O que será dos próximos dias?

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Profissionais de saúde choram após entregar cilindro de oxigênio vazio para familiar de paciente internado com Covid-19, neste domingo 17/01/2021, em frente ao Hospital 28 de Agosto, em Manaus (AM).
Médicos relatam cansaço e frustração em meio a agravamento da pandemia na capital e no interior do Amazonas

“A gente não vê um paralelo em relação à primeira onda. Agora está sendo muito mais rápida a evolução do número de pacientes”. Coordenador da Comissão de Residência Médica no Hospital Universitário Getúlio Vargas, em Manaus, Robson Amorim precisou reorganizar as escalas de plantão há pouco mais de um mês.

Especialistas, cirurgiões e médicos com férias programadas foram convocados para ajudar os colegas no setor clínico do Getúlio Vargas. A unidade de retaguarda, que realiza cirurgias eletivas, por exemplo, teve a rotina alterada pela demanda de leitos para pacientes do novo coronavírus. O ritmo dessas mudanças, no entanto, tem aumentado exponencialmente desde o fim de dezembro.

A 370 km dali, em Parintins, que está em lockdown, Clarice Lage havia acabado de retornar de uma incursão na Terra Indígena Andirá-Marau, território dos Sateré-Mawé. A profissional atua pelo programa Mais Médicos desde o ano passado em aldeias na nascente do rio Marau, no Amazonas.

Psiquiatra de formação, a médica percebeu um aumento de atendimentos entre a penúltima entrada no território, que dura cerca de 15 dias, e a mais recente, finalizada em 18 de janeiro. Além disso, viu a ocorrência de mais casos graves, principalmente entre crianças.

“Dessa vez foi assustador, porque foram graves e a maioria eram crianças abaixo de 5 anos. Havia momentos em que eu chegava à aldeia e havia 30 crianças com sintoma, tosse, diarreia, para fazer avaliação”, afirma Clarice.

Na cabeceira do Marau

Desde o início da pandemia, os povos indígenas já perderam centenas de crianças, jovens e anciãos — bibliotecas vivas e motivo de grande preocupação sobre o desaparecimento da cultura. Os dados do governo, reunidos em boletins da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), apontam 537 mortes e um total de 40.937 casos confirmados até 25, em texto publicado ontem (25).

Já os dados coletados pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que reúnem informações de lideranças e movimentos indígenas além das oficiais, somam 749 óbitos e 33.202 casos confirmados até o dia 21 de janeiro.

Para chegar às aldeias que atendem na região do rio Marau, equipes como a de Clarice — que contam também com enfermeiro, um ou dois técnicos de enfermagem e um agente de saúde indígena — se deslocam de Parintins, sede do Distrito Especial de Saúde Indígena (DSEI), para Maués de barco, se possível, ou de helicóptero. De lá, os times se dividem em lanchas para atender diferentes polos.

A equipe de Clarice vai até o polo mais afastado, cujas aldeias ficam a três horas de lancha umas das outras. Localizadas na cabeceira do rio, estão divididas em ‘braços’.

“É como um ‘Y’. A gente vai para um lado, dormindo cada dia em uma aldeia diferente, atende três dias e volta. E depois vai para o outro braço”, explica a médica.

Além do trabalho relacionado ao coronavírus, a equipe faz atenção básica, que consiste em atendimentos a jovens, gestantes, idosos e todas as necessidades gerais. “Nossa chegada é um acontecimento, aí a gente explica os cuidados da pandemia e organiza o fluxo”.

Casos menos graves são tratados no território, mas, quando há necessidade, a transferência para o polo do DSEI em Maués é feita por uma ‘ambulancha’, como aconteceu com cinco crianças em estado grave.

“É um rio pequeno, a gente precisava transportá-las de uma cabeceira ao polo para tentar oxigênio, foi um desgaste muito grande. E também porque a gente precisa responder a essa demanda…, foi um trabalho muito cansativo”, lembra Clarice.

“Eu me percebi muito ansiosa, com muito medo. Foi muito difícil lidar com essa realidade. Até porque é uma população com que já tenho quase um ano de contato, a gente desenvolve afeto. Parte do meu trabalho é essa disponibilidade afetiva. Foi um peso ver as crianças brincando e depois se sentindo muito mal, com falta de ar. A gente não teve óbito por Covid-19 nessa entrada, essas crianças estão internadas. Junto da gente entrou outra equipe de resposta rápida, que auxiliou a manejar [os casos].”.

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Comerciantes de Manaus protestaram contra anúncio de restrições no dia 26 de dezembro de 2020, quando número de internações acelerava. Edmar Barros/Amazônia Latitude

‘Infelizmente vai se espalhar’

Em Manaus, o médico Robson Amorim pensava, como toda a comunidade que acompanhava a pandemia na capital, que os números iriam se estabilizar após o crescimento dos casos, em 2020, e o sistema de saúde poderia manter o atendimento organizado.

“De fato, aqui abriram as escolas privadas, o comércio voltou a funcionar, isso já em julho e agosto. As coisas foram progressivamente voltando a funcionar e o número de casos se manteve relativamente estável, então os hospitais estavam dando conta. Estava tendo caso? Sim, mas tudo dentro do esperado”, afirma Amorim.

No entanto, as internações aceleraram na primeira quinzena de dezembro, e o médico crê que a situação já piorava exponencialmente antes das festas de fim de ano. Quando ensaiou um decreto de lockdown, no fim de dezembro, o governador Wilson Lima enfrentou protestos de comerciantes. Nesta segunda-feira (25) começou a valer o lockdown determinado por Lima, e as restrições de atividades não essenciais seguem até a próxima segunda-feira.

O boletim mais recente aponta que o Amazonas já superou os 250 mil casos e conta 7.146 mortos, de acordo com dados da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas – FVS/AM. O próprio órgão perdeu Rosemary Pinto, sua diretora-presidente, para a Covid-19. A médica faleceu na sexta-feira (22).

O Getúlio Vargas também foi um dos hospitais da capital, junto com 28 de Agosto e Platão Araújo, que registrou mortes por asfixia após o esgotamento dos cilindros de oxigênio.

“Como foi tudo rápido, basicamente na segunda semana [de janeiro] começaram a faltar insumos e a gente começou a perceber que ia faltar medicação. Fentanil, que serve para fazer sedação, antibióticos, consumidos extremamente rápido, e oxigênio”, diz Amorim. O médico acredita que a falta de cilindros pode e já afeta outras cidades, como Manacapuru e Coari — a última registrou sete mortes por asfixia em 19 de janeiro.

Em todo o Amazonas, o Ministério Público Federal havia registrado 51 óbitos até a terça-feira (19), de acordo com a revista Época.

Em relação à presença de uma variante do novo coronavírus, o médico diz que aguarda estudos, mas percebe, junto com colegas de outras unidades, que o comportamento do vírus mudou.

“Pessoas jovens estão precisando ficar com oxigênio domiciliar, por exemplo, então a gente está trabalhando há algumas semanas com vários pacientes que estão em casa, fazendo terapia respiratória, algo que não aconteceu na primeira onda”.

Os problemas também se agravaram entre gestantes e recém-nascidos, afirma Robson, além de pacientes que desenvolvem sintomas graves entre cinco e sete dias após a contaminação. Hoje circulam relatos de pessoas que precisam de entubação com duas ou três semanas depois do contágio.

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Familiares de paciente internado com Covid-19 aguardam por 20 horas para recarregar cilindro de oxigênio em Manaus. Edmar Barros/Amazônia Latitude

Os dias seguintes

Depois de quase um ano de enfrentamento da pandemia e exaustão dos profissionais, o trabalho ainda parece estar longe de acabar. Por isso, afirma Clarice, é necessário pensar a vida depois da vacinação, cenário em que a sociedade projeta esperança para lidar melhor com períodos de restrição.

“A gente estuda as coisas de uma forma muito metódica, mas não está desligado da parte afetiva. Trabalhar movimenta uma frustração, muitos sentimentos, impotência. Então tenho tentado construir para mim que a vacina não virá como resolução de tudo. A gente vai precisar levar uma vida um pouco mais restrita por um pouco mais de tempo”, diz.

Para a médica, a pandemia teve momentos simbólicos: o que é o vírus, como isso vai mexer na vida e, agora, uma certa desilusão. “Talvez seja mais fácil dizer que não tem jeito, que não vamos dar conta e que quem tiver de ir, que vá. O que é triste e causa uma sobrecarga enorme no sistema de saúde e nos profissionais. Quem imaginou uma coisa dessa? Quem dá conta de lidar com isso? Grande parte está cansada, porque parte do processo é se doar”.

Na capital, Amorim também avalia que é preciso resistir por mais tempo e que a solidariedade tem sido essencial. “Graças a Deus, todo mundo está se mobilizando. Mas essa ajuda vai demorar um pouco para chegar por conta da logística da cidade e isso não tem jeito, tem que ser considerado. Com oxigênio e outros insumos, a gente consegue fazer o que é mais importante de imediato, que é salvar vidas. A gente nasceu para isso e fica se sentindo impotente frente ao que está acontecendo.”.

O profissional também avalia que a vacinação não é a resposta perfeita à pandemia, mas que é necessário mobilizar toda a sociedade para as campanhas.

“Não dá para dizer que é a última esperança, mas é o que tem mais poder para salvar inúmeras vidas. Uma campanha maciça tem de ser feita. Se o governo federal não está fazendo, se ninguém ainda está fazendo, é preciso começar. Porque a gente não quer ver outras cidades sucumbirem à falta de oxigênio como Manaus”, diz o médico.

Imagem em destaque: No hospital 28 de Agosto, em Manaus, profissionais de saúde choram ao entregar cilindro de oxigênio vazio para familiar de paciente com Covid-19. Edmar Barros/Amazônia Latitude

 
 

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