A mulher e a literatura na Amazônia

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A propósito do Dia Internacional da Mulher

Na semana em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, talvez fosse mais fácil falar, embora no meu limite, sobre as mulheres, seus avanços nas sociedades, a brasileira principalmente, do que falar das mulheres de/(n)uma região cheia de desafios e entraves, ainda sob o signo de tudo o que o imaginário colonizador impôs ao mundo e a nós, os filhos da região.

A Amazônia, como descreve Eidorfe Moreira, esse anfiteatro aberto do/ao mundo, carrega em sua história a força das mulheres, tantas vezes apagadas da nossa história nacional, mais ainda da história social amazônica.

O que já se escreveu sobre as mulheres da/na Amazônia é uma gota na imensidão do muito que pode ser feito. As primeiras páginas estão sendo escritas sobre as mulheres, principalmente pelas mãos das mulheres, assim como muitas têm sido escritas sobre a Amazônia, desfazendo o que Michelle Perrot chama de zonas mudas. Seria um silêncio imposto às mulheres pela ordem política e literária, por muito tempo sob a guarda masculina, de quem era a hegemonia, como observa a escritora argentina Beatriz Sarlo.

Quando instados a nos lembrar de mulheres na/da Amazônia, especialmente daquela Amazônia do início do século passado, o que temos como resposta é o vazio, o silêncio de uma mente tentando achar, nos escombros do tempo, quem foram e são elas. Quem?

Além das zonas mudas

Em As mulheres e o poder na Amazônia, Heloísa Lara Campos da Costa oferece uma boa pista sobre elas e seu papel. Fala de uma Amazônia ainda vista sob o ângulo da pujança gomífera, do final do século XIX às primeiras décadas do seguinte, do pós-borracha, quando as mulheres ainda eram limitadas pelos discursos do patriarcalismo e da visão de uma mulher afeita aos préstimos domésticos, sem cidadania, voto e autonomia.

As pesquisas feitas pelo GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisa Eneida de Moraes), da Universidade Federal do Pará (UFPA), e pelo GEPOS (Grupo de Estudo, Pesquisa e Observatório Social: Gênero, Política e Poder), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), além de outros programas de pós-graduação da região, também têm contribuído para que as linhas abissais e as zonas mudas sejam desfeitas. Persistem, entretanto, porque é preciso mais esforço.

Segundo Costa, as mulheres da Amazônia ainda continuam sob o mito das “mulheres guerreiras” e sob a lente que as enxerga como lascivas, fáceis, como também destaca Iraildes Caldas Torres em As novas amazônidas.

Essa ideia da mulher fácil não passa despercebida nas considerações de Michelle Perrot sobre as europeias. Para a historiadora, homens e mulheres, nos espaços públicos, principalmente os urbanos, situam-se em extremidades distintas. Ao homem é dada a importância de papel, do reconhecimento pelo poder político e social que exerce na sociedade. À mulher, se está em público, todas as adjetivações pejorativas e grosseiras: depravada, debochada, lúbrica, venal, criatura que pertence a todos.

As mais variadas adjetivações não deixam as mulheres sozinhas num mundo de inferiorizações e invisibilidades. Com elas, outros tantos recebem o mesmo tratamento de excluídos da história, para Perrot, ou os esquecidos por Deus, como diz Mary Del Priore.

Vozes de baixo

Nos estudos sobre personagens inscritas na literatura do séxulo XIV ao XVII, Bronislaw Geremek traz às claras estes outros tipos: pobres, vagabundos, malandros e mendigos, mesmo que não vivessem na ociosidade, mas que despertavam ao mesmo tempo desprezo e admiração. Isto numa época em que a pobreza, observa Geremek, podia provocar compaixão ou escárnio.

“Desprovido dos laços materiais e de comprometimentos da propriedade, o miserável expressa um conhecimento universal da verdade sobre a existência humana, esquecidos por todos. É também portador da imagem e da voz “de baixo”, dos níveis inferiores da sociedade, da consciência e da cultura populares”, afirma.

O lugar dado aos pobres e invisibilizados, escrutinados pelas leituras de Geremek, também dado às mulheres, persistiu por séculos. Está em resquícios que ainda podemos encontrar nas primeiras décadas do século XXI, quando a divisão dos espaços sociais é demarcada pela posição social e dos gêneros.

Essas demarcações ficam visíveis quando atentamos para as produções literárias escritas no Brasil, na Amazônia e sobre a Amazônia, de autoria predominantemente masculina, até meados do século passado, onde a mulher aparece não menos como mera coadjuvante.

É na literatura e na história literária que podemos compreender as veredas percorridas pelas as mulheres na sociedade brasileira e amazônica e ver como certos “tipos” femininos são apresentados em romances sobre a região.

Wilson Martins considera que a história literária é feita de exclusões e se define tanto pelo que recusa e ignora tanto pelo que aceita e consagra. Jonathan Culler considera que o sujeito moderno é visto não como um sujeito singular, mas como produto de mecanismos psíquicos, sexuais e linguísticos que se entrecruzam. Nesse sentido, a literatura ajuda a entender pelo esboço das obras literárias, respostas implícitas ou explícitas para questões, como o vazio – zonas mudas – sobre as mulheres na/da Amazônia.

Elas escreviam

Não é fácil encontrar muita coisa sobre as mulheres escritoras na Amazônia, principalmente quando vasculhamos as primeiras décadas do século passado. Isso não significa que elas não fizessem algo além de cuidar da casa, do marido e dos filhos. Elas mantinham certa influência política e social, como pondera Heloísa Costa, ainda que distantes dos espaços que se destinavam aos homens, como é o caso da escola, do acesso à leitura e à escrita.

De certo modo, era um impedimento às mulheres ao mundo literário. Quando se ‘atreviam’ a escrever, eram vistas, diz Ana Paula Simioni, como amadoras e imaturas, donas de escritas bobas, sentimentais, reclamações pessoais. Não por acaso as mulheres foram deixadas de fora da nossa história literária. Até mesmo a primeira romancista de que se tem notícia, Maria Fermina dos Reis, ficou esquecida por muito tempo.

Não diferente é o que se percebe no escamoteamento de Júlia Lopes de Almeida, autora de uma dezena de obras, cujo nome está ausente das formações literárias organizadas por Antonio Candido e outros historiadores que se puseram a traçar um perfil da nossa história literária.

A própria Júlia teve seu nome preterido para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), que ajudou a fundar. O pretexto: o regimento da ABL, criada nos moldes da Academia de Letras francesa, admitia brasileiros, adjetivo entendido pelos senhores das letras da época, como estritamente aberto aos homens, não às mulheres.

A cadeira coube ao marido da escritora, o também escritor Felinto de Almeida, que admitiu mais tarde, em entrevista a João do Rio, a superioridade de Júlia Lopes e a injustiça dos imortais com sua esposa. As mulheres ficaram setenta anos fora da ABL, até que Rachel de Queiroz foi eleita para uma das cadeiras, seguida de outras poucas — não passam de dez até hoje.

Conquistas

No espaço amazônico, as mulheres foram lentamente ocupando espaço, principalmente nos campos artísticos, literário e político. Em Anthologia Amazônica: poetas paraenses, de 1904, Eustachio de Azevedo elenca, em resposta a Poetas contemporâneos, de Mello de Moraes Filho, trinta e dois escritores homens e nenhuma mulher. Reclama da ausência de escritores amazônicos na obra de Moraes Filho, o que, para o escritor paraense, soava como omissão ou até mesmo ideia proposital.

Entretanto, não observa o vazio que se percebe pela ausência das mulheres na época.

Nos arquivos das duas principais cidades amazônicas do início do século passado, Belém e Manaus, fins dos anos 20 e década de 30, vamos encontrar, no conjunto dos grupos literários que se organizaram — principalmente na capital paraense — os nomes de algumas poucas mulheres.

Entre elas, Adalcinda Camarão (1914-2005), Dulcineia Paraense (1918) e Eneida de Moraes (1904-1971). Embora os grupos literários fossem majoritariamente formados por jovens escritores estudantes de Belém ou Manaus, até mesmo do Acre, caso de Abguar Bastos, as mulheres estiveram presentes nesses grupos.

Eneida, por exemplo, a propósito do movimento modernista, colaborou com a Revista de Antropofagia, publicando alguns poemas, Assahy entre eles. Em 1929, publicou o seu primeiro livro de poesias, Terra Verde, livro de uma adolescente imatura, disse em entrevista a Dalcídio Jurandir.

Eneida nasceu numa Belém da época em que a borracha era o produto que embalava a riqueza das sociedades amazônica e brasileira. Foi no auge da borracha que Belém e Manaus passaram por grandes transformações de embelezamento estrutural aos moldes das cidades europeias. O pai de Eneida, Guilherme da Costa, fez fortunas negociando nos beiradões da Amazônia.

“Fora pobre, enriquecera. Viu como os outros faziam: compravam barato na cidade, vendiam caro nos seringais: gêneros alimentícios, bugigangas, roupas. A Amazônia nadava no ouro da borracha alta”, recorda ela em Banho de cheiro, de 1962, livro em que relata suas memórias da infância, rodeada de amigos no palacete da rua Benjamim Constant, às lutas e mobilizações em São Paulo e Rio de Janeiro contra a ditatura varguista, episódios que lhe renderam várias prisões.

Em Terra Verde, Eneida revela sua paixão pelo Pará, sua terra natal, e principalmente sua cidade de nascimento, Santa Maria de Belém: “cidade risonha, onde as mangueiras cantam a canção do vento”, diz ela em Oração do meu orgulho, poema que abre o conjunto de textos da obra.

Nesse trabalho, Vania Alvarez destaca a marca da identidade cultural do amazônida. Versos que têm como temática a natureza, as lendas, os mitos, as crenças, as tradições miscigenadas, os costumes e o cotidiano heroico dos caboclos ribeirinhos.

Nas capitais

Enquanto em Belém os grupos literários movimentavam as letras paraenses, em Manaus, observa Jorge Tufic, o que se via era um “apagão cultural”, com poucos movimentos. Entretanto, no início dos anos 1950, surge o que ficou conhecido como o movimento cultural Clube da Madrugada, do qual uma única mulher fez parte, ainda que indiretamente: Astrid Cabral (1936).

Astrid foi acolhida por sua participação nos grupos estudantis de Manaus, quando da publicação do seu primeiro livro, Alameda (1963), um conjunto de contos em que a escritora põe ao escrutínio do leitor personagens que fogem do comum, seres inanimados, como árvores, praças, cercas, muros, sementes, flores e o vento.

Alameda, observa Paulo Graça em Humanismo e destino, texto de apresentação da obra, exige do leitor uma contextualização para ser compreendido, porque o leitor que procurar a rigidez lógica e cronológica das ações se verá frustrado. Entretanto, lembra Graça, os contos de Alameda nada têm de desinteressantes e enfadonhos.

Astrid penetra no íntimo da psicologia humana para, por meio de seres sem voz, nos colocar em confronto com as nossas fragilidades. Assim se encontra o leitor ao ler o conto Um grão de feijão e sua história, bem como Laranja de sobremesa. Não nos escapam, no final da leitura de cada texto, reflexões sobre a condição humana num mundo em que descartamos ou desprezamos o que, aparentemente, nada tem de útil a nos oferecer. Ao mesmo tempo, somos descartados na velhice.

A primeira obra escrita de Astrid foi recebida com reservas pela crítica. Entretanto, das leituras e das compreensões vieram as críticas que deram a Alameda e a Astrid o lugar de destaque que a escritora —uma mulher e amazônida— mereceria numa época em que os homens ainda dominavam os espaços literários.

Apesar de tudo

E a propósito do que indagava George Simmel, que indagava no início do século passado sobre o que de diferente as mulheres teriam a oferecer no espaço literário? Terão as mulheres capacidade de não fazerem meras cópias do que os homens produziam, dizia ele? Em se tratando de Amazônia, Astrid e Eneida, bem como outras mulheres de sua época, responderam à altura com suas obra em prosa e poesia.

Mais de um século após o dia 8 de março ser instituído como o Dia Internacional da Mulher, cabe indagar o que mudou. No Brasil, apesar dos avanços, persistem a violência contra a mulher, a desigualdade de condições de trabalho — as mulheres ganham pouco mais de 77% do salário dos homens, além de ainda serem minoria na direção de grandes empresas e instituições públicas.

No espaço literário, elas vêm conquistando cada vez mais espaço, além de serem maioria na publicação de artigos científicos. O certo é que elas deixaram de ser minoria num espaço de lutas, a propósito do que observa Pierre Bourdieu sobre o campo literário.

Podemos, hoje, se questionados, lembrar nomes de mulheres na literatura, e, nestas primeiras décadas do século XXI, saber que elas não apenas escrevem, mas que também dirigem peças de teatro, filmes, novelas, coordenam grandes eventos culturais.

São sujeitos, não mais objetos dos escritos masculinos.

Joaquim Onésimo Ferreira Barbosa é Doutor e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação Sociedade – PPGSCA e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
Imagem em destaque: Lucilene Lopes Guajajara, participante da Marcha das mulheres indígenas. Natália Loyola/Amazônia Latitude

 

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