Retomada verde: um sonho possível?

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Queimada e vista em meio a area de floresta proximo a capital Porto Velho. Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real.

Desastre ambiental leva setor privado a encampar mudança de postura

A maior floresta tropical do mundo, mesmo com alguma chuva, incomum no seco verão amazônico, está queimando. Não bastasse uma floresta úmida pegar fogo, ao seu lado, outro bioma se esvai: o Pantanal. Brasil enfrenta uma das piores crises ambientais de sua história: as queimadas na Amazônia na primeira quinzena deste mês superam as registradas em setembro de 2019, que já haviam batido recordes de uma década, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Em resposta ao cinismo do Executivo, que continua apostando na regularização da grilagem, setores produtivo e financeiro pressionam por uma retomada econômica sustentável, seguindo movimento mundial.

Especialistas apontam que a mudança precisa de comprometimento da sociedade e de discussões sobre aspectos estruturais, como o acesso à terra e o respeito às comunidades tradicionais.

A despeito da incalculável tragédia, a Covid-19 acendeu o alerta para a impossibilidade de manter a humanidade apartada da natureza, crença da nossa civilização. A racionalidade moderna ocidental, marcada pela dicotomia entre o ser pensante e a simples matéria (res cogitans e res extensa), elevou a vaidade humana ao julgá-la a única espécie que importa.

Contudo, a rápida proliferação de um organismo singelo provou que já não é possível garantir espaços de segurança no planeta. Até então, comunidades inteiras acreditavam pertencer a um espaço inviolável, que, mesmo esvaziado de sentido, parecia funcionar bem, ainda que exaurindo outras partes (e fontes) da vida.

Este é um grave sinal de que o planeta está doente e que o descontrole climático nos leva ao limite.

Sendo a crise climática a grande ameaça do século, é preciso superar o atual modelo de produção, consumo e extrativismo. Para reduzir riscos de novas epidemias e eventos climáticos extremos, é preciso pensar novos modelos de desenvolvimento no fim deste capítulo da crise provocada pela pandemia.

Com poucas exceções, o bloco europeu desponta nas propostas de uma retomada verde no mundo. O chamado Green New Deal representa essas intenções. Países como Alemanha e França têm encabeçado críticas e manifestado preocupação em relação ao acordo comercial entre Mercosul e UE, um dos grandes trunfos do governo brasileiro, caso não haja medidas e compromissos consistentes no setor ambiental.

 

Embora outros países de fora do continente acompanhem essa dinâmica, a reação em cadeia depende do movimento das maiores potências — e também maiores poluidores — China e Estados Unidos, este último motivo de grande expectativa por causa das eleições presidenciais.

Brasil na berlinda

Desde o Fórum Econômico Mundial de 2019, em Davos, ficou claro que o modelo de desenvolvimento sustentável não se opõe a negócios. O momento atual, mesmo com resistência, é de transição. Atentos a isso, grupos empresariais, bancos e fundos começaram a tratar o assunto como o novo padrão de investimentos.

Há quem diga que o mercado está apenas pintando produtos de verde, mas é preciso olhar além e usar as boas ferramentas que já temos para mudar paradigmas, diz Marcus Nakagawa, coordenador do Centro ESPM de Desenvolvimento Socioambiental, em artigo na Folha de São Paulo.

Infelizmente, o Brasil tem chamado a atenção internacional pela carnificina por que passam seus principais biomas e já começa a sofrer boicotes comerciais. Num momento em que depende de acesso a crédito para garantir sua retomada econômica, fica cada vez mais isolado.

Em julho, ex-ministros da fazenda e ex-presidentes do Banco Central publicaram um manifesto inédito apontando a necessidade de um novo modelo de crescimento econômico para o Brasil, com fim de subsídios a combustíveis fósseis e políticas para crescimento saudável.

Ao seu lado estão empresários, imprensa, economistas, acadêmicos, instituições financeiras e sociedade civil organizada.

Há uma preocupação em difundir as boas práticas, como tecnologias já circulantes para rastrear cadeias de suprimento e como os setores podem tornar obrigatórias essas medidas para a assinatura de contratos. Essas informações estão em um dos estudos recentes publicados pelo Instituto Igarapé.

É inconteste a emergência de zerar o desmatamento por diversas razões mas, principalmente, porque o país possui terra o suficiente para atender sua demanda interna e externa por décadas. Basta melhorar a produtividade de terras já disponíveis por meio da recuperação de pastagens degradadas e da integração entre lavoura e pecuária.

Além de evitar o rompimento de acordos comerciais, a adoção de uma economia verde possibilita geração de riquezas: pode gerar R$ 2,8 trilhões e adicionar 2 milhões de empregos no Brasil até 2030.

Verde para quem?

Para superar a queima de combustíveis fósseis, alternativas vêm sendo desenvolvidas, como os biocombustíveis, cuja combustão é bem menos tóxica ao ambiente. No entanto, a opção pode ter impacto na preservação florestas, já que é produzida a partir de culturas alimentares.

A demanda de áreas para plantar cana de açúcar, milho, soja, palma, etc. pode impulsionar, por exemplo, novos ciclos devastadores na Amazônia.

Além disso, ainda estão em vigor legislações estimulando o desmatamento. Embora se saiba que floresta de pé é capaz de fornecer muito mais riquezas do que derrubada, em alguns lugares, prevalece o benefício pecuniário da devastação.

Um exemplo é o município de Feliz Natal-MT, onde a prefeitura determina, para fins de arrecadação de impostos, que área de floresta vale aproximadamente um terço da área boa para a lavoura (R$1.480 e R$4.433, respectivamente). Assim, proprietários desmatam para valorizar suas terras.

O custo de oportunidade da conservação precisa ser melhor divulgado, assim como as externalidades negativas da utilização irresponsável dos recursos naturais. É o que diz Salomão Neves, professor do departamento de Economia e Análise da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Ao ponderar custos e benefícios, explica o pesquisador, agentes econômicos tendem a considerar o fluxo financeiro no presente mais importante do que as perspectivas futuras proporcionadas pela proteção ambiental. Para o professor, somente quando começarem a sentir os efeitos de uma pior qualidade do ar e do surgimento de doenças, perceberão que altos fluxos financeiros não são suficientes para garantir uma saúde digna.

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Cuiabá (MT) 20 09 2020– A Terra Indígena do Xingu, no nordeste de Mato Grosso, é o território indígena do Brasil que mais tem sofrido com as queimadas e incêndios florestais em 2020. Os focos subiram de 432 para 1.102, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Takumã Kuikuro/Amazonia Real/Divulgação

Outro lado do problema é o fato de instituições financeiras continuarem investindo em empresas que praticam crimes ambientais. Embora três dos maiores bancos privados do país (Bradesco, Itaú e Santander) tenham anunciado um plano de desenvolvimento sustentável na Amazônia, a conta não fecha.

Um levantamento da Forests and Finance (F&F), conjunto de ONGs que investigam financiamento e destruição de florestas, revela que mais de R$235 bilhões foram destinados à pecuária em áreas onde boi substitui mata nativa. O montante foi investido entre 2016 e 2020, segundo reportagem de O Eco.

Deste modo, Banco do Brasil, Bradesco, Itaú, Santander, etc. ainda estão próximos de queimadas. A investigação também mostra que, desde o Acordo de Paris, esse tipo de financiamento aumentou 40%.

Um exemplo gritante da ilegalidade é a “triangulação de gado”. A Repórter Brasil mostrou que o serviço de transporte da JBS, Uboi, foi usado no Mato Grosso para transferir gado de fazenda multada por desmatamento ilegal para outra “ficha-limpa”. Essa carne ia para os frigoríficos da mesma empresa.

Desejo e realidade

Há uma mudança de paradigma e a pressão que se vê sobre o governo é inédita. Não bastasse o argumento científico, mercado se preocupa com a rejeição de produtos brasileiros e o rompimento de acordos comerciais. Contudo, não parece ser suficiente para que se transforme o modelo de crescimento econômico brasileiro.

Na opinião de Salomão Neves, as pressões da comunidade e da conjuntura internacional influenciam, mas não são determinantes.

Segundo o economista, a agenda anti-ambiental continuará seduzindo por oferecer geração de empregos e lucros, estes concentrados em poucas mãos, minimizando a perda significativa da qualidade de vida, em decorrência da poluição de ar e rios e menor disponibilidade de minerais.

A realidade no Brasil hoje inclui diversos incentivos ao roubo de terras públicas para transformação de áreas naturais em pastagens e monoculturas, cortes sucessivos de recursos para os órgãos de fiscalização de crimes ambientais, ridicularização e negação da tragédia, como o deboche público sobre o fogo no Pantanal.

Para Fernando Michelotti, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), há uma certa desconfiança com as iniciativas, apesar do país estar num quadro mais grave.

“É claro que, frente a um governo que adota uma postura extremamente agressiva, nega problema ambiental, nega direito dos povos e comunidades do campo, quer alterar legislação para desregular proteção, qualquer iniciativa para barrar isso é bem vinda”, diz o pesquisador, um dos coordenadores do Latierra, laboratório de pesquisa sobre territorialidades e resistência na Amazônia.

A limitação das propostas é não superar problemas mais antigos e enraizados da questão de terras no Brasil.

“O caminho é apostar no protagonismo de um projeto regional baseado na perspectiva dos movimentos sociais, da reforma agrária, de Terras Indígenas e quilombolas”, afirma Michelotti.

Enquanto isso, Salles segue firme no cargo e o líder do Conselho Nacional da Amazônia e vice-presidente, Hamilton Mourão, defende a atuação do governo, ressaltando que o Exército apenas apoia, porque “faltam pernas” para esses órgãos cumprirem suas obrigações. Assim, indica que não pretende substituí-los, ao passo que nega a destruição do bioma e culpa a imprensa pelo que chama de cobertura “surreal” dos incêndios, como disse num seminário sobre o futuro econômico do brasil.

Por mais que o poder econômico pressione por outra postura, o governo brasileiro segue encorajando criminosos e defende que a abertura de terras indígenas para o agronegócio e a mineração vai trazer benefícios. É o cumprimento das promessas de campanha.

Na atual conjuntura, desemprego, pobreza e desigualdade têm sido fatores fundamentais para que a agenda anti-ambiental ganhe força e poder político como alternativa para incentivar produção, emprego e renda no país.

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Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, e o presidente Jair Bolsonaro durante gravação do discurso para a 75ª Assembleia das Nações Unidas. Foto: Marcos Corrêa/PR

Desde o início do mandato, está claro que a tarefa de governar é secundária e que o objetivo é corroer as estruturas do Estado democrático, como afirma no seu próximo livro o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), João Cezar de Castro Rocha.

Nem a ciência, nem a razão crítica, nem mesmo o mercado têm sido suficientes para conduzir as escolhas do presidente. Arraigado à versão ideológica — e não menos mentirosa — do país que governa, discursou na abertura da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) no último dia 22, por meio de vídeo gravado previamente, tendo em vista o distanciamento social.

Sem qualquer constrangimento, fez o que lhe é de costume: reproduziu um mix de desinformação e negacionismo, mobilizando a militância e construindo sua visão oficial de mundo, tal qual regimes arbitrários.

Se o país vai muito bem na gestão da pandemia e do meio ambiente, é comprometido com a ordem democrática, a liberdade dos povos, os direitos humanos, a busca da paz e da cooperação internacional, por que mudar? Se time que está ganhando não se mexe, para que pensar em outros modelos?

Leia outras edições do Observatório aqui. Imagem em destaque: Queimada em área próxima de Porto Velho. Bruno Kelly/Amazônia Real/Divulgação

 

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