Clima viral: o lugar da humanidade no planeta

Clima viral
crédito - Fabricio vinhas

[RESUMO] Um dos principais nomes da sociologia ambiental da América Latina, Enrique Leff discute capitalismo, pandemia, a crise ambiental e o que cabe à humanidade no abrigo de todos esses fenômenos e personagens — a Terra.

Um Capitalismo Promíscuo Viral

A meio século do Dia da Terra, momento histórico que iniciou uma reflexão para questionar a normalidade da vida limitada pelo crescimento econômico, a humanidade amanheceu infectada por um novo vírus. A crise ambiental confrontou a normalidade do regime econômico, que induzia a maior anomalia na ordem da vida: a precipitação da morte térmica do planeta.

Os princípios da sustentabilidade foram cooptados pela economia, pretendendo resolver a emergência climática por meio de uma nomenclatura que adquire tonalidades catastróficas, matizes apocalípticas e sinais de letalidade, mas que não chega a nomear a complexidade da crise civilizatória que a humanidade atravessa: uma crise sistêmica; econômica e ecológica; ambiental e epidemiológica; ontológica e existencial.

A pandemia da Covid-19 veio para agravar a reflexão aberta pela crise ambiental, no sentido de orientar uma transformação civilizatória até a sustentabilidade da vida, regida por três princípios fundamentais:

1) Uma ontologia da diversidade, que afirma a essência da vida no seu devir, que se modifica, desde a physis, a complexificação da evolução criativa da vida. 2) Uma política da diferença, da manifestação e resolução pacífica das diferentes visões, interesses e posicionamentos na construção de um mundo “feito de muitos mundos”. 3) Uma ética da alteridade, na convivência de diferentes mundos de vida, irredutíveis, em uma unidade, uma identidade e uma racionalidade que governe os diversos modos e direitos de ser no mundo.

Hoje, a pandemia chegou para conjugar a crise ambiental e a crise epidemiológica com a crise do capitalismo, da racionalidade tecnoeconômica, que governa o mundo e inverte o metabolismo da vida ao intervir na biosfera através de processos extrativistas, que mostram a insaciabilidade do capital para se alimentar de uma natureza limitada no planeta.

O extrativismo é um eixo fundamental de reflexão crítica na ecologia política da América Latina nos últimos anos, dos seus efeitos na crise existencial dos povos e das pessoas, dos sentidos vitais e dos direitos do ser no mundo que mobilizam as ações humanas nos processos de apropriação social da natureza.

Hoje, a pandemia vem para mostrar um estágio exacerbado do capital extrativista. Certamente, houve momentos de transbordamento de vírus que se hospedam nas células desde o despertar da vida ao longo da história humana. No entanto, uma reflexão crítica nos leva a questionar a naturalidade do acontecimento Covid-19. O coronavírus atingiu todos os cantos do planeta, como indicação da agência de um capitalismo promíscuo viral no processo de globalização.

O capital, que vinha se expandindo, sugando a biosfera, se apropriando de todos os territórios, tornou-se promíscuo ao penetrar nas células da vida, recombinando e mutando seus genes sem qualquer contenção ética, como assim o fez na proibição do incesto no decorrer da história das relações humanas. A globalização alterou o metabolismo da vida, removendo e promovendo mutações dos vírus que habitam em seus organismos. O capital disseminou o vírus patógeno, transportando-o através do comércio e do turismo, como agências da valorização do capital. O extrativismo promíscuo está “liberando” esses vírus de seu lugar na biosfera, transformando-os em agentes mortais da vida humana.

A Excepcionalidade como Normalidade

Quando nos aproximamos de meio milhão de vítimas da Covid-19, os governos se preparam para voltar a uma “nova normalidade”. Mas qual seria essa nova normalidade? Quantas vidas humanas serão o custo “normal” para restabelecer a vida econômica, que deixou de ser normal há tempos e invariavelmente vai reiterar novos ciclos de anormalidade? A pandemia questiona a anormalidade da economia e abre o questionamento sobre o valor e o sentido da vida.

A emergência climática e o acontecimento da pandemia da Covid-19 desnudam o conflito entre a preservação da vida e o domínio do capital, isto é, do regime tecnoeconômico, que objetivou a natureza e pôs a vida à disposição do capital, para ser apropriada e explorada até a extinção da biodiversidade e da vida humana.

O capital é o regime soberano que governa o mundo, degradando a vida no planeta, que tem sido a grande esquecida na História pelo domínio da Razão. Pela primeira vez, a humanidade enfrenta o imperativo de assumir sua condição humana, em sua vontade de dominar a natureza, o desafio titânico de desconstruir sua Insustentável Razão para reencontrar-se no Mundo, para reinventar seus modos de habitar a Terra dentro das condições da Vida.

A pandemia da Covid-19 irrompeu em um mundo que já estava no ponto zero, iniciando a contagem regressiva para estabilizar o risco climático no planeta. Os Acordos de Paris já advertiam que a humanidade teria apenas uma década para recuperar e equilibrar a normalidade da vida. O coronavírus denunciou a anormalidade deste raciocínio. A pandemia não é um surto normal da natureza, mas um evento provocado pela intervenção do capital sobre a vida. Hoje, os governos começam a implementar seus planos para a volta a uma “nova normalidade”.

Einstein, no entanto, já avisava que “não podemos resolver os problemas com a mesma forma de pensar quando os criamos”. A excepcionalidade da emergência epidemiológica não pode ser desassociada da crise socioambiental que se expande sobre o planeta, degradando as bases de sustentabilidade da vida, questionando os modos de compreensão e habitabilidade da biosfera diante das condições da vida.

O vírus desafiou a responsabilidade da humanidade frente aos destinos da vida: diante das condições termodinâmicas e ecológicas da biosfera das quais depende nossa própria vida; diante dos impulsos inconscientes e da vontade de poder que predispõe as ações humanas até o domínio da natureza.

A volta à normalidade dentro de um regime democrático põe em jogo a livre determinação das decisões da vida autônoma (comunitária, pessoal), diante da autoridade que dita as políticas e medidas do comportamento social para resguardar nossas vidas. As pessoas geram espaços autônomos, acionando, sozinhas, a desobediência civil, colocando em jogo suas decisões pessoais quando o Estado não garante a boa convivência e a segurança dos cidadãos.

O estado de emergência ativa os mecanismos do micropoder frente ao poder soberano da autoridade, que ajusta os códigos bioéticos para dar vida ou deixar morrer as pessoas, por meio de estratégias que valorizam a vida, em função da normalidade econômica dos serviços de saúde, que deveriam garantir o direito à vida de todos. Hoje, a bioética para atender a pandemia – a estratégia de achatamento da curva epidemiológica – mede o número de pacientes que podem ser atendidos por uma política epidemiológica sob o princípio da rentabilidade do capital.

Por outro lado, a intelectualidade política mede a normalidade das mortes em função do seu impacto na avaliação e na possível revogação do mandato do Presidente. Enquanto irrompe o clamor pelo direito universal à saúde e à vida, a crua realidade evidencia que esta não é facultativa e uma possibilidade equitativa para toda a população, para todas as pessoas que arriscam a vida nas condições de sobrevivência das desigualdades da normalidade econômica. Cumprir a ordem do confinamento em casa, manter o “distanciamento recomendado”, levar uma vida saudável até a chegada da vacina para nos imunizar contra o vírus é privilégio de alguns, e não direito de todos.

O confinamento exaltou os ânimos das pessoas, antes de ativar os sensores da prudência e do cuidado com a vida. A violência da metafísica, destacada por Jacques Derrida, foi ativada nos excessos policiais que liberaram a virulência da vontade de extermínio do outro nas células do poder político e na vida social: nas comunidades e municípios. A crise sistêmica converteu-se em uma sinergia negativa, um ciclo perverso, onde a catástrofe socioambiental viraliza a violência coletiva.

Perturbação da Razão/Dessensibilização do Corpo/Esperança de Vida

A crise ambiental veio a expor a desconstrução da racionalidade, que normalizou as condições desiguais de existência da vida. O ambientalismo crítico está passando da crítica à razão insustentável, colocando em jogo a sensibilidade do corpo. Desde Nietzsche, Merleau-Ponty e Lévinas, Freud e Lacan, a bioética ativou o saber do corpo na compreensão da vida, desde as pulsões do inconsciente até os desejos e aspirações de emancipação da vida. No corpo, fervilham pulsões, impulsos, sensações, percepções, emoções, sentimentos e intuições da vida, que não se explicam na Consciência, não se conjugam na Linguagem e não transparecem na Razão.

A crise viral veio para alertar, conter e proteger nossas sensibilidades vitais. Hoje, sabemos que colocamos nossa vida em risco ao darmos as mãos, ao nos abraçarmos e beijarmos. O vírus soou como um alarme diante de nossos modos de curtir a vida. A história epidemiológica registrou a tradução metafórica da regra inconsciente “seja feliz!” em sífilis por sua nomenclatura original: Syphilis sive morbus gallicus. O desejo sexual, inerente à natureza humana, tornou-se um risco para a vida. O vírus do HIV/Aids retornou à cena primária e promoveu a normalidade do uso de dispositivos para tolerar e preservar a vida.

Hoje, a pandemia da Covid-19 estende o uso de filtros que protegem, mas dessensibilizam o contato do corpo com a vida: ali por onde respiramos, cheiramos, olhamos, comemos, amamos.

“A carícia não sabe o que busca”, disse Emmanuel Lévinas, mas a sensibilidade do corpo deixou de estar “à flor da pele”. O princípio ético da Alteridade teria de nos levar a saber con-viver com o Outro, um outro que não posso reduzir ao meu eu, ao meu modo de ser, ao meu modo de pensar.

A ética da convivência humana nos leva a aceitar o outro como Outro. Se antes a convivência sadia nos levou a desviar o olhar no espaço público para evitar o assédio sexual, hoje, a pandemia nos faz olhar através da tela do monitor ou do celular, quando já não podemos encarar o outro por prevenção de contágio, quando a epifania do rosto se converteu no olhar virtual via Facebook. Como amar a vida sem olhar nos olhos do outro, quando esse olhar foi pervertido e contaminado? O amor se dissolve sem o olhar nu do outro, quando a poesia jaz, empapada de sangue, pela insensibilidade diante da vida do outro do Holocausto e do crime organizado.

A pandemia nos confronta com a natureza do desejo humano. Mais adiante da condição existencial do ser humano, do axioma de Aristóteles “todos os homens são mortais” e do “ser para a morte” que Heidegger pôs no centro de sua ontologia existencial, o coronavírus nos coloca diante de um risco real da vida. No entanto, nada garante que o vírus origine uma “consciência de espécie”, um novo modo de compreensão sobre as condições da vida no planeta.

A resiliência da vontade de poder instaurada nos órgãos institucionais, a razão de força maior que governa o mundo, confinou o corpo social na insensibilidade da vida. A pandemia evidenciou a vulnerabilidade e tornou palpável a fragilidade da vida; aproximou a percepção da vida à angústia da morte. O vírus tirou-nos o sonho; mas seu maior perigo é que nos devolva a peste do esquecimento que caiu sobre Macondo e que despertemos sem sinais vitais.

Vivemos em um confinamento temporal de nossos corpos, mas em uma reclusão mental de muito tempo atrás. A tragédia da pandemia atual é o genocídio epistêmico viral do qual a Covid-19 é portadora. Apostamos na intuição do corpo, mas suas capacidades de percepção foram impedidas e a sensibilidade pela vida foi degradada.

Faltam as reviravoltas da linguagem para nos apegarmos à vida, para expressar a dor e a frustração; mas, sobretudo, a vontade de viver e saber das condições da vida. O imperativo de cuidar da vida afastou o contato com a vida; a pequena vogal “a” que designa a angústia inconsciente impõe uma proibição: a-proximar; a-colher; a-braçar; a-cariciar a vida. O vírus “castigou” as letras do xadrez labiríntico da existência humana. A alegria de viver converteu-se na alegria para a vida. Teremos que reinventar as palavras para expressar o conhecimento da vida, o gosto da vida infectada de vírus de morte; para saborear e nos absorvermos na vida; para reabrir os trilhos da vida em direção a um futuro sustentável.

Do obscuro contexto da vida confinada surgem perguntas indefinidas: conseguiremos desconstruir a racionalidade dominante e chegar a outros modos de compreensão da vida, aguçando a inteligência da razão e a sensibilidade do corpo? Poderemos ajustar nossos modos de viver às condições da biosfera, deixando o petróleo abaixo da terra para não contaminar mais a atmosfera, deixando que os vírus voltem a encontrar seu lugar na biosfera, deixando em paz os agentes agressores da vida humana? Aprenderemos a olhar e acariciar a vida de outra maneira? Aprenderemos a pensar e compreender as condições da vida e a viver nas condições da vida? Ou a pós-pandemia será mais um passo além da insustentabilidade, até a insensibilidade da vida?

A única normalidade para o futuro que a pandemia anuncia é o estado de exceção no qual deverá renovar-se a esperança de vida. A transição civilizatória à sustentabilidade não poderá ser a readaptação a uma vida sempre ameaçada, destinada à morte. Antes de nos precipitarmos no abismo da crise ambiental, a catástrofe ecológica e a emergência climática, a vida eleva os olhos para as estrelas, no firmamento de um novo pacto com a natureza, para assinar novos sentidos existenciais afinados com a música do Cosmos e o canto da Terra. A Covid-19 nos lança na possibilidade da vida e de outros mundos. Esta é a reflexão radical que a pandemia traz à tona, o desafio que a humanidade enfrenta para relembrar-se de sua natureza, com a natureza: para reaprender a habitar o planeta nas condições da vida.

Traduzido por João Paulo Pires e revisado por Cecília Pessoa
Este texto foi originalmente escrito em espanhol. Leia o original clicando aqui.

Enrique Leff é Doutor em Filosofia e Economia do Desenvolvimento pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e professor titular no Instituto de Investigações Sociais e também na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da UNAM. É referência no campo da ecologia política e autor de mais de 20 livros.

 

Imagem em destaque: Fabricio Vinhas.
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