Do ‘ter’ ao ‘ser’: a defesa de Marina Silva pela sustentabilidade

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Em evento da Florida State University, ex-ministra do Meio Ambiente falou sobre crise civilizatória e propostas para saídas possíveis

“Nós podemos deslocar toda a nossa busca de concretude com o externo para um ideal do ser. É como se saíssemos dos limites extensivos, em que estamos disputando coisas, e fôssemos para os limites intensivos. Onde desenvolvemos habilidades e capacidades”.

Em palestra realizada na Universidade do Estado da Flórida (FSU), nesta quarta-feira (17), a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva falou sobre a ideia de crise civilizatória — um conjunto de crises que vivemos em diversas áreas — e sobre os desafios para a conservação da Amazônia nesse contexto.

Com diversos departamentos envolvidos, o encontro foi mediado pela Dra. Tanu Kohli, do Centro de Engajamento Global da FSU, e pelo editor e fundador da Amazônia Latitude Marcos Colón, que lidera o programa de Português na universidade.

“Por conta de nossa missão e visão, estamos muito animados por recebermos Marina Silva aqui na universidade. Estamos honrados em tê-la conosco e ansiosos para aprender a partir do seu trabalho de uma vida inteira pelos direitos humanos e a favor do meio ambiente, disse Kohli.

O deslocamento para o ser, iniciou Marina, é a proposta de outro caminho no movimento constante da raça humana pela plenitude e pelo desenvolvimento de suas capacidades. Forjada a partir do consumo, de ter coisas, a felicidade na visão do Ocidente está destinada a exaurir o planeta e as formas de vida para além da humana.

“Vivemos sob a égide de uma visão de mundo, de um ideal identificatório, cujo sentido de felicidade está associado ao consumo. Antes de tudo isso, a humanidade se orientava pelo ideal do ser. Se você olha para a história, os gregos queriam ser sábios e livres. Os romanos queriam ser fortes. Os egípcios, imortais. Na idade média, as pessoas queriam ser santas. O grande ideal identificatório das pessoas era o do ser.”.

Na era mercantilista, explicou Marina, houve um deslocamento do ideal do ser para o ideal do ter. O sujeito é feliz se é capaz de ter. Se antes a lógica era de ser para ter algo, houve uma inversão: só se pode ser algo quando se tem algo. Tangível, o desejo de ser diretamente se associa ao consumo.

Se somos sete bilhões de pessoas que desejam ter, o planeta não tem capacidade para atender a esses desejos, já tem grande parte de seus recursos naturais comprometidos. Isso está no amplo uso de combustíveis fósseis, nas consequências disto para as geleiras, que derretem, e na savanização de florestas. Uma série de fatores em cadeia que formam uma das múltiplas crises que enfrentamos.

As mudanças necessárias são de natureza política, econômica, social e ética. Estão na forma de nos relacionarmos com a natureza e com os outros
Outros ideais

O que propõe a ex-ministra, com a ideia que vem guiando seu pensamento há algum tempo, é uma volta ao ser, um rompimento dessa identificação com a ideia de ter para alcançar a felicidade ou a plenitude. Ou estaremos fardados a uma crise civilizatória que, composta pela ambiental, em conjunto com uma econômica, social e política, diz Marina, supera em muito as crises de outros tempos.

“Como não estávamos num mundo completamente integrado, como temos hoje, não havia como o impacto de uma crise chegar a outro lugar. E se pensamos crise sanitária, como a Covid-19, ou climática, ou a crise econômica de 2008, isso sempre vai impactar geográfica e democraticamente o planeta e a humanidade inteira”, afirmou.

“A gente tem que compreender que as mudanças necessárias são de natureza política, econômica, social e ética. Estão na forma de nos relacionarmos com a natureza e com os outros. Isso vai fazer com que a gente possa se desidentificar do atual modelo de desenvolvimento que está nos levando a um colapso civilizatório.”.

E o que se propõe com a substituição do modelo predatório atual, insustentável dos pontos de vista econômico, social, ambiental, político e de valores, é criar uma nova percepção a partir das bases já construídas pela ciência e pela humanidade.

“A crise civilizatória existe em função da repetição das mesmas alterações. Quando a gente tem uma operação que nos traz alguma vantagem, alguma compensação positiva, seja de natureza econômica, estética, afetiva, qual é a nossa tendência? É repetir a operação que trouxe a vantagem. E repetindo infinitamente, a gente entra numa estagnação. Foi o que aconteceu com combustíveis fósseis”.

E para superar esta repetição, é necessária uma desidentificação com o modelo de ter coisas, já que existe um limite claro para que a população do mundo tenha um carro ou o mesmo padrão de consumo de americanos, europeus ou japoneses. Mas é possível, para a ex-ministra, desconsiderar limites para capacidades.

“Não há limites para fazer a melhor poesia. Não há limites para dar a melhor aula. Não há limites para ser. Essa é a grande questão que está posta para a humanidade na busca por encontrar esse novo ideal, compatível com aquilo que já descobrimos: os limites da natureza”, disse Marina.

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“As mudanças necessárias são de natureza política, econômica, social e ética”, disse Marina Silva em palestra na Universidade do Estado da Flórida. Divulgação/Amazônia Latitude

Qualquer um

Nascida no Acre, Marina Silva, 63, acumula, além da experiência como professora, uma experiência histórica no movimento ambientalista, especialmente ao lado de Chico Mendes, líder seringueiro e conhecido como o ‘rei do empate’. Foi a partir dessa trajetória que decidiu construir uma carreira política, tendo sido a senadora mais jovem na história do país, eleita aos 36 anos de idade em 1994.

Foi ministra do Meio Ambiente de 2003 a 2008, defendendo a pauta da conservação e da sustentabilidade, e candidatou-se três vezes à presidência da República. E embarcou nessas jornadas como ‘qualquer um’.

Durante um grande conflito envolvendo povos tradicionais e fazendeiros numa área de floresta, havia um grupo ameaçado de morte e sem acesso a alimento. Aos 18 anos, Marina e uma amiga se ofereceram para ajudar a Comissão Pastoral da Terra (CPT) para levar os suprimentos.

“A cada 15 dias nós passávamos numa canoa com os mantimentos, com uma lona cobrindo, e os jagunços olhavam para nós e não davam a mínima. Primeiro porque eram pessoas violentas, com uma visão machista, porque não achavam que nós poderíamos fazer algo que confrontasse todo aquele poder que eles tinham”, lembrou.

A estratégia funcionou durante alguns meses, até que a comunidade venceu o direito de posse da terra na justiça. Tempos depois, a jovem ativista perguntou ao bispo responsável pela questão por que enviou duas jovens para enfrentar aquele problema. “Óbvio que eu queria que ele respondesse que éramos corajosas, inteligentes, algo assim”.

Ao que o bispo respondeu “minha filha, quando a gente não tem a quem mandar, a gente envia qualquer um”.

“Desde aquele dia eu passei a me colocar como qualquer um. Porque qualquer um, quando somado aos demais, pode fazer muita coisa. Quando fui para o ministério, fui como qualquer um, que queria reduzir desmatamento e criar unidades de conservação”, disse Marina.

Contemplar sem acumular

Durante o debate, Marina foi questionada sobre novas formas de mobilização e conexão entre diversos movimentos e locais para a construção de alternativas ao modelo econômico e social vigente.

“Eu acho que uma das coisas muito interessantes que os povos originários nos ensinam é essa visão e essa prática de não nos apartarmos da natureza. De não achar que temos uma relação de eferência unilateral na natureza. Hoje nós sofremos as consequências dessa interferência numa demonstração concreta de que é impossível essa unilateralidade — as mudanças climáticas são provas disso”, respondeu a ministra.

Os povos indígenas, continuou, ensinam que “somos todos afetados quando afetamos a natureza”. Se é uma ação negativa, o retorno é negativo. E o mesmo vale para ações positivas. E um outro ensinamento é um sentido de saciedade diferente, de contemplar a natureza sem a necessidade de acumular pelo acúmulo. Da riqueza e do poder como fins em si mesmos.

“Nós estamos muito vulneráveis, muito frágeis com nossos corpos. Os povos indígenas possuem uma rusticidade enorme para enfrentar os períodos de escassez à nossa frente. E não é algo pejorativo, é a beleza, a sofisticação da simplicidade”.

Apesar da crise civilizatória anunciada e em ação, ainda há um consenso no ambiente político sobre o modelo econômico que preda e apaga a Amazônia. Como superá-lo e tomar o rumo de alternativas com a Amazônia e seus saberes no centro?

Da minha parte, desde que comecei essa trajetória quando conheci o Chico Mendes aos 17 anos, foi por isso que saí do ativismo social e ambiental para a ação política e institucional, por isso fui candidata três vezes. Por acreditar que é possível um modelo sustentável de desenvolvimento e que o Brasil tem vantagens comparativas em relação à maioria dos países do mundo”, afirmou Marina.

A Amazônia, defendeu, não pode ser apenas uma fonte de geração de energia ou de região para fornecer minério e madeira. É preciso investir em novas tecnologias e materiais a partir da nova floresta. E garantir ganhos sociais, superar as visões desenvolvimentistas que estão da esquerda à direita e acrescentar a sustentabilidade como projeto.

“Mas para que a gente consiga isso, é preciso romper essa lógica que está no Brasil: as pessoas não discutem projeto de país. Discutem projeto de poder. Não discutem horizontes, só a próxima eleição”, afirmou. “O Brasil é historicamente polarizado: colônia e metrópole, império e república, indústria e agricultura, democracia e ditadura. E foi empobrecendo: Arena e MDB, PT e PSDB. Hoje a disputa é se é Lula ou Bolsonaro. Nós temos que sair dessas armadilhas e discutir um projeto de país”.

Todos estão chamados

“Tem muita coisa que a gente pode fazer”. Marina acredita que há meios de mobilizar grupos, pressionar mercados e países desenvolvidos a abrirem espaços para iniciativas sustentáveis. E garantir, como foi pensada a Aliança dos Povos da Floresta, que essa iniciativa seja transfronteiriça.

“Digo que hoje a gente precisa fazer uma agregação dispersiva e uma dispersão agregadora”, e explicou. O que é agregação dispersiva: a gente pode estar onde estiver, mas está unido pelos ideais. E a dispersão agregadora: se a gente estiver fazendo com que nossos ideais sejam implementados de acordo com o que conseguimos alcançar, e teremos, paralelo a esse mundo pior, como diz Kant, um mundo melhor se erguendo”, despediu-se a ex-ministra.

Veja a íntegra da palestra
Imagem em destaque: Marina Silva/Divulgação

 
 

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