A cultura na alma de Alter do Chão: a história do Movimento de Roda de Curimbó

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Chico Malta e o violonista e mestre dos mestres, Sebastião Tapajós. Jackson Rego Matos/Amazônia Latitude

[RESUMO]A partir da história do Movimento de Roda de Curimbó, grupo dedicado ao carimbó, patrimônio e gênero musical, autor reflete sobre a defesa da Amazônia, a difusão da cultura e a carga política que permeia todas essas as manifestações.

O Movimento de Roda de Curimbó (MRC) nasceu no dia 29 de janeiro de 2010 com o objetivo de valorizar a riqueza musical amazônica, em especial a Santarena. Em festa inesquecível na casa de Chico Malta, o MRC surgiu de forma espontânea, como uma luz enigmática, repleta dos mistérios que compõem o imaginário caboclo.

A partir daquele encontro emblemático de músicos de vários lugares, formou-se o grupo que veio fortalecer a campanha, especificamente na Vila de Alter do Chão, do Carimbó, do Curimbó e do Carimbó Raiz como patrimônio cultural brasileiro.

A partir da miscigenação do indígena com o negro e com o branco, renasceu a ancestralidade do Carimbó Chamegado, batizado assim pela Musa do Carimbó, Dona Onete. A artista define-o como uma música que vem do fundo da mata e do rio, embalado no Ritmo alucinante do Gambá de Pinhel. Foi de lá que vieram Mestre Silvito Malaquias Ribeiro e os outros ritmos do Çairé, do Pacoval de Alenquer e da cultura indígena amazônica.

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Um dos momentos de origem do MRC foi a pesquisa com Seu Silvito sobre a essência do carimbó. Eduardo Nogueira/Amazônia Latitude

O MRC marcou a origem dos grupos de Carimbó de Alter do Chão e do Oeste do estado do Pará, sendo o primeiro grupo de Pau e Corda de Santarém. Seu repertório apresenta a continuidade com muita responsabilidade, como o grupo Espanta Cão. Os Ritmos da Festa do Çairé — as Folias, o Curimbó, o Marabaixo, o Lundu, o Siriá e a até o Samba de Roda — foram religados com o resgate dos passos das danças.

E quem ensinou os passos foram expoentes da cultura de Alter, como Seu Silvito e Dona Luzia Lobato, Mestre Chico, Capitão Camargo, Dona Zilma, Orlenice e a eterna Saraipora, Dona Maria Justa.

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Mestras e mestres de cultura de Alter do Chão, no Pará. Eduardo Nogueira/Amazônia Latitude

A força do canto

Junto com rituais indígenas, muito frequentes nas apresentações do MRC, as danças passaram a compor os shows nos palcos do espaço Alter, do Veterano Clube, e até em bares de Santarém. A rica diversidade musical popular do povo paraense criava uma atmosfera impressionante pela força do canto amazônico.

Com capa, encarte e produção fotográfica de Eduardo Nogueira, o CD produzido por Fabio Gonçalves Cavalcante esgotou-se rapidamente. Felizmente, seu blog disponibiliza as faixas, os encartes e até as partituras.

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Capa do CD ‘Tapajós em Festa’, do Movimento de Roda de Curimbó. Eduardo Nogueira/Amazônia Latitude

Atualmente, essas expressões podem ser observadas nas já consagradas quintas do Mestre e a Sereia, cujas apresentações acontecem no centro de referência do Carimbó “Mestre Chico Malta”, um lugar com cenário privilegiado da ilha do amor. O evento conta com os talentos dos novos cobras criadas, apelido dos integrantes do grupo Cobra Grande.

O conjunto é formado pela família Malta e por amigos e ex-integrantes do MRC, como Mestres Hermes Caldeira, do Grupo Quatá de Carimbó), Mestre Osmarino Cumaruara, do Grupo Cumaru, e participação determinante dos novos Carimboleiros, como Mestre Paulinho Barreto e Mestre Silvan Galvão, ambos com seus respectivos grupos e sereias.

Cultura é política

O Movimento de Roda de Curimbó atuou durante seis anos contra os megaprojetos na Amazônia, principalmente Belo Monte e as hidrelétricas no Rio Tapajós. Suas composições fizeram história em shows antológicos, como a abertura do Fórum Social Pan-amazônico. Na ocasião, o concerto começou no Bosque Municipal e virou cortejo, seguindo pela cidade até ser recebido na orla por um público de vários países da América Latina.

As músicas vão das lendas, como Cobra Grande, ao protesto, e embalaram a dança dos irmãos latinos no ritmo frenético do Carimbó, como numa grande Roda-Piracaia.

Primeiro grupo da região a se apresentar na Virada Cultural de São Paulo, dividiram o palco com Dona Onete, Lia Sophia, Gaby Amarantos e Felipe Cordeiro. Com extensa turnê por cidades amazônicas, o grupo teve participação decisiva no filme Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, de Beto Brant, com Camila Pitanga e Dona Onete no elenco. A partir da produção, nasceu uma grande amizade do cineasta com a Musa do Carimbó, com duas músicas reunidas no disco Tapajós em Festa: Chamego de Boto e Paixão Cabocla.

Não é fantasia dizer que o público, tanto local quanto global, que se encantou com o som, era o mesmo que aprecia os sons de Buena Vista Social Club, Lia de Itamaracá e Clementina de Jesus.

O novo trabalho do compositor principal do grupo, Chico Malta, é Rio Mar. Gravado pelo selo Natura Musical, totalmente produzido na Cabana do Tapajós, será lançado em fevereiro e conta com a percussão de Helder Gama. A expectativa é que este seja o ápice da carreira de Malta, com ricos detalhes da região e uma representação fiel do Oeste do Pará e do trabalho iniciado com o MRC.

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Chico Malta e o violonista e mestre dos mestres, Sebastião Tapajós. Eduardo Nogueira/Amazônia Latitude

Em frente

Mesmo com pequenas rupturas, o Movimento Roda de Curimbó continua vivo, atuando em outras frentes de defesa da Amazônia. Fortalece a arte e a cultura por meio dos ritmos. Helder Gama, o Catraca, tem produzido uma série de oficinas com grupos indígenas e quilombolas. Mesmo baseado em Minas Gerais, Catraca é presença permanente em movimentos como o das Caruanas, em comunidades ecológicas e vivências ritualísticas da cultura popular.

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O percussionista Helder Gama, o ‘Catraca’, considerado por Matos a força do ritmos amazônicos. Eduardo Nogueira/Amazônia Latitude

Nesses 11 anos, mesmo com os compromissos acadêmicos, continuo com o pé na folia e atuante no Çairé e, atualmente, no Centro de Integração Cabana do Tapajós, que mantém um rico acervo de artigos e fotos. É um trabalho que continuamos em prol da cultura e da natureza amazônicas.

Reafirmamos nossos compromissos contra as barragens, as mudanças climáticas, a destruição dos ecossistemas e todo tipo de insanidade que provoca estas pandemias. A consciência intelectual e política com que atuamos busca firmar nossa identidade e o respeito aos povos indígenas e quilombolas. É gratificante observar que este belíssimo trabalho está enraizado no canto dos indígenas que lutam pela demarcação de suas terras.

A base cultural que representa nosso pensamento pode muito bem ser representada pela expressão do artista plástico universal e hoje amazônico, José Roberto Aguiar. Ele sintetiza, a partir de William Blake e William Shakespeare, a alma da alma desse movimento eterno no coração de Alter do Chão, Santarém, Amazônia, Brasil e do planeta Terra: se as portas da percepção forem limpas, o homem irá compreender-se como ele é: infinito.

Como diz o mestre Chico: “Só tem consciência quem conhece a Essência. Viva o Carimbó. Viva o Çairé, viva a Vida, Viva o povo de Alter”.

Além de folião do Rito do Çairé, Jackson Matos pesquisa o carimbó e a natureza amazônica. Eduardo Nogueira/Amazônia Latitude

Jackson Rego Matos é graduado em engenharia florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília, com pesquisa sobre enraizamento cultural e ecoturismo na Amazônia brasileira, com foco em Alter do Chão. É professor na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
Imagem em destaque: Chico Malta e Sebastião Tapajós em apresentação. Eduardo Nogueira/Amazônia Latitude

 
 

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