‘Se morrerem todos os professores, quem vai dar aula?’, diz Bessa Freire sobre línguas indígenas

problema ambiental

O Amazônia Latitude Podcast entrevista o professor José Ribamar Bessa Freire. Doutor em letras, o pesquisador coordena o Laboratório de Pesquisa e Oralidade (LABORAL/UNIRIO) e o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (PRO-ÍNDIO/UERJ). Formou professores indígenas por todo Brasil e também no Peru. Desenvolve pesquisas na área de História, com ênfase em História Social da Linguagem, e nos temas: literatura oral, memória, patrimônio, fontes históricas, história indígena, línguas indígenas e Amazônia. É criador do blog “Taquiprati” e mantém colunas semanais em jornais amazonenses.

Para o professor, é uma afronta que as universidades públicas brasileiras não ensinem o guarani, língua falada em mais de 100 municípios do Brasil, incluindo o Rio de Janeiro, assim como nos estados do Mercosul. Dos 228 mil verbetes registrados por Antônio Houaiss em seu dicionário, mais de 45 mil são de línguas indígenas.

“Quer dizer, como é que uma língua dessa, que marcou a nossa forma de falar, está fora das nossas universidades? Isso é uma aberração”.

Pedagogias da oralidade

Bessa começou a trabalhar com formação de professores indígenas quando estava exilado no Peru, durante a ditadura militar. Já no Brasil e professor da Universidade do Amazonas, participou da criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ao lado de Dom Tomás Balduíno e Dom Pedro Casaldáliga.

Assim começou seu envolvimento com a luta de reivindicação por uma educação bilíngue, específica e diferenciada para os índios do Brasil. “A importância desse trabalho (…) é que se trata de reconhecer a existência de uma pedagogia Tikuna, de uma pedagogia Kaxinawá. Não existe uma única forma de ensinar e aprender”, explica.

Na entrevista, Bessa conta que, para os povos indígenas, o que tipifica uma ação educativa é a sua natureza, não uma pessoa ou entidade, dispensando, muitas vezes, a figura do professor ou da escola. “Se aprende em todo momento e em todo lugar”.

O professor defende a recuperação do processo de aprendizagem indígena, por meio de histórias. Os tupinólogos da segunda metade do século XIX já registravam o método, como consta em seu livro, “Rio Babel, a história das línguas na Amazônia”.

“O cara chega lá e pergunta, para organizar o Museu Botânico: (…) ‘como é o nome dessa planta?’. Ele disse que os índios e os caboclos nunca respondiam ‘o nome dessa planta é tal’. Não. ‘Ah, essa planta?’ O cara contava uma história em que a planta aparece como protagonista. O Barbosa Rodrigues sacou que essas histórias, na verdade, são os livros, as enciclopédias, as escolas, desses povos oralizados”.

Guarani, língua viva

Dentre os equívocos que, segundo Bessa, a sociedade brasileira comete, aponta a noção de “índio genérico”, que apaga as particularidades de cada etnia: “o índio, como diz o Munduruku, é uma invenção. O que existe é o Munduruku, o Yanomami, o Guarani… cada um com sua língua própria, sua cultura própria, seus cantos e literatura própria”.

Indo além, também critica a contribuição da mídia e da escola na perpetuação do imaginário brasileiro a respeito dos indígenas: achamos que o autêntico é somente aquele conforme a descrição de Caminha em 1500. Para o pesquisador, negar a identidade indígena aos que usam computador, por exemplo, é desconhecer o básico da Antropologia: a cultura é dinâmica.

Na conversa, também comenta o racismo da imprensa e cita o caso de Paulinho Payakan, vítima recente da Covid-19. Líder indígena de dimensão internacional, Payakan foi profundamente desqualificado no contexto da Rio 92 (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – ECO-92), tornando-se objeto de estudo da antropóloga Maria José Alfaro Freire, como cita o professor.

Bessa compartilha sua indignação ante a pouca importância que as universidades brasileiras dão às línguas indígenas. Em 2000, conseguiu ministrar um curso de guarani na UERJ, mas na forma extensão, isto é, fora do currículo. Sobre isso, ele comenta:

“Olha só, qualquer aluno de universidade pública federal, se quiser estudar latim, que é uma língua considerada morta, porque ela já não é mais falada correntemente, ele vai encontrar. (…) E é bom que a universidade ofereça ensino de latim e de grego, porque a formação da língua portuguesa está aí”.

“Agora, nós temos uma língua, por exemplo, aqui no Rio de Janeiro, a língua guarani, que (…) é uma língua viva, falada nos Estados do Mercosul: no Brasil, no Paraguai, na Argentina, na Bolívia… e em mais de 100 municípios brasileiros”.

“O Antônio Houaiss, no dicionário dele do português falado Brasil, tem 228 mil verbetes, mais de 45 mil são de línguas indígenas. Quer dizer, como é que uma língua dessa, que marcou a nossa forma de falar, está fora das nossas universidades? Isso é uma aberração.”.

Tragédia sem fim

O professor também discutiu os impactos da pandemia de Covid-19 entre os povos indígenas. Os saberes tradicionais, segundo Bessa, registrados apenas em narrativas, contos e cantos correm risco de desaparecer.

Além de os mais velhos serem os principais vulneráveis, em muitos grupos indígenas, as crianças não estão mais falando suas línguas, pelo preconceito e pela inutilidade que a sociedade brasileira coloca para elas.

São eles, os avôs e as avós, sobretudo, as grandes responsáveis por introduzir a criança indígena na sua língua; e os velhos estão morrendo. (…) Se morrerem, na nossa sociedade, todos os professores, quem é que vai dar aula? É um pouco isso. É um incêndio de uma biblioteca, que toca fogo e não têm outros exemplares para substituir”.

Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que contabiliza a tragédia, 161 povos já foram afetados, com um total de 47.846 contaminados e 953 mortos (atualizado em 05/02/2021).

Para o pesquisador, o atual governo brasileiro reproduz o discurso e a prática da ditadura, mas reforça que isso se estendeu, com breves interrupções, em toda vida democrática do país desde o período colonial. Nesse sentido, avalia:

“Aqui para nós, quando o Bolsonaro fala contra os índios, ele está representando uma parcela importante da sociedade brasileira também, que, lamentavelmente, pensa assim. O nosso discurso acaba sendo feito dentro de uma bolha. A gente não consegue romper, porque a maioria da população brasileira vê o índio como preguiçoso, como atrasado, como ignorante… isso é terrível”.

“Fica claro que a defesa da Amazônia, aqui, é um pretexto para justificar a ocupação das terras indígenas. Ele estão aproveitando um sentimento de nacionalismo dos brasileiros, que o governo Bolsonaro faz”.

Bessa diz que é preciso conhecer melhor a pedagogia da oralidade e registrar línguas nativas, e explica com uma história.

“Quando você faz o que o Couto de Magalhães fez, coloca na escrita um registro oral, é como levar um doente para o hospital. Para que que você leva um doente para o hospital? Para ele ficar a vida toda lá? Não. É para ele se curar e voltar a se reintegrar no meio de onde ele saiu. Só tem sentido você transcrever por escrito essas narrativas orais, se você volta a fazer circular no campo da oralidade esses saberes”.

O professor conta que, no Brasil, eram faladas mais de 1.300 línguas. Hoje, segundo o instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem cerca de 274. Em seu livro, “Rio Babel – A história das línguas na Amazônia”, Bessa explica como e quando o país começou a falar português.

“A minha grande paixão mesmo é essa questão das línguas, que é o que eu venho me dedicando, há muito tempo, a estudar. (…) explicar o que é que aconteceu com essas línguas que eram majoritárias e foram minorizadas. ‘Ah, são línguas minoritárias’. Não. Elas foram minorizadas”.

Apesar de ter a sua segunda edição esgotada, a Editora da UERJ (EDUERJ), durante a pandemia, liberou a publicação para download grátis do livro do professor. Clique aqui para baixar.

 

Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Assine e mantenha-se atualizado!

Não perca nossas histórias.


Translate »