Cintas-largas em Super-8

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“Eu fiz uma imagem. Agora a gente está contando a história dessa imagem”.

Em 1973, a convite do governo brasileiro, o cineasta Jorge Bodanzky viajou com o repórter alemão Karl Brugger à região do município de Aripuanã, quando Mato Grosso era um estado só. O assunto era a inauguração de uma cidade científica, que desenvolveria o uso dos recursos naturais e a ciência da região de forma responsável. Durante um sobrevoo, o diretor filmou, por acaso, um grupo de indígenas Cintas-largas não contatados que tentaram flechar o avião.

Tudo aconteceu em um dia. Um avião Búfalo, da Força Aérea Brasileira (FAB), levou as equipes de correspondentes estrangeiros de São Paulo para Cuiabá. De lá, voaram por mais 970 km até Aripuanã, à época uma vila nas proximidades da cascata de Dardanelos.

O projeto da cidade, que seria conhecida como Universidade Humboldt, era mais um movimento ufanista dos militares para ocupar a Amazônia, agora com uma motivação científica. Depois das entrevistas com cientistas e representantes do governo, um piloto ofereceu a Brugger, junto com Jorge Bodanzky e Wolf Gauer, um sobrevoo no entorno. Foi quando o cineasta registrou as gigantescas malocas de uma etnia que desconheciam.

Como fazia em diversas ocasiões na época, o diretor filmou a rápida aventura em Super-8, para guardar alguma memória dos trabalhos, já que as películas 16mm eram enviadas para edição na Alemanha. E esqueceu.

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Jorge Bodanzky e o repórter alemão Karl Brugger em Aripuanã, 1973. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude

Cidade na selva

Em 1973, uma reportagem no jornal O Estado de S. Paulo dizia: “A cidade na selva tem verba liberada”. Foram cinco milhões de cruzeiros, aos quais seriam adicionadas outras somas igualmente vultosas. A ideia, apresentada em 1972 ao então ministro do Planejamento, Reis Velloso, por seu assessor Pedro Paulo Lomba, professor na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), era perfeita para a ideia de ocupação que os militares sempre perseguiram.

Ainda mais porque falava sobre a preservação do ambiente, dado que a concepção era da UFMT, em parceria com outros diversos órgãos de pesquisa, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

Os recursos financiariam a construção da cidade e de toda a infraestrutura — energia elétrica, saúde, saneamento, transporte e educação. O governo também vislumbrava meios de aproveitar o potencial agrícola e mineral da região, além de utilizar as quedas d’água para geração de energia.

Para ser chamada de Humboldt, a iniciativa contou com a parceria de alemães. Soube-se depois de uma troca de informações entre militares e representantes do país europeu sobre a oferta mineral. A universidade seria uma forma de garantir esse intercâmbio, trocando dados pelo financiamento do projeto.

Não deu certo para a cidade-ciência. Em 1975, outra chamada do Estadão trazia um Pedro Paulo Lomba queixoso. O ex-gerente do projeto Aripuanã culpava o governo, a troca de supervisões, a falta dos recursos prometidos e o abandono do projeto por quase um ano inteiro. A empreiteira credenciada para as obras sequer possuía registro em Conselho e o governo assumiu o prejuízo.

“Quando a gerência supervisora do projeto assumiu o canteiro de obras em 1973, havia palitos suficientes para quatro anos e 2.400 anzóis. Em compensação, faltava picareta, café, leite em pó, esparadrapo e remédio para disenteria”, disse Lomba ao jornal, queixando-se também da venda de terras pela Prefeitura de Aripuanã — que não poderia fazê-lo.

“O projeto era muito bem feito, era bacana. Mas, como tudo naquele momento, com as verbas desviadas para outras coisas, logo se tornou um projeto de fachada”, lembra Bodanzky.

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A cidade científica de Humboldt em Aripuanã, MT, era mais um dos projetos de ocupação encampados pelos militares. Soube-se depois da uma correspondência com o governo da Alemanha sobre o potencial mineral da região. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude

Aripuanã outra vez

Com o produtor Gernot Schley, Jorge Bodanzky voltou a uma irreconhecível Aripuanã dez anos depois, já ocupada por garimpeiros e sem cientistas ou Cintas-largas, mortos por doenças e bala.

A etnia permaneceu escondida por quase meio século após a chegada de seringueiros, e foi vítima de massacres que viraram o símbolo da violência contra os povos, como o do Paralelo 11.

A primeira viagem à cascata de Dardanelos e a imagem dos indígenas tentando flechar o avião só emergiram décadas depois, com a digitalização de arquivos Super-8 de Bodanzky.

“Eu não sabia de nada, Aripuanã não queria dizer absolutamente nada. Foi tudo em um dia só. Imagine, a gente vê índios que nunca foram contatados pelo homem branco e poucas horas depois eu estava de volta à minha casa, em São Paulo”, afirma o diretor.

No entanto, um contato da indigenista de Aripuanã, Maria Inês Hargreaves, que trabalhou na Operação Amazônia Nativa (Opan), mostrou um fio para se deslindar a história. Até então, pensava-se que os indígenas eram Paiter Suruí.

“Por acaso eu estava dando uma oficina no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. E mostrei essas imagens. E aí uma senhora disse ‘isso é do meu pai!’”, diz Bodanzky. O pai da aluna havia sido engenheiro em Aripuanã, mas já estava morto. Coube à mãe dizer que os indígenas eram suruís.

A partir de reportagens e dos arquivos do Super-8, Inês iniciou uma correspondência com o diretor sobre os registros, para explicar que os indígenas, na verdade, eram Cintas-largas.

O sobrevoo de Brugger, Wolf Gauer e Bodanzky, que registrou os índios tentando flechar o avião, teria sido o responsável pelo contato do grupo com a base dos cientistas em Aripuanã, em janeiro do ano seguinte, 1974.

“Eles viram um negócio barulhento, voando acima das aldeias, que eles acharam que era um gavião, e resolveram seguir. Tentaram flechar. E na primeira ida, receberam facão, machado e tudo dos pesquisadores do Inpa. Foram mantidos do outro lado da cidade para evitar contaminação e voltaram às aldeias contando das pessoas, das ferramentas e da comida”, afirmou Inês em entrevista ao cineasta, em 2020.

De acordo com o relato da indigenista, durante a visita de um segundo grupo, meses depois, houve contato com a população da cidade. O repórter Mario Chimanovich, do Estadão, cobria o tema e estava em Aripuanã, de onde relatou a recepção hostil, as roupas esfarrapadas oferecidas, a fome e a doença.

Outros roteiros

Na cronologia da obra de Bodanzky, a ida a Aripuanã em 1973 antecedeu Iracema. Não havia uma compreensão de que a Amazônia seria seu ‘grande palco’ de trabalho. Foi uma reportagem do Instituto Goethe, que divertiu o diretor pela comparação com o viajante Humboldt, que ajudou a evocar as memórias de Aripuanã.

Já em 2020, Inês achava que o piloto do avião era o prefeito da cidade na época, Amauri Furquim, que teve uma série de embates com os cientistas do projeto. Antes do novo coronavírus se espalhar, a dupla estava combinando viagens para produzir um filme e contar as histórias dos personagens do Super-8.

“Não dava para ler o prefixo da aeronave, mas o rosto do piloto aparece muito bem. E ela quer mostrar as imagens para ajudar a identificar quem era esse piloto, e por que ele fez isso”. As queixas de Lomba, da UFMT, tratavam também da venda de terras do projeto pela Prefeitura.

As tentativas paulatinas de explorar os recursos da região, assim como os embates entre pesquisadores e militares que enterraram a cidade-universidade, deram lugar à tensão causada por garimpeiros e empresas. Indígenas foram assassinados e morreram por doenças. Em 1979, a colonização bruta, segundo Inês, foi se estabelecendo na região, com a expansão das atividades de migrantes do sul, mas o interesse pelo potencial mineral na Terra Indígena Roosevelt, casa dos Cintas-largas, continua.

“Essas coisas tem um tempo diferente do nosso. Não duvido que as mesmas [empresas] que estavam nos anos 1970 com interesse mineral na região sejam as mesmas que vão usufruir de autorização num futuro breve”, alerta a pesquisadora.

A indigenista afirma que muitos personagens registrados no Super-8 ainda estão vivos, e a ideia é procurá-los. A produção também seria aproveitada para registrar o trabalho de Jorge Bodanzky, num filme sobre sua obra.

Apesar da pandemia, o cineasta segue atento à próxima chance de filmar. E explica, em relação ao achado de 1973:

“Eu fui lá para filmar uma coisa e filmei outra. Sorte temos, mas eu poderia ter dito ‘não preciso de imagem aérea, está bom o que tem e vamos embora’. Mas temos um outro instinto. Se há a chance de fazer um sobrevoo, por que não? E fazer esse registro. É um instinto de oportunidade.”

“Até hoje eu tento não deixar passar nada”. E segue planejando o roteiro do seu próximo filme.

 

Roteiros da Amazônia é uma parceria entre o cineasta Jorge Bodanzky e a Amazônia Latitude. Confira todas as edições aqui.
Imagem em destaque: As malocas dos Cintas-largas registradas em Aripuanã. 1973. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude

 

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