A Amazônia no diário de Roger Casement: de La Chorrera a Iquitos

Gravação de "Segredos do Putumayo", de Aurélio Michiles, sobre a passagem de Roger Casement pela Amazônia. Divulgação/Amazônia Latitude

[RESUMO] Na segunda parte do artigo, o autor segue a leitura das seções do diário de Roger Casement, repletas de detalhes e do tom de denúncia contra a exploração dos povos locais para o trabalho nos seringais. As fotos que ilustram esta seção são do filme “Segredos do Putumayo”, de Aurélio Michiles, que está em produção. Clique aqui para ler a primeira parte do artigo.

Na segunda parte do Diário, La Chorrera, Casement relata as possíveis armadilhas que poderiam tramar contra ele e aos colaboradores da Comissão. Entrevista trabalhadores barbadianos, em cujos relatos não viu sinceridade. Entre os entrevistados, Dyall, no ver de Casement, homem bruto, “mas foi empregado por brutos ainda maiores”, ouviu que “assassinou cinco índios com as próprias mãos, dois a tiros, e bateu em dois até matá-los “esmagando seus testículos” com um pedaço de pau por ordem e com a ajuda de Normand, o último, açoitou até morrer, achei prudente que apresentasse sua evidência completa diante da comissão e do senhor Tizón”.

Foi-lhe relatado que “Um dos castigos descritos por Dyall, aplicados aos índios que não conseguiam trazer a borracha exigida por Normand, era levantá-los bem alto por uma corrente amarrada ao pescoço e deixá-los cair subitamente, de modo que perdiam os sentidos e tinham de ser erguidos, puxando-lhes os braços em várias direções. Ele fez uma demonstração em nossa frente”. Reprova o sistema de coleta de borracha que, segundo registra no Diário, “debaixo do terror de açoites e outros castigos ilegais deve cessar e cessar de imediato”, recebendo a promessa de que “os culpados seriam demitidos e os açoites como castigo na colheita da borracha, imediatamente abolidos, onde quer que ainda fossem praticados”.

Em Occidente, a terceira parte do Diário, Casement observa o processo de encargo da produção de borracha dado aos indígenas. Segundo narra, a cada três meses, os 530 índios inscritos deveriam produzir cerca de 30 quilos de borracha, sob pena de castigo, assassinato ou morte súbita caso não alcançassem o esperado. “Se estiver correta, o homem escapa de volta ao seu lar na floresta para começar nova coleta quase que imediatamente. Se a carga não atingir o peso, ele é açoitado ou colocado no cepo. Esse, em termos mais suaves, é o sistema”. “Os índios pais de família são trazidos, sob a guarda de patifes armados, para receberem açoites nos corpos nus diante dos olhos aterrorizados de suas mulheres e filhos”.

Diante da realidade de que tem notícia e cujos indícios denunciam, desabafa: “Juro por Deus que enforcaria todo esse bando de miseráveis com as minhas próprias mãos, com o maior prazer, se tivesse poder para tal”.

Ainda nesta parte do Diário, Casement assiste de perto às condições de empregados indígenas no trabalho do seringal. Confirmou a suspeita de que os números que lhe foram dados sobre a quantidade de trabalhadores, 530 índios, não passavam de uma farsa: “não havia trabalhadores; não havia indústria em Putumayo. Havia apenas floresta selvagem habitada por índios selvagens, que eram caçados como animais e forçados a trazer borracha, por quaisquer meios, e açoitados ou mortos se não o fizessem […] Os brancos da estação não davam a mínima para onde estavam as árvores; sua única preocupação era onde estavam os índios, isto é, vigiar para que não escapassem”.

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Gravação de “Segredos do Putumayo”, de Aurélio Michiles. Em cena, Dori Carvalho interpreta Roger Casement. Divulgação/Amazônia Latitude

Em uma averiguação pela floresta junto com a Comissão, avistou pouquíssimas seringueiras, um roçado no meio da mata e índios em situação de miséria, entre eles um homem que apresentava marcas de açoites e chibatadas nas coxas. A realidade presenciada por Casement levou-o a crer que a realidade de Putumayo era pior que a do Congo: “o que se vê aqui é uma escravidão sem lei, onde os feitores são facínoras covardes por natureza, a escória das prisões, e não existe nenhuma autoridade dentro dos 1.930 quilômetros, e nenhum meio de punir os crimes mais vis”.

Último Retiro é a quarta parte do Diário. Casement se depara com índios em condições aparentemente melhores que os de “Occidente”: “são mais robustos, têm os membros mais vigorosos de uma forma geral e rostos mais alegres. Há muitos deles nos arredores”. Teve acesso a um cepo, semelhante aos de outros retiros. Nesses cepos, com dezenove buracos, são colocadas as pernas onde são presos os indicados ao castigo. No dia 9 de outubro visita a Aldeia de Índios onde encontra um lugar preparado para a chegada da comitiva: “À medida que marchávamos pela trilha, víamos provas constantes do trabalho feito ontem em nosso benefício: lugares acidentados que se tornaram planos e, retorqui, se tornaram planos e, retorqui, quando nos apercebemos do fato, “às custas temo eu, de suas superfícies lisas terem se tornado ásperas”, batendo de leve em meus quadris”.

Assim como viu em “Occidente”, havia índios marcados pelos castigos impostos, marcas profundas nas nádegas e nas costas. Ao chegar à Aldeia dos Meretas, descobriu que o trabalho nas estradas por onde a comitiva percorreu no dia anterior havia sido feito por mulheres, as quais haviam passado a noite na floresta depois do dia de trabalho. Presenciou índios famintos, mal alimentados, em condições miseráveis, que trabalham sem quaisquer indícios de remuneração e chega à conclusão de que “Essa Companhia não tem meios de pagar a ninguém com o conteúdo de sua provedura ou armazém, mas, mesmo assim, impõe diariamente tarefas onerosas (para muito além da extração da borracha) às pessoas ao seu redor”.

As observações que fez nos dias em que esteve com a Comissão de averiguação possibilitaram a Casement concluir que

“E eles executam as tarefas, esses seres pacientes e humildes, com sorrisos e cumprimentos e falas gentis a seus opressores: desde a construção destas casas enormes (esta mesmo tem, sem dúvida, 41 metros de comprimento e é tão forte quanto um velho navio de três andares), até a limpeza de grandes áreas de floresta, plantações de yuca, de outros grãos para fazer farinha, cana-de-açúcar etc., e da construção de estradas e pontes, enfrentando grandes dificuldades para chegarem mais facilmente até elas. Eles ainda fornecem “esposas”, mantimentos, caça, frequentemente junto com a própria comida, recém-feita para suprir suas necessidades urgentes. É uma mão de obra disponível para desempenhar toda forma concebível de demanda. Tudo isso os índios fornecem sem receber qualquer remuneração, nesse mundo de coisas para além da borracha, que é a pedra fundamental do empreendimento.”

Na quinta parte, Entre Ríos, Casement continua adensando as provas de que o regime de trabalho em Putumayo era de plena escravidão dos indígenas e toda a riqueza de que se fala havia sido acumulado pelo terror, pelo massacre, pela morte, através dos quais os senhores da borracha estabeleceram suas bases de riqueza e exploração: “índios intimidados e completamente subjugados, dizimados, irremediavelmente obedientes, sem refúgio nem possibilidade de recuar e sem nenhuma recompensa. […] O sistema todo, do princípio ao fim, não passa de uma escravidão sem lei”.

A estação de Entre Ríos, como observa Casement, “fica no interior de uma enorme clareira de aproximadamente 900 mil metros quadrados. É rodeada pela floresta, um arco silencioso de árvores escuras e, em seu interior, há esta clareira de mais ou menos um quilômetro quadrado de diâmetro. […] A casa da estação é uma bela edificação, bem no meio dessa grande clareira, mas não tão grande quanto a de Último Retiro. Como as demais, foi construída pelos índios”.

Entretanto, apesar do conforto da casa e do lugar, as perversões vistas em outros locais são recorrentes, o que leva Casement a entender que o problema é endêmico na região de Putumayo, onde os senhores se valem do trabalho forçado do indígena. Apesar do sofrimento dos indígenas, há momentos em que eles buscam se divertir por meio de danças: “Muitas das mulheres estavam completamente nuas e lindamente pintadas, de forma ainda melhor do que em Occidente; as meninas também, e até mesmo as crianças. Cerca de metade dos homens e rapazes estavam nus, isto é, só com seus fonos, e também estavam pintados de preto, com desenhos diferentes, ou pintados de verde-claro ou vermelho”.

Para Casement,

“Embora dançassem alegremente e simulassem ataques na entrada, nota-se uma melancolia que toma conta da festa e que nunca abandona esses seres de Putumayo. Seja o que for, pode ser vista e sentida. Esses índios alegres são, na verdade, selvagens tristes. Há uma ausência de felicidade, mesmo de realidade em seu júbilo, e não podemos deixar de sentir que a dança foi arranjada. O fato é que eles vêm porque são convocados, assim como fariam se a ordem fosse ir até Puerto Peruano para transportar cargas.

Toda a alegria nativa morreu nestes bosques quando esses mestiços se impuseram sobre esse povo primitivo e, no lugar de incursões ocasionais e lutas entre as tribos, deram-lhes em troca a bala, o chicote, o cepo, as correntes e a morte pela fome, a morte por golpes, a morte por vinte formas diferentes de assassinato organizado. Isso pode ser percebido nos seus olhos.

Casement tentava o máximo que podia estabelecer o contato mais próximo possível com os indígenas. E isso ele registra inúmeras vezes:

“Estive com muitos índios assistindo-me escrever hoje à tarde. Eles adentraram a minha sala, assim como faziam os homens do Congo, sorrindo e conversando comigo. Eles até mesmo trazem seus biscoitos, ou algo do gênero que lhes é dado, para comer em paz. Dou-lhes montes de cigarros, dos quais gostam muito, além de tudo o que pude ceder-lhes das minhas próprias latas de alimento. Pobres pessoas famintas, açoitadas e assassinadas; como sinto pena delas!”

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O diretor Aurélio Michiles e o pesquisador Angus Mitchel durante as filmagens de “Segredos do Putumayo”. Divulgação/Amazônia Latitude

Matanzas é a sexta parte do Diário. Casement descreve o lugar como “A casa é do tipo comum de construção grande em formato de barco, mas muito mal conservada. […] O espaço debaixo da casa é aberto, sem muros, árvores ou paliçadas. Simplesmente um pavimento único erguido a três ou quatro metros do solo, com uma escada de mão para subir e descer. Fica no topo de uma colina, rodeada de outras um pouco mais elevadas, desmatadas em parte, de modo descuidado”.

A estada de Casement no lugar foi rápida, devido a não ter se dado bem com Normand: “tinha condição de suportar Normand nem mesmo por uma hora mais; sentia ânsias só de olhar para ele”. Nas conversas que teve com Normand certificou-se de que os trabalhadores não recebiam nada pelo que produziam.

E chega a sétima parte, Retorno a Entre Ríos. Em 21 de outubro, Casement deixa Matanzas e volta para Entre Ríos. No retorno, encontra uma mulher indígena doente e ajuda-a no retorno para sua casa, na Maloca dos Mainanes, onde permanece uma noite. No retorno da Maloca, enfrenta dificuldades devido as chuvas e problema e um dos olhos. Apesar disso, busca não desviar o foco de buscar acercar-se do maior número possível de informações sobre o trabalhos forçados a que eram submetidos os indígenas em Putumayo e tem a informação de que “os índios não são apenas assassinados, açoitados, acorrentados como animais selvagens, caçados por toda parte e têm as suas habitações queimadas; suas mulheres são violentadas, seus filhos arrastados para a escravidão e para uma vida de indignação, e são, além do mais, descaradamente enganados”. Para Casement, a região de Putumayo sofria de uma verdadeira tirania sob as ordens de Arana, o que despertava em Casement “mais do que compaixão por eles; adoraria armá-los, treiná-los e instruí-los a se defenderem contra esses bandidos”.

Na visão de Casement, a questão do canibalismo atribuída aos indígenas devia-se à maneira como eles foram tratados pelos brancos, com crueldade; “Quando os índios mataram esses chamados homens brancos, eles simplesmente os assassinaram no ato. Pensemos sobre o que essa morte significou para eles: o resgate da esposa e da criança, de tudo o que lhes era mais caro. […] Dolorosamente ofendidos, muito além de toda tolerância humana, procuravam libertar-se — a si mesmos, suas esposas e filhos caçados — da servidão mais atroz e do sofrimento mais cruel”.

Em Êxodo de La Chorrera, a oitava parte do Diário, Casement relata os tipos de subornos a que eram submetidos os barbadianos pelos empregadores da Companhia Peruana em Putumayo. Eram-lhe impostas dívidas com valores além do que realmente deviam, o que lhes impossibilitava de qualquer independência dos trabalhos forçados a que eram submetidos, haja vista o compromisso que tinham que honrar com os empregadores. “A maior parte dessa “dívida” é, na verdade, por artigos com preços abusivos, ou melhor, excessivamente superfaturados e, segundo os contratos assinados por esses homens, eles teriam direito a muitos desses produtos de graça (como medicamentos, alimentos etc.)”.

Para ter certeza de que não estaria sendo leviano, com relação às dívidas impostas aos trabalhadores, observa: “Consegui hoje cópias de algumas das declarações feitas à comissão pelos chefes da estação que mostram os preços cobrados pelos diversos artigos que trocam ou recebem de adiantamento pela borracha”.

A escravidão a que eram submetidos os indígenas fazia-se como um círculo vicioso, atrelava-se à dependência financeira principalmente entre o índio e o empregador: “[…] o índio não tem parte no contrato. É obrigado pela força brutal e totalmente descontrolada – depois de caçado, capturado, flagelado, acorrentado, preso por longos períodos e de sofrer de inanição – a concordar em “trabalhar” para a companhia e, em seguida, quando é liberado desse processo de domesticação. […] ele é novamente caçado, perseguido, vigiado, açoitado, tem a comida roubada e suas mulheres violadas, até que traga de duzentas ou até trezentas vezes o valor das mercadorias que é forçado a aceitar”.

Procuravam libertar-se — a si mesmos, suas esposas e filhos caçados — da servidão mais atroz e do sofrimento mais cruel.

Em 5 de novembro, Casement registra sobre uma conversa que teve com um jovem chamado Parr, responsável pelas contas do armazém. O jovem relatou sobre o sistema de trabalho a que eram submetidos os índios e os roubos indiscriminados também. “Não são apenas os índios miseráveis que são roubados, mas também a câmara de Londres e os acionistas. O sistema de compras em Iquitos é um roubo deslavado. […] Portanto, devemos expor toda essa situação para o mundo, para o mundo inteiro, e é melhor fazer isso o quanto antes”.

A volta a Iquitos, o penúltimo capítulo percorre o caminho de Casement de La Chorrera para Iquitos. Em retorno, presencia o eclipse total da lua cheia, “um dos mais belos que já vi”, considera ele. Na companhia de barbadianos, Casement negocia com os empregadores o pagamento justo de cada um e recebe como promessa o pagamento. Em 19 de novembro, chegam à fronteira do Brasil. Durante a passagem pelo rio, avistavam-se casas de seringueiros, entre árvores, às margens do rio. Casement observa que no Putumayo peruano a ausência de vidas e portanto de casas às margens do rio é um fato, o que não acontece no Putumayo brasileiro, em cujas margens veem-se casas e presença de pessoas o tempo todo.

No dia 20 de novembro, a embarcação entra no Amazonas, em Amaturá, lugar que Casement descreve com “apenas uma rua com cerca de vinte cabanas, bem construídas, de madeira e telhado de folhas de palmeira”. Enquanto corria o navio, Casement imagina um futuro promissor para a Amazônia, pois, segundo ele, “A região fornece praticamente de graça todas as coisas essenciais para a existência humana, e isso em um clima que, em latitude equatorial, é superior a qualquer outro no mundo”. “Esse rio poderoso, muito além de suas margens neste grande continente, espera a mão da civilização”. Segundo Casement, a maldição da Amazônia era a sua latinização.

No dia 23 de novembro, segue para o Marañon com destino a Iquitos. No percurso registra indústrias da borracha. Para Casement, “a indústria da borracha, mesmo quando não acompanhada pelo crime e pela opressão dos índios na Amazônia – no Brasil ou aqui no Peru – é uma das atividades mais perniciosas a que todo um povo poderia se dedicar”. No ver de Casement, “Todos os homens correm para conseguir borracha – por bem ou por mal – e os que podem tentam fazê-lo por meio do trabalho de outrem. O pequeno comerciante é o degrau seguinte na escala comercial”.

No dia 24 de novembro, registra a aproximação a Iquitos. Preocupado com a saúde, observa: “Nesse momento, sinto-me feliz de chegar a Iquitos, pois estou muito pior e temo que seja uma crise de gastrite. Tive uma crise aguda de gastrite no Pará e não quero outra daquelas aqui, com uma longa jornada pela frente até ter acesso a qualquer coisa que lembre conforto ou cuidado”.

Ao saber da notícia de que a Peruvian Amazon Company havia se associado à Cia. Gomera do Marañón para o trabalho com a borracha colhida principalmente no Putumayo, observa: “Quanto ao futuro de todos esses interesses, só pode haver um: fracasso, fracasso absoluto” e destaca também: “borracha e os índios − a propriedade da Companhia está muito bem − foram destruídos, irremediavelmente arruinados, em menos de dez anos por um sindicato que recebe apoio total das mais altas autoridades do Peru […] que dizer do cauchero solitário, que nunca foi alimentado com leite, mas anda atrás do leite da Hevea brasiliensis ou da Castilloa de machete na mão, e ódio mortal no coração?”.

Na última parte, Iquitos, em 25 de novembro, chegando à cidade, Casement registra: “Já fiz as malas e tudo está pronto para o desembarque e hoje travo meu último embate a respeito da questão do Putumayo. Encontrar-me-ei com o prefeito às 2h30 da tarde e então lhe será apresentada uma exposição franca, ainda que confidencial, da situação. Deixarei claro que o Peru tem de lidar com esse mal hediondo, ou arcar com as consequências da perda de prestígio e reputação, para não dizer nada da interrupção do fluxo de todos os suprimentos financeiros. Agora, devo deixar meu diário de lado e ir ao castelo de proa conversar com o capitão”.

A preocupação de Casement, desde que teve contato com os índios de Putumayo e ficou sabendo das atrocidades que eram praticadas contra eles, era fazer chegar as informações ao governo britânico. Por isso empenhou-se o máximo que pode para que a Peruvian e seus servidores fossem levados às autoridades competentes para responsabilização por seus crimes – que não eram poucos, conforme o próprio Casement registra no seu diário. A primeira autoridade política com que teve contato após retornar de Putumayo foi o prefeito de Iquitos, a quem fez um relatório sobre o que viu e ouviu sobre as condições de trabalho barbadianos e dos indígenas. Do prefeito, Casement ouviu o pedido para que não tornasse público os registros de Putumayo: “Seu principal temor era que ocorresse publicidade, que o governo de Sua Majestade publicasse os fatos, meu relatório, as réplicas do Parlamento etc. e que expusesse o Peru ao opróbrio internacional”.

Apesar do pedido do prefeito, Casement não desiste do seu objetivo, o de levar às autoridades britânicas o seu relatório:

“Eu disse que não, não poderia, que eu era obrigado a fazer um relatório completo, que as instruções recebidas eram relatar o estado em que encontrei os barbadianos e a natureza das relações deles com a companhia, e que todas as provas que colocaram diante de mim teriam de ser colocadas diante da secretaria de Estado; mas eu disse que, da minha parte, poderia assegurar-lhe que não haveria publicidade, que, se eu tivesse influência ou o humilde poder de sugestão, pediria que as acusações envolvendo o bom nome do Peru em hipótese alguma se tornassem públicas.

Mas devo retratar fielmente todos os fatos expostos a mim por súditos britânicos, e, neste ponto em que meu relatório deverá forçosamente lidar com acusações bastante incriminadoras contra cidadãos peruanos, comprometendo muitos indivíduos dessa nacionalidade, eu o tornarei confidencial e separado, mediante permissão do Ministério das Relações Exteriores, e tenho real esperança e todas as razões para supor que o governo de Sua Majestade lidará com ele de forma inteiramente confidencial”.

Casement entendia perfeitamente a importância do seu relatório e a repercussão que ele teria na comunidade internacional quando se tornasse público. Entretanto, embora tivesse ciência das consequências, sabia também que os crimes cometidos no Peru por Julio César Arana e seus subordinados não poderiam ficar sem punição. Por isso,

“Acrescentei uma última palavra a favor da Companhia e contra Julio Arana. Eu disse que, admitindo que a Companhia fosse culpada, e eu, pelo menos, pensava sinceramente que era, é preciso ter duas coisas em mente. Primeiro, que seria melhor para os índios e para a região estar ali presente uma companhia forte, trilhando “outros caminhos”, de maneira humana e sensata, do que abandonar o distrito ou deixá-lo ser dominado por pequenos comerciantes e portos de “comércio” isolados.

Ele concordou, e então eu disse que havia um corolário disso, a saber: que o senhor Julio Arana não tivesse permissão para ter supremacia sobre a região. Se a Companhia havia errado, era ele a base do erro, pois conhecia os fatos, e em todas as declarações da Companhia ao governo de Sua Majestade, e em todas as crenças que a sustentavam, ela agira com base no que Arana lhe havia aconselhado e incentivado, e que, portanto, ele tinha muito mais culpa do que os outros membros do conselho. Assim, para salvar a Companhia, eu acreditava, por bem, ser necessário que se limitasse a influência suprema que ele havia exercido pessoalmente em Putumayo. Espero que o prefeito tenha entendido o que eu queria dizer.”

As autoridades do consulado britânico no Brasil temiam os riscos do que Casement sabia e escrevia em relação a Putumayo. Isso ficou claro em telegrama que recebeu datado do dia 22 de outubro e ao qual faz referência no seu diário no dia 29 de novembro. “Recebi um telegrama do Ministério das Relações Exteriores por mensagem cifrada, enviado pelo correio do Pará, datado de 22 de outubro. É uma advertência de que tomar cuidado com a forma como escrevo minhas impressões sobre Putumayo para os correspondentes na Inglaterra, já que estou comissionado e devo responder ao secretário de Estado”.

Entretanto, nem mesmo a advertência o fez desistir do plano de dar publicidade ao seu relatório, pois sabia que omitir tudo que havia visto e ouvido seria permitir a continuidade dos absurdos longe dos olhos das autoridades, que pareciam fingir desconhecer os fatos: “Essas pessoas (as autoridades peruanas) não farão nada, a menos que sejam forçadas. A publicidade é o que temem, o terror que os assombra. Seria bom se alguma parte dos documentos de Hardenburg fosse publicada na América”. E, ratifica, em 5 de dezembro no seu diário, com consciência: “Estou convencido de que a única chance de melhorar o estado das coisas em Putumayo é fazer com que o governo peruano perceba que, se não fizer isso, nós contaremos a verdade ao mundo”.

No dia 6 de dezembro de 1910, Casement despede-se de Iquitos e registra:

“Esta é a última visão que devo ter da Amazônia peruana – dos índios de Iquitos e de seus simpáticos rostos alegres –, do perfil das casas em frente à vasta, audaciosa extensão do Marañón ao descer de seu trono nos Andes, o mais poderoso rio sobre a Terra a banhar as mais terríveis costas. Quem nos dera se uma boa raça em vez de um povo mau e corrupto tivesse vindo da Europa com a mensagem de mudança para esses povos afáveis há tanto tempo escondidos.
[…]
As únicas pessoas por quem lamento em Iquitos e em outros lugares na Amazônia peruana são os índios e aqueles em quem o tipo indígena prevalece. Uma vez que a casta espanhola adquire supremacia, toda a decência desaparece. O índio ainda preserva algo de sua originalidade e moralidade, de sua docilidade de trato e simplicidade de coração. Meu trabalho na Amazônia acabou. Travei uma dura batalha e, tanto quanto é possível para um homem sozinho vencer, posso dizer que venci, mas o que fica para trás ninguém pode ver. […] Desço velozmente o rio; portanto, adieux à Amazônia peruana.”

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Gravação de “Segredos do Putumayo”, de Aurélio Michiles, que ilustra a passagem de Roger Casement pela Amazônia. Divulgação/Amazônia Latitude

O legado

A presença de Roger Casement no Brasil, na Amazônia principalmente, passaria despercebida se não fosse o trabalho, mais como humanista do que como cônsul britânico e irlandês. Seu relatório — Blue Book — com as denúncias sobre o trabalho forçado a que eram submetidos os indígenas da região do Putumayo pela Peruvian Amazon Company, empresa financiada por investidores de Londres, fez chegar ao conhecimento internacional uma Amazônia silenciada pelos movimentos modernos de transformação e embelezamento que a borracha, cuja história, para Angus Mitchell, é altamente contraditória.

Em primeiro lugar, pela realização humana e tecnológica no contexto das economias ocidentais. Em segundo, porque foi sinônimo de exploração, morte e destruição. As transformações que chegavam às cidades da região, tanto as brasileiras, no caso de Belém e Manaus, as quais Casement conheceu, quanto as colombianas e peruanas, no caso de Iquitos, enriqueciam os senhores do caucho e dos seringais sob as mais cruéis formas de recrutamento e trabalho.

Passados mais de cem anos da jornada de Casement pela Amazônia e de sua morte, a floresta vista pelo cônsul britânico precisa ser revista em relatório. As atrocidades cometidas contra os povos indígenas já não são mais pela cobiça da borracha – essa arrefeceu quando Casement ainda estava em solo sul-americano – mas por extensões de terras para plantio de soja e arroz, além de exploração de garimpos.

Hoje, os Aranas aliam-se a um discurso de extermínio e desrespeito aos direitos dos indígenas, promovendo insegurança, perseguição e morte, tanto na Amazônia brasileira quanto na Amazônia colombiana e peruana.

Se o trabalho de Casement, como cônsul e humanitário, teve efeitos e afetos ante a comunidade internacional, seu ativismo em defesa das causas dos de baixo, a propósito das ideias de Hobsbawm, levou-o a tornar-se antibritânico, infiel às causas políticas do Império, depois de perceber que havia conivência do governo britânico no processo de escravização, tanto dos indígenas africanos do Congo quanto dos sul-americanos, especialmente aqueles vistos na fronteira do Brasil, Colômbia e Peru.

Esse laço existia por meio da companhia britânica sob a guarda dos burocratas da Peruvian, na qual tinham participação investidores britânicos. A visão anti-imperialista aproximou-o das mobilizações políticas pela independência da Irlanda, seu país de origem, e levou-o aos tribunais sob a acusação de traidor da pátria e sob as mais diversas formas de argumentos, inclusive os que o acusavam de pervertido e homossexual — a partir dos Black Diaries. Todo esse movimento, junto a outros de desorientar seus defensores, culminou em sua morte em 1916, após atuar no Levante da Páscoa na Irlanda.

O “Diário”, adensado por seu trabalho no Relatório, observa Angus Mitchell, constitui uma intervenção crítica a favor dos indígenas da Amazônia, palco de consequências do livre-comércio desenfreado. Além disso, contribuiu para o acercamento de movimentos modernos, tais como o ativismo ambiental, o comércio justo, o consumo ético, a transparência governamental e a responsabilidade social corporativa. Enfim, lembra Mitchell, o “Diário da Amazônia de Roger Casement” é uma importante fonte primária para a história da Amazônia em um momento decisivo de luta por sua conservação.

Joaquim Onésimo Ferreira Barbosa é Doutor e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação Sociedade – PPGSCA e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
Esta é a segunda parte do artigo. Leia a primeira aqui. As imagens foram cedidas pelo cineasta Aurélio Michiles, que dirige “Segredos do Putumayo”, em fase de produção. Imagem em destaque: Indígenas no Putumayo. Divulgação/Amazônia Latitude.
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