Amazônia para além das commodities e do capitalismo verde

Amazônia

[RESUMO] Autores discutem o agravamento de tendências de mercantilização de terras e de exploração predatória, alavancadas por consórcios entre governos e setores econômicos, que aceleraram esses processos após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff; abordam limites de empreitadas de capitalismo sustentável e das tentativas de governos progressistas para conciliação de interesses empresariais e tradicionais.

A Amazônia, na conjuntura iniciada com o golpe de 2016 e aprofundada com o governo Bolsonaro, vive um acirramento da ofensiva de dominação territorial pelas forças do capital. Esse processo caracteriza-se por uma tentativa de ampliação da mercantilização das terras e demais bens da natureza conectada a dinâmicas mundiais de acumulação, que resulta em espoliação de povos e comunidades do campo, aumento da violência agrária, destruição ambiental e perda de soberania popular sobre este território.

Os sinais são evidentes. As taxas de desmatamento na Amazônia Legal registradas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em 2019 foram 34,4% maiores do que as de 2018 e 63,2% maiores do que as de 2015. Associados ao desmatamento, a elevação do número de queimadas, que recolocou a Amazônia no cenário de preocupações internacionais, conflitos agrários e assassinatos no campo marcaram o período pós-golpe. Destruição e violência como regras de acumulação.

Apesar de seus contornos específicos atuais, essa ofensiva não é nova na história e na geografia da região. Ao contrário, pode-se dizer que a dominação territorial pelas forças capitalistas representa um processo de longa duração, iniciado no período colonial e mantido até o presente por meio de uma colonialidade do poder em constante atualização.

Ou seja, a inferiorização, negação e racismo a todos aqueles que representaram ou representam territorialidades fundadas na reprodução da vida e não na acumulação de lucro são o combustível de um capitalismo que só funciona pela violência, devastação e cercamento dos territórios de vida.

É assim que a Amazônia se torna um território estratégico para a acumulação de capital com a transferência de valor para os circuitos nacionais e mundiais, é assim que processos de mercantilização da terra e da natureza, bem como o controle das infraestruturas que garantem os fluxos e a pilhagem de matéria e energia se tornam possíveis, é assim que o capitalismo constrói seus documentos de cultura como verdadeiros documentos de barbárie.

Agroestratégias e Re-militarização da Amazônia

Analisando as forças de sustentação do atual governo na Amazônia, percebe-se alguns rearranjos que, no entanto, não rompem com um eixo de articulação que atravessa governos e bandeiras partidárias: o pacto de poder em torno do agro-mínero-hidro-bio-negócio e das exportações de commodities.

A reprimarização das exportações, iniciada na virada do século, segue na nova conjuntura com o valor das exportações dos produtos básicos alcançando 52,8% do total em 2019. Nesse ano, a soja, os óleos brutos de petróleo e os minérios de ferro corresponderam a 61,3% do total dos produtos básicos exportados que, somados a milho, carne de bovino e de frango, farelos e resíduos de extração da soja, café, algodão e minérios de cobre, chegaram a 91,2%. Assim, a mineração de ferro e cobre, a pecuária e os grãos (soja/milho), bem como suas infraestruturas associadas (rodovias, ferrovias, portos e hidrelétricas), constituem-se como os principais vetores de expansão das fronteiras capitalistas na Amazônia.

Dois arranjos de interesses se articulam a esses processos: um primeiro que pode ser expressado pela noção de agroestratégias e um segundo caracterizado pelo novo protagonismo das forças militares. O primeiro arranjo, que Alfredo Wagner B. de Almeida definiu muito bem, pode ser caracterizado como um conjunto heterogêneo de discursos, mecanismos jurídico-formais. Somam-se a isso ações práticas sustentadas por agências multilaterais, conglomerados financeiros, entidades representativas do setor empresarial rural e órgãos de governo que legitimam a expansão do agro-mínero-hidro-bio-negócio. Esses segmentos removem os obstáculos a essa expansão, sobretudo via mercantilização da terra e sua incorporação no mercado.

O governo Bolsonaro está profundamente conectado a essas agroestratégias, associando a ampliação da desregulamentação tanto da dominação das terras quanto de seus usos, seja do ponto de vista ambiental, seja do ponto de vista das relações trabalhistas. A execução dessa estratégia governamental vem se dando, simultaneamente, pela extinção ou redirecionamento dos órgãos do executivo e de suas respectivas políticas ligadas a esses temas; pelo esvaziamento da participação e representação da sociedade civil; pela redução orçamentária; pela alteração da legislação, como mostram os exemplos emblemáticos das MPs/PLs da grilagem (MP 910/2019 e PL n° 2633/2020) e da espoliação em Terras Indígena (PL 191/2020).

Em linhas gerais, esses arranjos não apenas bloqueiam a criação de novos assentamentos de reforma agrária e o reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas, mas colocam em risco as áreas já conquistadas por meio através da titulação dos assentamentos ou mesmo pela flexibilização do uso das terras indígenas.
Essas agroestratégias não são exatamente uma novidade, pois seus principais arranjos estiveram em curso ao longo dos últimos governos, apesar de que na atual quadra ganharam força suas frações mais agressivas, como a UDR, cujo ex-presidente, Luiz Antônio Nabhan Garcia, é secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura.

O segundo arranjo de interesses, na conjuntura atual, parece ser em torno de um novo protagonismo das forças armadas, indicando uma tendência de re-militarização da questão agrária na Amazônia. Há sinais importantes nessa direção, desde a transferência do Conselho Nacional da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente para a vice-presidência, a cargo do general Mourão, que promoveu uma recomposição dos seus membros, excluindo governadores e representantes da sociedade civil e ampliando a participação de militares e de agentes da Polícia Federal, até o crescimento de ações e exercícios militares na região — alguns em parceria com o exército dos EUA, o que também é reflexo do realinhamento geopolítico do Brasil com este país.

Escritos de militares nos Cadernos de Estudos Estratégicos publicados pela Escola Superior de Guerra, inclusive com artigo do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante geral do exército e grande afiançador do governo Bolsonaro, parecem atribuir elevada importância ao controle da Amazônia. Os principais argumentos são a sua contribuição para a dimensão territorial brasileira e para a identidade nacional, o seu posicionamento estratégico em relação aos demais países da América do Sul e a abundância de recursos econômicos.

De acordo com essa perspectiva militar, o maior risco para a perda de controle sobre a Amazônia não estaria vinculado à invasão de forças estrangeiras interessadas nos seus recursos, desde que garantido o acesso a eles pelas forças de mercado, mas sim na ameaça de imposição de soberania limitada por articulações internacionais que politizam os movimentos indígenas e ambientalistas. Consolida-se, com essa leitura, uma convergência de interesses entre os militares no governo e o agro-mínero-hidro-bio-negócio, retomando uma perspectiva que vigorou na última ditadura de impulsionar o avanço da fronteira a partir de obras de infraestrutura e do deslocamento de frentes de colonização, protagonizadas por fazendeiros, madeireiros, garimpeiros, com a presença estruturante de grandes corporações agropecuárias e minerais.

A publicação pelo The Intercept Brasil, em setembro de 2019, de uma apresentação do Projeto ‘Barão de Rio Branco’, feita por representantes do governo federal para empresários paraenses, ilustra as perspectivas militares para a região. O projeto prevê o prolongamento da BR-163 (Cuiabá – Santarém), incluindo uma ponte sobre o rio Amazonas e uma hidrelétrica, para fomentar a migração de fazendeiros e empresários para a Calha Norte do Pará, uma região com inúmeras Terras Indígenas, sob a justificativa de proteção da fronteira com ocupação por “brasileiros”.

O modo como esse tipo de projeto territorial estratégico vem sendo estruturado remonta à conformação de Grupos Executivos dos anos 1970 (o GETAT e o GEBAM, por exemplo) e o Projeto Calha Norte dos anos 1980, nos quais as Forças Armadas não apenas assumiram o papel de formuladoras estratégicas e coordenadoras dos projetos, mas imprimiram aos grupos estruturas institucionais diretamente ligadas à presidência e com forte caráter militar e sigiloso. Essas organizações atuaram na coordenação econômica e política, inclusive reprimindo e tutelando os segmentos da sociedade civil (indígenas, camponeses, migrantes) por meio de um amplo espectro de ações, da distribuição de terras à intervenção na educação e na organização sindical.

Limites do Desenvolvimento Sustentável e do Capitalismo Verde

Esse novo impulso à expansão das fronteiras capitalistas na Amazônia, pela violência, devastação e cercamento dos territórios de vida, não pode ser entendido simplesmente como resultante do impulso governamental/militar conjuntural, pois expressa um movimento protagonizado por diferentes agentes além do Estado, como grandes corporações minerais, fazendeiros e até mesmo camponeses migrantes em busca de terras.

A adesão política desses grupos ao projeto do governo atual revela os limites do projeto Amazônia Sustentável proposto pelos governos anteriores, encabeçados pelo PT, sinal de que a retomada de uma perspectiva democrática e de soberania popular para a Amazônia precisa de um projeto com horizonte assentado em outras bases, diferentes das atuais, mas também diferentes das postas pelos governos ditos progressistas.
Uma das principais bases do projeto Amazônia Sustentável estava na visão, compartilhada entre o governo da época, ONGs e alguns acadêmicos, de que o caminho da sustentabilidade passaria pela intensificação do uso da terra nas áreas já desmatadas, com aumento da produtividade da agropecuária via adoção de tecnologias modernas, levando a um dinamismo econômico nessas áreas que inibiria novas pressões sobre as fronteiras.

A regulação institucional desse processo passaria pelo Estado, que promoveria ampla regularização fundiária e ambiental e manteria fiscalizações rígidas para coibir novas ações ilegais, mas também pelas grandes corporações do agronegócio e da mineração, que deveriam selecionar apenas fornecedores que cumprissem a legislação. Os povos e comunidades do campo seriam inseridos nesse ‘capitalismo verde’ como prestadores de serviços ambientais ou como produtores de alimentos para os mercados locais.

Esse cenário, no entanto, não se confirmou, revelando seus limites. Apesar da redução das taxas de desmatamento em função da maior fiscalização entre 2005 e 2015, as mudanças estruturais almejadas não ocorreram, como expressam algumas comparações entre os censos agropecuários de 2006 e 2017. Enquanto no Brasil houve um aumento de 5,3% da área total dos estabelecimentos agropecuários nesse período, nos estados que compõem a Amazônia Legal esse aumento foi de 13,9% e, apenas nos estados da região Norte, de 17,4%. Em relação à produtividade da pecuária bovina, nos estados que compõem a Amazônia Legal os índices caíram de 1,1 para 1,0 bovino/ha de pastagem na região Norte.

Ou seja, manteve-se nesse período, na Amazônia Legal, um processo de incorporação de novas terras associado ao aumento das pastagens, que cresceram em 13,3%, e do rebanho bovino, que aumentou 9,2%, mantendo o caráter extensivo e espoliador do agronegócio regional, cujos ganhos se viabilizam não pela eficiência da produção, mas pelo acesso aos recursos públicos, pela mercantilização da terra e pela violência impune.

Esses limites estruturais do projeto de desenvolvimento sustentável da Amazônia foram agravados pela sua subordinação aos interesses mais gerais da acumulação nacional/mundial, expressos em projetos de estruturação da pilhagem, como a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e sua versão nacional, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Como afirma Carlos Walter Porto-Gonçalves em seu livro Amazônia: encruzilhada civilizatória, esses megaprojetos apresentam um impressionante grau de abrangência e de articulação com vários outros grandes projetos, alterando de maneira profunda a dinâmica sociometabólica amazônica e impondo uma temporalidade e uma territorialidade ditadas pelo capital financeiro-industrial globalizado.

Esse ritmo aprofunda catastroficamente a ruptura com o sociometabolismo comandado pelo Sol que organiza as temporalidades e territorialidades de povos e comunidades do campo. A expansão da pilhagem de matéria e energia vinculadas aos grandes projetos de mineração, energia, agropecuária e infraestrutura, bem como a ação violenta e autoritária do Estado e das grandes corporações para implantá-los, mesmo em tempos de democracia formal, materializam-se em inúmeros exemplos, como Belo Monte, Santo Antônio e Jirau, Carajás e Arco Norte, entre outros.

R-Existências e Soberania Popular na Amazônia

Os efeitos destrutivos dos megaprojetos de exploração da Amazônia, bem como os limites das tentativas de conciliação dos mesmos com o chamado desenvolvimento sustentável, levam a uma reflexão de que um projeto de soberania popular na Amazônia não pode encontrar referência nos projetos do capital e sim nas experiências de r-existência dos povos e comunidades do campo. São os povos indígenas, com seus modos de vida, que, mais do que uma convivência de longa duração com a floresta, produziram-na com sua forma de manejá-la, conformando a Amazônia como uma floresta cultural ou antropogênica, segundo Willian Balée. São também as diferentes expressões do campesinato caboclo, que nos interstícios dos projetos e booms do capital colocaram em diálogo seus saberes camponeses com o conhecimento indígena, conformando modos de vida próprios nas beiras de rio, nas matas de várzea, no seringais e castanhais, nas florestas de babaçu, nos quilombos…

São, portanto, referências fundamentais que vinham animando as expressões amazônicas de luta pela terra e pela reforma agrária e que, após a Constituição de 1988, levaram à conquista de grande número de terras indígenas e quilombolas, reservas extrativistas e assentamentos de reforma agrária. Mas essas referências também contribuíram para que essa luta política, que saltou escalas e se articulou internacionalmente, avançasse para além da conquista da terra, pautando uma série de políticas públicas de valorização dos territórios (re)conquistados, garantindo direitos à educação no campo, ao crédito rural e à produção agroextrativista e agroflorestal em bases agroecológicas. A luta dos povos e comunidades do campo, suas formas de organização e suas experiências de reprodução da vida foram apontando os caminhos para a construção de um projeto popular para Amazônia.

O boom das commodities, no entanto, criou uma série de bloqueios a esse processo, criminalizando a luta, reduzindo paulatinamente os projetos de valorização territorial e interrompendo a reforma agrária e a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas. Entretanto, novas gramáticas de luta foram se forjando pela interrupção dos fluxos dos megaempreendimentos, com ocupação de trilhos, estradas e canteiros de obras, pela autodemarcação de territórios indígenas, pela formação de novos movimentos sociais, pela criação de redes de articulação que ampliaram escalas de reivindicação e pelo fortalecimento das lutas em defesa dos territórios indígenas, quilombolas, camponeses, ribeirinhos…

A Amazônia oferece ao Brasil e ao mundo as bases para novos horizontes civilizatórios. Sua polifonia, sua pluralidade de mundos e sua diversidade de territorialidades, cosmologias e línguas oferecem outros caminhos. Soberania popular na Amazônia, portanto, significa soberania de seus povos, de seus territórios, de suas concepções de vida plena e bem viver. Soberania popular na Amazônia também significa uma revisão da escolha acrítica pelas commodities e da ilusão em que a tecnologia é capaz de produzir uma economia sem limites. É colocar no centro de qualquer perspectiva de futuro para todos nós a perspectiva de futuro dos povos amazônicos.

Fernando Michelotti é engenheiro agrônomo, mestre em Planejamento do Desenvolvimento pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará e doutor em Planejamento Urbano e Regional no IPPUR/UFRJ. Leciona na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará — UNIFESSPA, em Marabá. É um dos coordenadores do Laboratório de Estudos em Território, Interculturalidade e R-Existência na Amazônia (LATIERRA).

 

Bruno Malheiro é geógrafo, mestre em Planejamento do Desenvolvimento (NAEA/UFPA), doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Professor da Faculdade de Educação do Campo da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. É um dos coordenadores do Laboratório de Estudos em Território, Interculturalidade e R-Existência na Amazônia (LATIERRA).

 

Imagem em destaque: Amazônia Latitude
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