Pandemia e a distribuição de vulnerabilidades

Antonio Bolívar em 'Abraço da Serpente' (2015)/Divulgação

Faleceu recentemente o ator Antonio Bolívar pelos efeitos da Covid-19, na cidade de Letícia, na Amazônia colombiana. O ator foi protagonista do filme “O Abraço da Serpente”, dirigido por Ciro Guerra, que foi nomeado ao Oscar em 2016. O filme é um relato, em tempos históricos paralelos, da busca por uma planta de grandes poderes no interior da selva amazônica. Um longa-metragem com espessura histórica, de estética refinada e reconhecimento às culturas indígenas.

Bolívar vivia na Tríplice Fronteira, o trapézio amazônico, onde as cidades de Letícia, na Colômbia, Santa Rosa do Javari, no Peru e Tabatinga, no Brasil, observam a proximidade do rio. Uma região que tem uma história muito violenta, em parte por conta da guerra, na primeira metade do século XX, em que se enfrentaram Peru e Colômbia e também devido ao narcotráfico e extração de ouro nos dias de hoje. La Chorrera, onde nasceu Antonio Bolívar, é justamente o epicentro dos dramas do começo do século passado em torno da extração da borracha. Venerável, de origem Huitoto-Ocaina, Bolívar era muito respeitado na região. Mais uma vítima da pandemia, mais uma perda para a memória indígena.

A pandemia em si atinge a todos nós. Diríamos que a doença tem um caráter democrático. Mas não é assim, ela não atinge a todos por igual. Vivemos, como aponta Achille Mbembe, tempos caracterizados por uma “redistribuição desigual da vulnerabilidade”. No Chile, a doença entrou pelos setores mais favorecidos da sociedade, que viajavam para o estrangeiro, mas rapidamente caiu com força nos setores populares, em ambientes superlotados, entre aqueles com debilidades físicas, dificuldades de higiene e má nutrição. Assim como também chegou à precariedade das comunidades indígenas amazônicas.Não somente a elas, mas também nas comunidades quilombolas, ribeirinhas e cidades amazônicas.

A tradição do isolamento indígena os protegia de toda a sorte de doenças contagiosas. Já não é assim. Um vereador de Tabatinga, no Alto Solimões, afirmou, antes da chegada do vírus no município: “Se tiver casos aqui de coronavírus, de pessoas infectadas, isso aqui vai ser um… não tenho nem palavras pra isso. Isso aqui vai ser um filme de terror”. Hoje, o vírus efetivamente chegou e o filme está em plena rodagem.

A Amazônia padece de uma desigualdade histórica, mas hoje, e especialmente no caso brasileiro, esta desigualdade é mais chocante pela redução da presença do Estado. Ela tem duas causas: por uma parte, a ideologia que põe em prática o governo Bolsonaro, no sentido de querer fazer da Amazônia o terreno arrasado propício para o agronegócio e a mineração, constituindo-se um pilar de desenvolvimento neoliberal. Neste sentido é terra sem história, como na conquista do século XVI, e sem habitantes. Se estes querem existir, é para servir à “grande empresa”. Os recorrentes desastres produzidos por essa ideologia são conhecidos: a ruptura de diques de rejeitos de mineração, como os que deixaram centenas de mortos em Mariana, ou Brumadinho, no ano passado.

Em segundo lugar, porque esta carência é histórica: a situação já era ruim antes das bactérias. Os agentes patógenos já tinham, como agora, o rosto das invasões de terras por parte de latifundiários, que devastavam árvores a partir de incêndios monumentais, como os do “dia do fogo” de um ano atrás, incentivado pelo governo. Depois, voavam os aviões lançando sementes ao solo para propiciar a exploração pecuária em grande escala.

Além disso, já ocorriam os assassinatos de líderes ambientais e de Direitos Humanos. Dentro de uma corrupção endêmica, o enfraquecimento dos órgãos de proteção já deixava sem controle a crescente presença de garimpeiros, caçadores de ouro, recorrentes na região, que agora têm caminho aberto para as terras indígenas e chegam maciçamente, já que a situação internacional faz com que os capitais se desviem do dólar e encontrem refúgio no ouro, elevando o preço do minério. A escalada de garimpeiros e missões protestantes, que, nos anos 70, foram expulsas de outros países pela falta de clareza de interesses, agora são encorajadas pelo poder. Uma vez mais, o ritmo de vida amazônico hoje se vê abalado pela violência do mercado internacional e, como na época da borracha, suas mortes estão pausadas por longínquas inflexões das bolsas de valores europeias ou norte-americanas.

Entre as violências do narcotráfico, da busca pelo ouro e da instalação da grande empresa, a vivência da experiência material de seus habitantes refugia-se, de maneira inusitada, no que o poeta brasileiro Paes Loureiro chama de “a modalidade estético-poetizante de seu imaginário”. Cada vivência é referida em unidades míticas que explicam e se expressam no mundo, organizando sua experiência em sistemas simbólicos que lhes permite viver e ultrapassar os acontecimentos.

Então existem relatos, personagens, configurações significativas que, ao moldar sua experiência deste modo, condensam sua história. Assim é o drama da borracha no relato de Gitoma. Hoje, ainda não sabemos que forma o drama adquire nos imaginários. Isto, em uma humilde participação de igualdade com o universo natural — pedras, árvores, pássaros, animais, ar, chuva — entidades com que dialogam, inserindo-as na sua vida cotidiana. É a sua maneira de sobreviver, enquanto sobrevivem.

No espaço amazônico, o desenvolvimento espetacular tecnológico se choca com o arcaico. A supervalorização do primeiro discrimina a profundidade histórica do segundo. Há pouco tempo, Chomsky sinalizou, em uma conferência, sobre os dois perigos capazes de destruir nossas sociedades mais temíveis que o coronavírus: o nuclear, que retomou vida nos últimos tempos, com o joguete entre Trump e o Irã, e a mudança climática. Os três perigos se entrelaçam no mundo amazônico, que fornece os minerais necessários à expansão da nuclearização, que é um espaço estratégico daquilo que o governo brasileiro negou em relação às mudanças climáticas e ao vírus, que já se entranhou em suas populações, do qual Bolsonaro nega a importância, apesar de ser o centro da pandemia no continente.

Estamos nos referindo, então, a uma região que reúne as chaves para o nosso futuro.
Anterior à pandemia, a carência de atenção de saúde básica, leitos hospitalares e médicos e profissionais da área sanitária era uma realidade na região. As pessoas recorrem muito à medicina tradicional. Se já não bastava, agora muito menos. Em Tabatinga, não há hospital civil, os doentes são atendidos no da guarnição militar, inclusive em caso de partos. Existe uma UTI aérea para nove municípios, que transfere os pacientes a Manaus.

Em Manaus, está o caos, a saturação, a carência. Há algumas semanas, pedia-se com urgência ao governo federal um avião com uma centena de caixões –os mortos se amontoavam em caminhões– e Bolsonaro negou o pedido. O prefeito chegou a pedir ajuda à Greta Thunberg para ser escutado. Posteriormente, o grande fotógrafo Sebastião Salgado, reconhecido internacionalmente, também pediu ajuda, por meio da emissora francesa TV5. É uma situação que não importa somente aos amazônidas, pelas razões que aludi anteriormente, mas a todos nós.

Em um lindo poema recente, Paes Loureiro encena a tragédia Édipo Rei, de Sófocles, para mostrar como ela configura-se no conflito de poder da verdade e a verdade do poder. Termina o texto com uma reflexão, porque é um poema didático:

 

“Toda arte nasce de um momento
para esse momento ultrapassar.
É a raiz de sua eternidade.
Eis porque, tantas vezes, renasceu
a tragédia “Édipo Rei”, de Sófocles.
Em nosso tempo
o lutar contra a verdade politiza-se.
Para não aceitar a verdade da ciência
são criados caminhos que desviem
do único caminho verdadeiro.
Mas tantos descaminhos da verdade
talvez caminhem à mesma encruzilhada,
tal a tragédia de Édipo, Jocasta
e o povo atônito de Tebas:
à cegueira, ao desespero e à morte.”

 

Vivemos hoje em uma nova Idade Média que reproduz, a partir do cultivo intensivo do óleo de palma já próximo às cidades, atraindo os morcegos que são vendidos como “caça selvagem” nos mercados chineses, após o déficit produzido pela peste suína, os mesmos males, o mesmo desespero e sofrimento, além das superstições e temores dessa época que achávamos estar distantes. Os circuitos expansionistas da era capitalista nos fazem voltar à origem, mostrando-nos que, além de nosso orgulho, está o ser humano básico com seus afetos, seus defeitos e sua generosidade. E que ao final, assim como as árvores ou as aves, queiramos ou não, teremos que chegar ao “Grande Confinamento”.
 

Tradução de João Paulo Pires e Cecília Pessoa. Leia aqui a versão original em espanhol.


 

Ana Pizarro é professora e pesquisadora da Universidade de Santiago do Chile e doutora em letras pela Universidade de Paris. Especialista em temas relacionados com literatura e cultura na América Latina, já trabalhou em centros de estudos e universidades no Chile, França, Argentina, Venezuela e Brasil.

Imagem em destaque é Antonio Bolívar em cena de “O Abraço da Serpente” (2015)/Divulgação.

 

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