O enigma Zuruahã, um padre na Amazônia e um índio na cidade

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Em 2005, o cineasta Jorge Bodanzky embarcou para a Amazônia em um dos muitos trabalhos com Gernot Schley, produtor na tevê do estado alemão da Baviera. A emissora era patrocinada pela Igreja Católica, mas o vasto número de documentários já produzidos pela dupla não tratava de religião. Os temas sociais, culturais e históricos dominavam as produções da parceria, que vinha desde os anos 1980.

Essa viagem foi a experiência mais radical de Bodanzky na Amazônia, nas palavras do próprio diretor. Não pelo sentido geográfico, mas pela experiência em si: filmou os Zuruahã (suruwahá), etnia que ainda hoje tem entre 100 e 200 pessoas vivendo em terras próximas de igarapés, na bacia do rio Purus, no Amazonas.

Antes circulando num extenso território, o povo manteve-se isolado até meados dos anos 1970, quando conflitos e invasões de seringueiros demandaram maiores intervenções. Para mediar a situação e garantir os direitos à terra, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), junto com a Operação Amazônia Nativa (OPAN), indicou o padre alemão Gunter Kroemer, da Prelazia de Lábrea (AM).

Mais de duas décadas depois, o padre faria as vezes de tradutor e guia para a dupla Bodanzky e Gernot, durante as filmagens entre os Zuruahã.

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O padre Gunter Kroemer e o jornalista Gernot Schley no território Zuruahã, no sul do Amazonas. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude

Onde acaba a Transamazônica

“Então organizamos essa pequena expedição, muito pouca gente, na parte técnica era só o Gernot que fazia o som, eu fazia a câmera e o Gunter que era guia e fazia o contato com os índios”, lembra Bodanzky. E acrescenta que o padre se correspondia com o então Papa Bento XVI.

Jornalista, câmera e padre se encontraram em Manaus e, sete dias depois, numa viagem de barco pelo rio Purus, chegaram a Lábrea, no fim da Transamazônica. Dali foi mais uma viagem pelo rio Tapuá, onde só se viu uma casa abandonada do CIMI e mais nada. Mas os Zuruahã não ficam na beira do rio, é preciso seguir uma trilha de oito horas para encontrá-los.

“Eu tinha que parar e filmar tudo, e numa dessas eu escorrego e torço o pé. A sorte é que naquele momento já estávamos próximos dos Zuruahã. E pensei: ‘meu Deus do céu, como vou trabalhar com o pé inchado?’. E todos na aldeia ficaram impressionados com o inchaço no meu pé, diz Bodanzky.

Os Zuruahã receberam os convidados com alegria. E deixaram-nos logo a seguir para continuar com seus afazeres quotidianos. Os viajantes se acomodaram nas redes e trataram de dormir, pois começariam as filmagens no dia seguinte. Ao acordar, Bodanzky notou que, como por milagre, o edema em seu pé havia desaparecido.

A ideia do filme não estava clara para o diretor Gernot, que buscava, a princípio, indígenas com características culturais preservadas, antes do contato com os brancos. Como todo alemão, programava o roteiro nos mínimos detalhes: dia para filmar a caça, dia para a pesca, entre outros.

“Falei ‘seja lá o que Deus quiser, vamos filmar o que esses índios estão fazendo’. Nos primeiros dois, três dias, ficávamos observando e filmávamos quando algo acontecia. E aí a gente ficou sabendo da história dos suicídios”, lembra o diretor.

Mas o padre Gunter não gostava de falar sobre esse tema, pensava que a repercussão de ‘índios que se suicidam’ poderia ser negativa e sensacionalista — o que de fato aconteceu em anos recentes, com a publicação de conteúdo falso sobre a etnia. Ligada à visão de mundo zuruahã, a prática foi descrita com muito cuidado por outro personagem, Miguel Aparício Suarez, que viveu por anos entre os indígenas.

Entre enigmas

“Eu trabalhava na região do rio Purus e recebi um convite do CIMI para fazer parte da equipe que desenvolvia um projeto com os Zuruahã. A princípio fui com muita expectativa, mas com a inexperiência de lidar com um povo que tem fortíssimos contrastes com a nossa cultura”, diz Aparício. Foi em fevereiro de 1995.

Jorge Bodanzky registrou os depoimentos do antropólogo, hoje professor na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), durante as comemorações de 40 anos da OPAN, em 2009. Aparicio conta nos vídeos, exibidos na TV Navegar, que foi recebido pelo povo Zuruahã de braços abertos e de forma muito franca — logo deixaram transparecer os comos e por quês do seu mundo. O professor também ouviu o relato de um passado muito trágico, “enfrentado com um dinamismo incrível”, nas suas palavras.

“Ele nos deu uma visão de dentro para fora, e não de fora para dentro a respeito dos índios. Eu gosto desses quatro depoimentos do Miguel Aparício. Mesmo posteriormente, fui entender mais os Zuruahãs a partir desses vídeos dele”, lembra Jorge.

No passado, antes do isolamento, os Zuruahã viviam em vários grupos, num vasto território, com trocas e relações sociais, até que a invasão de seringueiros desencadeou uma trilha de violência e mortes. A prática do suicídio, relata Aparício, é um desespero que tenta um passo além, “com muitas contradições para nossa compreensão, mas uma expressão radical de vitalidade”.

É como se as tensões do cotidiano tivessem a capacidade de reviver o trauma histórico e o drama coletivo. A certeza, naqueles momentos, diz o antropólogo, era de que o fim do povo era iminente. O que contrasta com a alegria e a cordialidade do dia a dia da etnia, mas é parte integrante de sua visão de mundo.

“A grande questão é essa que o Aparício explica muito bem, pelo fato de ter vivido lá. Ele entendeu a mentalidade desses índios, o que eles passaram, o que fazem e o que significa tudo isso”, afirma o diretor.

Encantamento pela diferença

A melhor proposição para construir uma sociedade, para Aparicio, é com muitas cores e muita diversidade. E isso foi um aprendizado entre os Zuruahã. As histórias sobre o mundo antigo, a ancestralidade, ajudaram a rever e relativizar sua própria história e mudar suas percepções do mundo — foi o encantamento pela diferença.

E foram as diferenças, mostradas de forma franca, que impressionaram Bodanzky. Um evento era o que o cineasta chamou de “hora da novela”. Das seis às oito da noite, todos se reuniam nas gigantescas ocas, que abrigavam várias famílias, onde eles riam, conversavam e dormiam em seguida.

Para ser reconhecido como homem, entre os índios, diz Bodanzky, era preciso ser casado e ter filhos. O padre Gunter teve a perspicácia de avisar ao diretor que levasse fotos de sua família, por precaução. Toda noite era preciso mostrar imagens de sua mulher e filhas para um grupo de curiosos.

Em uma dessas noites, Bodanzky lembra que acordou com o barulho de um helicóptero muito próximo da maloca em que dormia. Enquanto corria para ver a aeronave, lembra que “a criançada ria, ria e ria, eles imitaram o barulho para enganar a gente, e eu caí. Achei que era um helicóptero e era uma brincadeira”.

Foram alguns dias entre apresentações, risadas e gravações do documentário. Na volta, durante a caminhada de horas, o diretor escorregou de novo, mas não torceu o pé. Um grupo dos Zuruahã ajudou os viajantes até o barco e participou com entusiasmo de um almoço com eles.

Já no rio, Bodanzky fez imagens de uma casa de missionários do JOCUM, sigla para Jovens com uma missão, grupo do Summer Institute of Linguistics, que estavam à espreita para entrar no território dos Zuruahã e conquistar fieis, o que gerava atritos com o CIMI, que tinha outra maneira de lidar com o povo.

“É importante dizer o seguinte: o Gunter, apesar de padre, não catequizou nada. Sua missão era estar junto, não catequizar”, afirma o diretor.

Uma experiência radical

A ocasião foi a primeira em que Jorge Bodanzky fez, para a televisão alemã, fotos digitais e vídeos com uma câmera mini Dv. O filme, no entanto, foi com Gernot para a Europa e nunca mais voltou. O produtor morreria no ano seguinte, e as produções da parceria aguardam o trabalho de uma pesquisadora que vai mapear toda a produção do cineasta brasileiro para a Alemanha.

O registro dos Zuruahã em 2005, lembra Bodanzky, pode ter sido um dos últimos com uma cultura autóctone preservada. Com mais de 50 anos de carreira, muitos deles dedicados à Amazônia, o cineasta considera que a ida ao território dos Zuruahã foi sua experiência mais radical. Embora já tenha gravado durante a ditadura militar e feito uma expedição ao Pico da Neblina, o significado não se limitou apenas às extensas caminhadas exigidas pelo trabalho.

“O que mais chama a atenção, e não é particularidade deles, mas de todas as aldeias onde fui e tive chance de permanecer mais tempo, é o carinho. O amor, eles te abraçam, são muito carinhosos e delicados. A ponto de você chorar quando sai dali, tanta é a emoção de viver um tempo com eles e ter que deixá-los”, diz Bodanzky.

Assim como Aparicio, que teve sua visão de mundo modificada permanentemente pela convivência com os Zuruahã, no depoimento, o pesquisador fala sobre sua experiência de quatro anos tentando ser ‘um índio na cidade’, tentando viver as experiências entre os Zuruahã na sua aldeia, a cidade.

“Já fiz loucuras maiores, já tentei subir o Pico da Neblina. Essa foi mais profunda”. Não em termos geográficos, diz Bodanzky, mas no sentido espiritual.

 

Roteiros da Amazônia é uma parceria entre o cineasta Jorge Bodanzky e a Amazônia Latitude. Confira todas as edições aqui.
Imagem em destaque: Os zuruahã no Amazonas. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude

 

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