Amazônia: um novo ponto de virada?

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O bioma amazônico é hoje a maior floresta tropical remanescente do mundo, abrigando cerca de 10% da biodiversidade do planeta, o que inclui algo em torno de 40 mil plantas, 3 mil peixes, 1.300 pássaros, 400 anfíbios, 378 répteis e mais de 300 espécies de mamíferos. O rio Amazonas, com aproximadamente 1.100 afluentes, é o maior sistema de drenagem fluvial do globo, representando 20% da água doce mundial.

Esse bioma é essencial na manutenção do regime de chuvas do Sul e Sudeste do Brasil e de parte da América do Sul. O fenômeno dos “Rios voadores” é um ciclo recorrente de chuva e evapotranspiração no ecossistema da floresta tropical, que fornece umidade até a Argentina por meio de massas de ar. A floresta recicla a umidade de cinco a seis vezes antes de se dirigir ao sul, tendo em vista a proximidade do alto paredão dos Andes.

O solo, como parte desse ecossistema vital, tem um papel importante na conservação do bioma. Em geral, solos empobrecidos e ecossistemas de solos muito frágeis são a base para uma vegetação exuberante. Muitas vezes, a riqueza de uma floresta tropical deriva do fato de que todos os nutrientes necessários às plantas são produzidos pela reciclagem da própria floresta.

As preocupações com esse ecossistema frágil, essencial para o bem-estar do planeta, têm sido discutidas em diversos e importantes fóruns ambientais e econômicos há décadas. No último Fórum Econômico Mundial, em Davos, durante o painel “Garantindo um futuro sustentável para a Amazônia”, o ex-vice-presidente dos EUA, Al Gore, chamou a atenção para a inadequação de tentar vincular o desmatamento para implantação da agricultura ao combate à pobreza. Ele lembrou que os solos da Região Amazônica são, em geral, empobrecidos, e é uma falsa esperança pensar que a agricultura naquela área seria uma resposta sustentável à pobreza.

A virada e o que vem depois

Além disso, existe um risco enorme e iminente para a Região Amazônica. Thomas Lovejoy, ambientalista estadunidense, e Carlos Nobre, climatologista brasileiro, ambos cientistas renomados e reconhecidos mundialmente, em um editorial à publicação Science Advances, revisitaram, revisaram e aprimoraram o conceito de “ponto de virada para o sistema floresta tropical”, que é o ponto crítico limite no qual a conversão da floresta tropical para cerrado ou talvez deserto pode se tornar irreversível.

Para contextualizar o problema, eles colocaram duas questões:

Primeiro: quanto desmatamento seria necessário para fazer com que o ciclo se degradasse a ponto de não conseguir mais sustentar o ecossistema da floresta tropical? E depois: onde pode ser o ponto de virada para a degradação do ciclo hidrológico gerada pelo desmatamento?

A resposta traduziu suas preocupações: nós acreditamos que as sinergias negativas entre desmatamento, mudança climática e uso generalizado de fogo indicam um ponto de virada para o sistema amazônico se transformar em ecossistemas não florestais ao leste, sul e centro da Amazônia, será com 20-25% de desmatamento. Além disso, os pesquisadores pediram que se contenha futuros desmatamentos, reduzindo a área desmatada para menos de 20%, pela razão óbvia de que não é sensato descobrir o ponto de virada, atingindo-o.

O artigo seguinte dos autores alertava que o desmatamento atual é considerável e assustador: 17% em toda a Bacia Amazônica e se aproximando de 20% na Amazônia brasileira. Sinais ameaçadores do ponto de virada.

Não há dúvida de que estamos muito próximos desse limiar. Esse ecossistema corre um perigo sem precedentes devido ao desmatamento, ao destocamento e às queimadas. A derrubada da floresta, que vinha diminuindo lentamente, voltou a uma escalada perigosa nos últimos anos e parece ser ainda pior neste ano.

O ponto de virada para o ecossistema amazônico transformar a floresta tropical em savana, nos solos argilosos, ou em deserto, nos solos de areia branca, é como um rinoceronte cinza que se aproxima, sem que o governo brasileiro faça qualquer esforço para sair de seu caminho.

Coronavírus e velhos problemas

Além disso, a pandemia de Covid-19 revela ao mundo que, especialmente na Região Amazônica, a vida e a cultura dos povos indígenas estão em risco. No último censo em 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimou a presença de 817.963 indígenas, divididos em 305 etnias, falando 274 línguas. Destes, 63,4% vivem na Região Norte, sendo os estados do Amazonas, Pará e Roraima os que abrigam a maior parte desses povos.

Sebastião Salgado, famoso fotógrafo brasileiro, ao lançar sua campanha contra o extermínio desses grupos, disse: “Os povos indígenas do Brasil enfrentam uma grave ameaça à sua própria sobrevivência com o surgimento da pandemia da Covid-19. (…) Sua situação é duplamente crítica, porque os territórios reconhecidos para uso exclusivo de populações autóctones estão sendo ilegalmente invadidos por garimpeiros, madeireiros e grileiros”.

Salgado mobilizou centenas de personalidades em todo o mundo e, até o momento, em torno de 300 mil pessoas assinaram o manifesto em defesa dos povos indígenas brasileiros, pedindo a criação de uma força-tarefa para protegê-los.

Segundo o Instituto Socioambiental, os números recentes da Covid-19 da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) são os seguintes: 35.024 casos confirmados e 841 óbitos, afetando 158 etnias. Esses números são indiscutivelmente preocupantes. Não há dúvidas de que a Região Amazônica pode estar enfrentando um novo ponto de virada para alguns grupos indígenas, que é o limiar crítico no qual suas vidas e cultura estão em risco de desaparecerem do planeta.

Para tornar este cenário ainda pior, além da Covid-19, os pontos de virada tanto do ecossistema da floresta tropical quanto da sobrevivência dos povos indígenas estão umbilicalmente ligados. A mesma cadeia de eventos que pode provocar um, provocará o outro. O desmatamento desordenado para agricultura e pecuária, queimadas, mineração, exploração madeireira e grilagem são os inimigos comuns para ambos, o ecossistema floresta tropical e a vida e cultura dos povos indígenas.

Infelizmente, os instrumentos de combate a esses pontos de virada estão nas mãos de um governo que provou, por meio de atos e palavras, que não se preocupa com a proteção do bioma floresta tropical, tampouco com o bem-estar e a sobrevivência dos povos indígenas. Como exemplo, o presidente Bolsonaro sancionou com vetos um projeto de lei aprovado no Congresso brasileiro com medidas para proteger os povos indígenas durante a pandemia do novo coronavírus.

As medidas vetadas preservariam as vidas indígenas, como “acesso à água potável” e “distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção para aldeias”. Também está nesse grupo a obrigação do governo de realizar ações para garantir “o fornecimento emergencial de leitos hospitalares, tratamento intensivo, respiradores e máquinas de oxigenação do sangue” aos mesmos.

Para justificar os vetos, o argumento foi que o projeto de lei criava despesas obrigatórias sem demonstrar os respectivos impactos orçamentários e financeiros, o que seria inconstitucional.

Agora é a hora de aumentar nossa conscientização da necessidade de persuadir o governo brasileiro de que a saúde do ecossistema floresta amazônica é essencial para a preservação da biodiversidade e controle climático global e que as vidas dos povos indígenas importam e merecem ser protegidas.
Leia o texto original em inglês. Read the original article in English.

Imagem em destaque: Operação do PrevFogo/Ibama na Amazônia. Vinícius Mendonça/Ibama
Mauricio Fontes é professor no Departamento de Solos da Universidade Federal de Viçosa. Tinker Visiting Professor do Latin American, Caribbean and Iberian Studies (LACIS)/Soil Science Department da University of Wisconsin (EUA). Lecionou na Universidade de Stanford (EUA)
Tradução de Caíque Pereira
Foto: Vinicius Mendonça/Ibama

 

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