amplamente abordada pela bibliografia e usualmente definida como a tomada de posse de terras públicas por particulares mediante fraude documental. Essa é uma definição formal de grilagem, que basicamente entende o conceito como uma espécie de furto e comercialização de determinado patrimônio público. Além disso, o próprio poder público reconhece o produto furtado como de propriedade legítima daquele que cometeu o delito, mesmo que esse se utilize de ações e de artifícios para mascarar a sua ação criminosa .

Para a finalidade deste ensaio avançaremos um pouco na definição do conceito de grilagem. Para tanto, integraremos a ele uma variável subjetiva, associada àquele que pratica: o grileiro. Desdobrando o conceito, passamos a entender a grilagem também a partir da motivação subjetiva de quem executa o crime. Com efeito, diante das finalidades deste ensaio, tomamos a liberdade de entender a prática da grilagem também como uma “expectativa de lucro” advindo da comercialização de um imóvel.

Essa definição significa que o conceito de grilagem não se desdobra propriamente sobre o lucro oriundo da comercialização da terra, tampouco sobre o processo de valorização da terra: ela é definida aqui como uma expectativa, isto é, uma variável estritamente subjetiva. Notemos que para fins deste ensaio adicionaremos um componente ligado às motivações dos agentes que praticam a grilagem ao bojo da definição do próprio conceito.

Isso significa que, ao tomar posse e grilar uma terra pública em um momento presente, o grileiro espera que haja uma valorização dessa terra no futuro e que, ao comercializá-la, obterá lucro. Essa expectativa é o que motiva o cometimento do crime. Sem expectativa de valorização do imóvel não há investimento do grileiro em tomar posse do imóvel público, logo, não ocorre a grilagem. Portanto, trata-se de um desdobramento essencial para a definição do conceito.

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Início de desmatamento durante grilagem em área da TI Ituna/Itatá. Autores/Amazônia Latitude

Certo, mas como a grilagem de terras pode explicar o desmatamento em si? Como pode ser vista como uma forma de explicação internalista do desmatamento? Para responder a isso devemos entender o desmatamento como uma forma específica de máquina: um empreendimento.

Ao desmatar uma área, executa-se não mais do que a transformação do território com a supressão da vegetação nativa, o uso do fogo e o plantio de pasto. Isso exige o emprego de recursos, como o pagamento da mão de obra, do maquinário, do combustível, de sementes etc. Trata-se de um investimento na área e, como todo investimento, espera-se retorno.

Como ele acontece? Ora, desmatar é um investimento na terra, e gera um aumento do seu valor nominal a partir do trabalho e dos recursos empregados. Logo, ao se desmatar com sucesso uma área, há um saldo positivo entre o valor de sua aquisição — que pode chegar a zero, nos casos de invasão — e o valor de sua comercialização após o desmatamento.

A “mercadoria” envolvida nos processos de grilagem é a terra. O desmatamento é uma forma de agregar valor a essa mercadoria. Quando ocorre uma valorização positiva entre o preço inicial da terra e o preço dela após o desmatamento, os grupos de grileiros que tomaram posse da terra conseguem auferir lucro mediante a comercialização da terra.

Diferentemente das análises externalistas, a dinâmica econômica da grilagem explica o desmatamento em si quando observamos que o desmatamento ilegal, por si só, gera lucro na medida e em que agrega valor a uma terra grilada. A cadeia econômica da madeira, por seu turno, ocorre em um momento anterior ao desmatamento a corte raso. A mercadoria envolvida nessa atividade produtiva é a própria madeira, sendo o objetivo principal da exploração madeireira agregar valor a esse produto mediante sua transformação dentro de um processo industrial.

Uma vez exauridos os recursos florestais em determinada área, a tendência é o deslocamento da indústria ilegal madeireira para outra área, e não a transformação daquele território por meio do desmatamento a corte raso. Isso significaria o emprego de recursos em uma atividade distinta daquela de sua natureza, que em nada agrega valor à madeira comercializada. Por sua vez, a pecuária é uma atividade cujo lucro ocorrerá em um momento muito posterior à execução do desmatamento e a mercadoria a qual se busca agregar valor nesse caso é o gado bovino.

Isso obviamente não exclui intersecções entre as redes econômicas da extração ilegal de madeira nativa e da pecuária extensiva com o desmatamento ilegal. Contudo, as análises externalistas não explicam totalmente as causas do desmatamento. Obviamente, recursos empregados na compra de madeira nativa de determinada área podem ser usados como investimento para desmatar essa área. Por sua vez, a pecuária é a destinação dada a praticamente todas as terras desmatadas ilegalmente na Amazônia e os recursos da comercialização do gado podem ser reinvestidos na abertura de novas áreas para ampliação do rebanho.

No entanto, o que se busca argumentar neste ensaio é que o desmatamento é um negócio em si mesmo e que existe de forma relativamente autônoma, já que ele próprio é uma forma de agregação de valor à terra que é objeto de grilagem. Nas análises externalistas, as causas do desmatamento são explicadas por dinâmicas alheias ao desmatamento em si. Os recursos empregados na prática do desmatamento e o lucro dessa atividade estão associado a outras dinâmicas econômicas.

A abordagem

A grilagem de terras é o principal causa de desmatamento no Brasil e, portanto, não há como obter uma significativa e sobretudo permanente redução do desmatamento ilegal sem combater esse crime. Para ilustrar essa proposição, adotamos como estratégia indagar o aumento do desmatamento em terras indígenas em 2019 e sua posterior queda em 2020, conforme gráfico abaixo.

Argumentaremos neste ensaio que o aumento do desmatamento nas Terras Indígenas, sobretudo a partir de 2018, ocorreu justamente devido ao aumento da grilagem dessas terras, e que sua redução em 2020 se deveu às sucessivas operações do Ibama, que conseguiram desarticular as quadrilhas que atuavam na grilagem das Terras Indígenas mais desmatadas do Brasil, conforme dito em outras publicações.

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Fonte: Terra Brasilis/Inpe. Consultado em 09/03/2021

Dentre todas as terras indígenas desmatadas no período em questão, chama atenção o caso da TI Ituna/Itatá, dada a agressividade do processo. Entre 2018 e 2019, a TI saiu de 15,9 km² de desmatamento para 119,8 km², caindo para 61,6 km² em 2020 após as ações do Ibama de desarticulação do processo de grilagem.

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Fonte: Terra Brasilis/Inpe. Consultado em http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/amazon/increments (Consultado em 09/03/2021)

Afirmamos que a grilagem é explicada também pelas motivações subjetivas do grileiro, ligadas às suas expectativas de valorização futura da terra. Podemos desdobrar essa proposição em outras duas: Quanto maior a probabilidade de se executar o desmatamento e quanto maior a probabilidade de regularização da terra grilada, mais bem atendidas estarão as expectativas de valorização da terra e mais intenso será o processo de grilagem.

Assim, entende-se que a expectativa de se auferir lucro por meio da comercialização de uma terra grilada aumenta quando há maior probabilidade de se concretizar o desmatamento ilegal, assim como uma maior probabilidade de reconhecimento oficial da posse particular dessa terra.

Ora, nesse caso pode-se argumentar que as Terras Indígenas, por serem áreas protegidas por regulamentação específica (diferentemente de áreas devolutas), possuiriam uma menor probabilidade de regularização da posse ilegal da terra. Logo, seriam áreas onde a grilagem estaria afastada. Assim, seria o desmatamento em terras indígenas justamente a prova de que a grilagem não é um fator determinante para o desmatamento? A resposta para essa questão é não. Além disso, justamente por ocorrer nessas terras indígenas é que se torna possível explicar mais detalhadamente o desmatamento.

As terras indígenas mais agredidas pelo desmatamento ilegal no período observado foram Ituna/Itatá e Apyterewa. No caso da TI Ituna/Itatá trata-se de uma área que possui restrição de uso estipulada pela Funai devido à presença de índios isolados. Assim, o processo de demarcação dessa TI não foi totalmente concluído, apesar de já existir restrição à entrada de qualquer pessoa. No caso da TI Apyterewa, há disputa judicial em torno da delimitação do território, o que ainda pode gerar desafetação de parte da Terra Indígena em favor dos invasores.

Ou seja, em ambos os casos, embora haja atos administrativos que determinam a destinação dessas terras para a finalidade de usufruto exclusivo dos povos originários, ainda existe uma forte expectativa de que esses atos sejam desconstituídos, principalmente por serem inconclusos.

Há de certa forma uma instabilidade ou disputa jurídica em torno da delimitação das TIs mais agredidas pelo desmatamento. Isso aponta para o fato de que os grileiros planejam e conhecem as terras em que pode haver maior expectativa de valorização futura a partir do reconhecimento oficial da posse.

As Terras Indígenas invadidas e griladas não foram escolhidas a esmo, mas sim a partir de um conhecimento pretérito de sua situação regulamentar e, quanto mais indefinido seu destino, maior é a expectativa de valorização da terra entre os grileiros.

Se a mera possibilidade de disputar juridicamente o reconhecimento de ocupações tradicionais sobre um território indígena pode atrair o interesse de grileiros, a tomada do território e ocupação do mesmo mediante o desmatamento busca enfraquecer os instrumentos jurídicos de controle do território.

O desmatamento, nesse caso, é utilizado também como uma tentativa de assegurar a posse da terra mediante a construção de uma espécie de “registro” de ocupação — o próprio desmatamento. Antes de existir um registro de direito que assegure a um particular a posse de uma terra pública, o desmatamento é utilizado como um registro de fato: uma tentativa de comprovar, no futuro, a posse da terra.

Nessas terras indígenas, na verdade, a grilagem se apresenta de forma mais pura. Por serem áreas mesmo que precariamente demarcadas como de usufruto exclusivo dos povos indígenas, o preço de mercado dessas terras tende a ser muito baixo.

No entanto, por estarem próximas a centros produtivos já estabelecidos, possuírem acessos terrestres já instalados e outras infraestruturas, uma eventual revogação da demarcação de terras indígenas faria disparar o preço da terra. Trata-se portanto de uma especulação em que o preço inicial da terra tende a ser muito baixo (por ser Terra Indígena), mas que subiria muito se a demarcação da TI fosse revogada.

Assim, por se tratar de um investimento de alto risco com dificuldades adicionais colocadas pela regulamentação das Terras Indígenas, todos os elementos fundamentais da grilagem se fazem presentes nesses casos. Ou seja, justamente pela dificuldade em se grilar uma Terra Indígena é que as características essenciais se manifestam de forma mais contundente.

O entendimento da grilagem que ocorre em terras indígenas é importante para a compreensão da manifestação desse processo de um modo geral, possibilitando eventuais generalizações de suas características como um vetor do desmatamento. Logo, pode ser utilizado como meio de abordagem.

A grilagem funciona como milícia — substitui o Estado na gestão do território, tendo como subproduto a precarização da força de trabalho e o aumento da degradação ambiental.
Os artifícios

Primeiramente, há um cuidado por parte dos grileiros na seleção do local alvo de grilagem, sempre para atender suas expectativas de maximização da diferença entre o valor inicial da terra e o seu valor após ela passar pelo processo de desmatamento.

Na Terra Indígena Ituna/Itatá, observamos uma dinâmica de grilagem amplamente desenvolvida e articulada. O grupo estava efetivamente orientado a garantir e consolidar a posse sobre o território, utilizando meios diversos.

Deve-se destacar que todos os artifícios usados pelos grileiros estão orientados para aumentar a probabilidade de executar o desmatamento da área quanto para aumentar a probabilidade de conseguir futuramente a regularização da posse da terra. E sempre como forma de alcançar a expectativa de aumento do valor final da terra invadida. Com efeito, podemos dividir os artifícios dos grileiros como atendendo simultaneamente essas duas condições, olhando para o caso concreto da grilagem da TI Ituna/Itatá.

Dentre os artifícios, podemos citar as tentativas de construção de uma vila no interior da Terra Indígena e de instalação de rede de energia elétrica. Ambas facilitam o desmatamento por acrescentarem facilidades logísticas para execução do desmatamento, além de auxiliarem na constituição do “fato consumado”, impossibilitando a retirada de uma vila com centenas de pessoas de dentro de uma TI.

Essa estratégia também foi utilizada no processo de grilagem da TI Apyterewa, mas nesse caso os invasores obtiveram sucesso na construção da vila, um importante ponto de apoio logístico para o avanço das invasões e do desmatamento.

Na TI Ituna/Itatá muitos lotes foram “doados” para posseiros pelos grileiros, como forma de incentivar a migração de pessoas para o local. De um modo geral, pode-se dizer que o processo de grilagem nas Terras Indígenas consiste em grande parte na tentativa de atração de pessoas para dentro da área foco de grilagem. Essas pessoas eventualmente compram lotes por preços muito abaixo do valor de mercado ou os recebem por “doação” em troca de trabalho.

Nessa dinâmica, quanto mais pessoas chegarem na terra alvo da grilagem, maior o desmatamento, maior a dificuldade de reverter a situação de ocupação ilegal e maior será o valor da terra pelo aumento da demanda. E o grupo de grileiros poderá lucrar mais com a sua comercialização.

De certa forma, a atração de pessoas também acaba diluindo a responsabilidade e obliterando a identidade do verdadeiro grupo que articula e lucra com a ocupação ilegal. Conforme se desenvolvem os incentivos para a ocupação, que aumenta, também se desenvolve a blindagem em torno dos verdadeiros responsáveis pelo desmatamento.

Em cada hotspot de desmatamento (locais que concentram alta incidência de polígonos de desmatamento) existe um processo de migração, de chegada de pessoas e insumos. Nesse hotspots há um processo de consolidação de vilas e distritos. O que movimenta esse processo é a especulação imobiliária fomentada por grileiros.

O preço baixo das terras e a promessa de concretizar o desejo de ter seu próprio imóvel muitas vezes atrai pessoas de diversas regiões da Amazônia para áreas loteadas ilegalmente por grupos de grileiros, gerando verdadeiros espaços de devastação com a abertura de lotes sem qualquer infraestrutura, assistência ou controle do poder público .

Num momento em que as instituições públicas que deveriam regular e orientar a ocupação fundiária passam por dificuldades cada vez maiores para executar seu trabalho, a ação do Estado é substituída pela dos grileiros, que assumem o papel de lotear, vender e distribuir a terra conforme seus interesses particulares. A grilagem funciona como milícia — substitui o Estado na gestão do território, tendo como subproduto a precarização da força de trabalho e o aumento da degradação ambiental, vide a comercialização ilegal de terras e o desmatamento.

Outro artifício utilizado é a tentativa de descaracterização da atividade criminosa com uma transformação puramente discursiva do significado de crime ambiental. Isso ocorre por meio do uso de mídias, redes sociais e discursos políticos. A ação midiática de ressignificação do crime em algo distinto busca produzir nas centenas de posseiros que migraram para as áreas griladas a sensação subjetiva de que eles estão participando de um ato socialmente aceito, de um ato incentivado não só pela comunidade que integram, mas por toda a sociedade.

Ao receber mensagens e informações de que a atividade não é crime, de que a área que o invasor está ocupando será regularizada no futuro, de que a ação da fiscalização está errada, o sujeito que se encontra invadindo as Terras Indígenas passa também a reinterpretar a sua ação. Não seria mais uma ação criminosa, mas um direito seu ou uma situação irregular provisória que será resolvida no futuro.

Cria-se nesses posseiros a sensação de esperança e de injustiça. Essa sensação anula parcialmente o risco subjetivamente sentido de que o investimento na terra grilada não vale a pena, pois a mensagem que está sendo transmitida pelas redes criminosas é de que a fiscalização está errada e de que a invasão da Terra Indígena é o certo. Com isso, a dissuasão é reduzida e a agressão aos agentes do Estado é potencializada, animada por esses sentimentos.

Portanto, o uso da mídia pela rede criminosa da grilagem é fundamental na sua permanência e prolongamento. Ao atacarem a fiscalização, contribuem para incitar as pessoas a cometer crimes diretos contra os agentes públicos (ameaças e obstruções da fiscalização). Além disso, contribuem para deslegitimar a fiscalização ambiental, diminuindo a fé pública na instituição e criando terreno favorável à flexibilização normativa e ao descumprimento direto da legislação.

Esse contexto favorece diretamente o processo de grilagem e está nas bases do desmatamento da TI Ituna Itatá, incrementando a massa crítica em favor da desregulamentação e auxiliando no processo de desmatamento ao criar obstáculos às atividades de comando e controle.

Por fim, o último artifício ao qual gostaria de chamar a atenção é a construção de apoio político por parte das redes criminosas da grilagem. Público ou implícito, o suporte de figuras políticas de abrangência local ou regional a um processo de grilagem de terras — devidamente traduzido em uma linguagem mais branda — reveste de maior segurança o investimento realizado na terra.

A palavra de apoio de uma autoridade consagra uma determinada ação a um patamar de maior legitimidade. Transfere também autoridade àqueles que se apresentam como seus apoiadores ou porta-vozes. Ocorre portanto um trabalho de valorização da terra grilada, na medida em que o investimento se torna supostamente mais seguro, pois está assegurado e “autorizado” pela palavra de uma figura pública.

Ao mesmo tempo, o ataque de autoridades à fiscalização ambiental, mesmo que discursivo, tenta criar a impressão de que nada pode interferir no andamento normal das transações. Tem o papel de impulsionar as atividades criminosas e garantir que não haverá interferência no negócio em curso. Mesmo que seja somente um discurso ou uma promessa, aumenta-se a expectativa de que a terra será regularizada no futuro.

Além disso, o próprio processo de migração de mão de obra para os locais alvo da grilagem pode também ser visto como um afluxo grande de eleitores. Estima-se que centenas de títulos de eleitor foram transferidos para o município de Senador José Porfírio-PA durante o ápice do desmatamento na TI Ituna/Itatá. Não seria possível executar o desmatamento em nível tão acelerado sem se ter disponível um volume considerável de mão de obra e esse processo de migração também pode estar associado a construção de nichos eleitorais.

Tão importante quanto o investimento em sistemas de detecção de desmatamento é aquele nos recursos humanos que atuam na linha de frente do combate ao desmatamento, com qualificação profissional e aumento do quadro de pessoal.
Contra a sociedade

Sob o ponto de vista científico, percebemos que, ao indagar o processo de desmatamento em si, conseguimos desvendar diversas engrenagens que operam no sentido de mantê-lo ativo. Prevalecem atualmente as análises quantitativas sobre as causas do problema, que levam às conclusões de que para se combater o desmatamento, deve-se focar no aprimoramento de tecnologias de detecção de áreas desmatadas.

Dada a prevalência desse tipo de análise, são investidos vultosos recursos na obtenção de imagens de satélite e no refinamento tecnológico geoespacial com a ideia de que a dificuldade do combate ao desmatamento está principalmente em limitações de sua detecção.

Por sua vez, argumentamos aqui que a análise internalista e qualitativa enriquece amplamente a descrição do objeto quando nos permite mapear seus elementos constitutivos, os quais não existem sem o desmatamento e sem os quais o desmatamento não existiria.

Portanto, tão importante quanto o investimento em sistemas de detecção de desmatamento é o investimento nos recursos humanos que atuam na linha de frente do combate ao desmatamento, com qualificação profissional e aumento do quadro de pessoal. Há dois efeitos imediatos: o aumento da qualidade do trabalho de campo e da quantidade de frentes de trabalho possíveis. Nesse caso, somente o desenvolvimento do componente humano dentro das instituições estatais pode gerar uma diminuição duradoura na taxa de desmatamento.

É a junção das análises de alertas com a fiscalização de campo, portanto, que formam a linha de frente para a desarticulação de redes criminosas que lucram com o desmatamento ilegal.

Sob um ponto de vista propositivo, entende-se que a regulamentação de terras griladas favorece o processo de desmatamento ao permitir o enriquecimento rápido das quadrilhas que se favorecem da grilagem. Tudo o que o grileiro quer é a regularização de uma terra que furtou e desmatou ilegalmente, para comercializá-la a valores muito superiores.

Aumentar a expectativa de regularização, que pode vir do próprio poder público, acelera a corrida pela terra, o que significa aumento do desmatamento. A regulamentação ou o reconhecimento oficial da posse particular de uma terra furtada é justamente o atendimento às expectativas de quem pratica grilagem.

Vale destacar que o crime é também o furto de terras públicas, ou seja, furto de patrimônio da sociedade, que ocorre sem que haja qualquer contrapartida social no momento de sua usurpação por particulares. O desmatamento é mais que um dano ambiental, é um dano ao patrimônio público e que se desenvolve em um processo acelerado incomparavelmente mais amplo que qualquer esquema de corrupção em termos de recursos públicos saqueados.

É visível: a queda do desmatamento nas Terras Indígenas ocorreu após a desarticulação das ações de grilagem que se desenvolviam nessas áreas. Caso o poder público tivesse optado ou venha a optar pela “regularização” dessas ocupações (e consequente desconstituição de parte das Terras Indígenas) todo o investimento empregado pelos grileiros seria recompensado com lucro, causando ainda maiores e mais frequentes investimentos para consolidação/desmatamento da área.

Já foi empiricamente comprovada a relação entre a desconstituição de uma terra indígena e o aumento do desmatamento, como dizem Maurício Torres, Juan Doblas e Daniela Fernandes Alarcon, que estudaram o processo de desafetação de parte da Terra Indígena Baú, no estado do Pará.

Os efeitos da desafetação são, sem exagero, desastrosos. Mesmo antes da portaria no 1.487/2003 já se evidenciavam focos de desmatamento na porção oeste da TI, sob pressão da BR-163 e da sede municipal de Novo Progresso. Contudo, a desafetação resultaria em índices de desmatamento sem precedentes. Estudo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), que se debruçou sobre o desmatamento da TI Baú entre os anos de 2000 e 2008, verificou que, após a redução da área, as taxas anuais de desmatamento na porção desafetada aumentaram 129%.

Enquanto isso, corre no senso comum a proposição falsa de que a regularização das terras furtadas poderia conter o desmatamento, usando-se como único argumento a ideia de que a regularização poderia facilitar a identificação dos desmatadores.

Ora, ocorre que a identidade dos posseiros e pequenos desmatadores não é um grande mistério. É ingênua a ideia de que os grandes desmatadores por trás de crimes ambientais e esquemas de grilagem mostrariam de bom grado sua identidade ao poder público.

O problema atual não é descobrir a identidade dos posseiros que desmatam, mas sim efetivamente punir quem comete o crime e desarticular quadrilhas de grileiros. A multa ou a punição de posseiros isolados não quebra as engrenagens da máquina do desmatamento. Para isso, é preciso romper os mecanismos da grilagem.

Além disso, a grilagem é uma das principais causas do desmatamento. A regularização, nos moldes atualmente colocados, auxiliaria no aumento do desmatamento ilegal e favoreceria de grupos criminosos.

Portanto, a regulamentação de terras furtadas e desmatadas ilegalmente, mediante o reconhecimento oficial da posse privada dessas terras, está distante de constituir uma medida de combate ao desmatamento. Muito pelo contrário: trata-se de mais um artifício da grilagem de terras públicas.

Não se pode negar que existe uma grande demanda por terras na Amazônia, coordenada e atendida por grupos criminosos, enquanto o Estado perde a capacidade de organizar um processo justo e ambientalmente sustentável de ocupação/distribuição das terras.

Tudo se passa como se, na ausência de uma coordenação institucional da ocupação das terras, entrassem em cena grupos grileiros cumprindo esse papel por e para seus próprios interesses, causando ocupações desordenadas, processos violentos e desmatamento ilegal. Uma ausência que o Estado precisa reverter.

Hugo Loss é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. É analista ambiental do Ibama.
Imagem em destaque: área derrubada e queimada para formação de pasto na TI Cachoeira Seca, no município de Brasil Novo, no Pará. Lilo Clareto/Amazônia Latitude

 

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