O que o Conselho Nacional da Amazônia está fazendo contra você?

[RESUMO] Avanço do novo coronavírus no Amazonas evidencia debilidades nas atribuições do Conselho Nacional da Amazônia (CNA). Ao deixar de providenciar os devidos cuidados médicos para conter o Covid-19 em meio aos povos da floresta, assim como permitir o avanço de madeireiros e garimpeiros sobre seus territórios, o CNA se mostra como um movimento de “desobrigação” e centralização do Governo Federal em relação à Amazônia, a qual vê apenas como moeda política para relações comerciais com o exterior.

 

Dias de fogo, pandemia e caos nos serviços públicos. Das endemias, que não são tão de dentro assim, à devastação e morte das florestas e suas gentes, a história da(s) Amazônia(s), o período de contato espoliativo que aqui se perpetra, tem sido de violência, de produção e reprodução de desigualdades abissais que se sobrepõem à imensa variedade e diversidade de vidas e formas de viver, bem conhecida como sociobiodiversidade. Em tempos de coronavírus, a violência, provocada por experiência colonial agressiva e contínua, não tem sido distinta.

A Covid-19 chega em um cenário cujo sistema de saneamento básico e ambiental que já beirava o colapso. É preciso entender aqui o saneamento no sentido de saúde coletiva mais ampla, sendo, por exemplo, acesso à água, existência de monitoramento dos sistemas de esgotamento industrial e sua limitação, incluindo o minerário, e do próprio desmatamento e degradação ambiental em nascentes e áreas de recarga hídrica, nutrindo cursos fluviais, que são áreas de captação de água para os povos no campo e nas cidades amazônicas.

Segundo informações do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS 2018), no que toca ao acesso à água potável na região Norte do país, apenas 57,1% da população tem usufruto desse bem comum (que deveria ser) proporcionado pelo serviço público. Se pensarmos que o cálculo é feito por amostragem de municípios e por faixas de populações nesses municípios, não levando em consideração a conexão com a qualidade da água que se acessa em áreas sob contaminação, este índice provavelmente é ainda mais baixo.

Lodo e entulhos em igarapé de Manaus.

Na quinta maior cheia já registrada em Manaus, em 2019, o nível da água do Rio Negro demorou a  baixar e prolongou o acúmulo de lixo nas periferias da cidade. Foto: Edmar Barros/Amazônia Latitude

Comunidades tradicionais e povos indígenas que habitam perímetros urbanos possivelmente entrariam nesta estatística combinada, que nem existe oficialmente, e tem cada vez menos possibilidade de existência com a crescente agregação de dados e eliminação de secretarias especializadas, deslocamento de fundações e autarquias responsáveis para ministérios que não se dedicam ou não têm como competência a promoção da justiça social e acesso aos meios amplos e irrestritos para o cumprimento da mesma. Esse é o caso da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Fundação Palmares, dedicadas aos processos de reconhecimento dos territórios indígenas e quilombolas, deslocadas como setores do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

Na verdade, sobreposições violentas aos modos de vida amazônicos na pandemia acabam sendo uma radiografia aumentada e potencializada dos problemas já existentes e das desigualdades que mediam as relações entre os significados e significantes do progresso, que são os megaprojetos de infraestrutura, logísticos, agrícolas e minerários. Radiografam igualmente, em imagens de terror, o contínuo papel exercido pelo Estado na enunciação desses significantes na região amazônica, quase sempre de forma racista e classista e, portanto, excludente.

Manaus ter sido uma das primeiras capitais do Brasil a colapsar no atendimento básico e nas internações de complexidade não foi por acaso. Não é casual também que os primeiros casos de pessoas indígenas infectadas, chegando ao óbito, também foram no estado do Amazonas.

O estado do Amazonas concentra a maior população indígena do país e uma parte importante desta, pela pressão sobre seus territórios com crescente municipalização e chegada de empreendimentos econômicos e comerciais, tem visto cidades como Manaus ocuparem e se sobreporem ao que costumava ser seu território, como ocorre em vários outros municípios da Amazônia. Exemplo disso ocorreu em 19 de abril, no estado de Rondônia, onde Ari Uru-Eu-Wau-Wau foi morto por defender o território de seu povo, que é de recente contato, e teme o avanço da Covid-19, já que a área é constantemente invadida por madeireiros desde 2019.

Imagem de Ari, na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, que tem um longo histórico de invasão, grilagem, desmatamento e ameaças. Foto: Gabriel Uchida/ Kanindé.

Então, o que pensar quando, para o território amazônico como um todo e, particularmente, para os povos da floresta, não há um plano de contingência específico contra a disseminação do vírus e para lidar com suas consequências sob situação de larga infecção? O que dizer quando os lugares por onde avança a ameaça, como pelo rio Uaricoera, conectando o Amazonas a Roraima, ou no Baixo Tapajós, no Pará, onde rápida urbanização ligada à expansão de estruturas de plantio, transporte e comercialização da soja vinda do estado do Mato Grosso se territorializa, trazendo pessoas, fixando fluxos e também desigualdade?

Ainda, o que imaginar e como nos posicionar quando um “lugar institucional” que seria o atual Conselho Nacional da Amazônia (CNA), antigo Conselho da Amazônia Legal, que poderia assumir a coordenação desse plano de contingência, elimina a representação de membros importantes em seu decreto de fundação, como a Funai e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama) e, pior, os governadores da Amazônia e representantes da sociedade civil da região de sua composição?

É importante avaliar o que o conselho nos diz em seu texto fundacional sobre a posição do que seja o Estado na Amazônia. É relevante também avaliar o que caracteriza a atuação deste órgão como ente aglutinador para resolução, não dos problemas que existem na região, mas do problema (ou oportunidade) que a região representa para a atual administração federal.

A importância da Amazônia para a aplicabilidade do que seja o desenvolvimento sustentável no planejamento nacional está expressa no terceiro artigo do Decreto nº 10.239/2020 de instituição do Conselho. Da mesma maneira, está exposta no documento a visão que a atual administração possui para a cooperação internacional na região, conforme subcomissão instituída pela Portaria nº 48 da Vice-Presidência. Entretanto, a conformação parece ser mais a de um órgão de manejo e controle territorial e de danos, de captação de recursos para políticas de clima, além de ordenamento territorial militarizado para o crescimento, em vez de um conselho para controle social em abordagem de pacto federativo, nos moldes a que estávamos acostumados a ver operar nos últimos dez anos. Trata-se mesmo de um conselho nacional, estando o aspecto federativo e as especificidades regionais e territoriais muito distantes de qualquer possibilidade de autonomia de ação e estratégia em suas diversidades.

Não que seja surpreendente e nova essa ideia de integração da região via planejamento militarizado e polarizado do espaço. Porém, a falta de pesos e contrapesos entre os membros, bem como no próprio desenho operativo do que será o Conselho, cuja composição é de, pelo menos, 50% dos membros titulares do serviço militar, sem consideração, por exemplo, aos muitos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais que habitam a região. Tais aspectos evidenciam retrocessos na coordenação de atividades de preservação, proteção, ordenamento e promoção do desenvolvimento mais equitativo na Amazônia. Estes retrocessos podem ser observados mesmo em relação ao que era o Conselho da Amazônia Legal, instituído ainda durante o governo Fernando Henrique Cardoso, revogado pelo decreto de fevereiro de 2020.

Natureza Morta e Pandemia – o clima das falsas soluções no Conselho da Amazônia

O presidente Jair Bolsonaro e o vice Hamiltom Mourão durante cerimônia de Assinatura do Decreto de Criação do Conselho da Amazônia, em 11/02/2020. Foto:Isaac Amorim/MJSP

O cenário global pós-pandêmico que podemos esperar talvez não seja o de uma humanidade reformada. A noção de humanidade ainda é colonizadora, seletiva e segregacionista. No Brasil, não parece que será diferente. Na Amazônia, algumas velhas reproduções de colonialidade, aliadas a novos discursos e práticas de exploração já estão compondo as camadas de atuação administrativa e governamental.

O Governo Federal já vinha demonstrando parte do seu arsenal de morte quando enfraqueceu as políticas ambientais, fundamentais para o repasse de verbas e atividades de desenvolvimento local e territorial na Amazônia, com uma série de medidas antidemocráticas que se configuram em atentados ao direito amplo e difuso ao meio ambiente, bem como à função social da terra, tais como:

  1. Redução da participação da sociedade civil no CONAMA via Decreto nº 9.806/2019;
  2. Contestação sem fundamento científico dos dados do Programa de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia (Prodes Amazônia), os quais apontavam o aumento do desmatamento em aproximadamente 9.572km​2 em 2019. A contestação levou à exoneração do cientista e diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) em agosto de 2019;
  3. Incentivo discursivo na ampliação de áreas destinadas a projetos agrícolas na Amazônia pautado em brechas nas regras do Código Florestal, além da crítica feroz às atividades de fiscalização do Ibama no episódio do “dia do fogo” na Amazônia, ocorrido em 19 de agosto de 2019;
  4. Drástica redução no orçamento da matriz do Ministério do Meio Ambiente, além de emperrar a execução das atividades, levando à baixa execução orçamentária. No âmbito do Programa Mudanças Climáticas, principal ação orçamentária do Ibama destinada à prevenção e controle de incêndios florestais. O orçamento para esta ação encolheu de R$ 63 milhões, em 2016, para R$ 47 milhões, em 2018. Até novembro de 2019, apenas R$ 28 milhões deste orçamento foi gasto, quando foi lançada a proposta de orçamento para 2020, que reduziu ainda mais os recursos previstos para esse tipo de ação, totalizando o orçamento do Ibama para combate a incêndios florestais em R$ 29,6 milhões, para o ano de 2020, segundo estudo do INESC.
  5. Lançamento do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima e da Política Nacional sobre Mudança do Clima com reduzida participação da sociedade civil via Decreto nº 10.143/2019, em retaliação às suas organizações, movimentos sociais e instituições da cooperação internacional que compunham o Comitê Orientador do Fundo Amazônia, assim como o próprio Fundo Amazônia;
  6. Criação do Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, quando já havia um Grupo de Trabalho Interministerial com participação da Sociedade Civil, centralizando os instrumentos de governança climática, incluindo a centralização da operação de captação, ordenamento e aplicação do financiamento internacional via ​Decreto nº 10.145/2019​;
  7. Promoção da exclusão dos assentos da sociedade civil no Fundo Nacional de Meio Ambiente por meio do Decreto nº 10.224/2020;
  8. Avanço no apoio à tramitação da Medida Provisória 910, que operacionaliza e radicaliza a Lei 13465/2017, permitindo a regularização de terras desmatadas e degradadas até 2018, além de viabilizar, como mecanismo procedimental à autodeclaração de terras ocupadas sem titulação;
  9. Retomada da discussão e recomposição do Conselho Nacional da Amazônia sem governadores, sociedade civil e, especialmente, sem representações de povos e comunidades amazônidas, para a formulação e operacionalização de políticas de adaptação e mitigação das mudanças climáticas e ordenamento territorial e ambiental via Decreto nº 10.239/2020. Em meio à pandemia, é instalado o CNA, evidenciando a relação entre crise e militarização da política para a Amazônia, via Portarias 46, 48 e 50, de 17 de abril de 2020.

No que toca ao CNA, observa-se um endurecimento de políticas para a Amazônia, controle centralizado e pouca participação para deliberação e consulta política quando, originalmente, foi concebido para realizar um planejamento de integração da região amazônica aos centros industriais e comerciais do país e do mundo por meio dos polos e eixos de desenvolvimento presentes no Programa Avança Brasil.

Ao mesmo tempo, também pretendia ser o órgão de coordenação entre municípios, estados e o Governo Federal para estruturação de políticas públicas para a Amazônia Legal, especialmente no que tange ao ordenamento territorial e zoneamento, no contexto de crescente municipalização, para fortalecer processos de descentralização política, base do pacto federativo, permanecendo sob responsabilidade da União a coordenação dos assuntos de cunho estratégico. Para isso, em sua primeira versão, o então Conselho da Amazônia Legal tinha em sua composição os governadores dos Estados.

Na versão atual, na qual a concepção de nacionalização integradora se faz presente até no nome do Conselho, o mesmo passa a ser coordenado e a ter o Vice-Presidente Hamilton Mourão à frente da Secretaria Executiva, sem a companhia dos governadores, representando os Executivos estaduais em sua composição. Composto pela Comissão Integradora das Políticas, Comissão de Preservação, Comissão de Proteção e Comissão de Desenvolvimento Sustentável, com distribuição de representações governamentais exclusivamente federais, o CNA vem a confirmar os retrocessos já apontados acima, em termos de mudanças e pressões legislativas, bem como atividades por decreto e medida provisória, muito pouco deliberativas, como sabemos, colocando para frente uma reforma administrativa, sem passar pelas discussões necessárias para isso.

Além disso, na composição aparentemente técnica, quando não militar-técnica do CNA, fica aberta a ideia de uma natureza vazia, sem gente, a se preservar em ilhas de conservação. Enquanto uma economia de fortaleza se desenvolve na Amazônia, áreas antes preservadas com o modo de vida e a reprodução social eficiente e amazônica, poderão ser autorizadas ao desenvolvimento conectado às visões mais conservadoras de regionalização e urbanização. Para tanto, pode se aproveitar do apelo de captação “climática”, sendo que o desenvolvimento e aplicabilidade de políticas relativas à mudança do clima aparece como uma das funções de coordenação do CNA, para desempenhar tais funções com tranquilidade, levando cidades prósperas, produtivas e sustentáveis à Amazônia. Mas esse, provavelmente, não será o caso.

Na Comissão de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal, por exemplo, onde poderíamos ver o desenvolvimento de uma ideia de saneamento ambiental integrado e coletivo, com a continuidade da valorização dos direitos territoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais, observamos que seu coordenador e titular é o coordenador de ​Sustentabilidade e Competitividade do Ministério da Economia. O vice-coordenador da citada comissão é um militar de alta patente responsável pelo Programa Calha Norte, que espera voltar a ser o grande vértice de promoção de desenvolvimento e civilização em áreas “desocupadas e vazias” da calha do Amazonas.

Não para por aí o empenho em transformar a região em natureza morta, baixando mais sua imunidade enquanto floresta viva pelas atividades de seus povos em tempos de pandemia. Representando o Ministério da Infraestrutura, está o coordenador de Gestão Ambiental e Desapropriações da Secretaria Executiva, responsável por lidar com os planos básicos ambientais, licenciamentos e desapropriação de áreas para a implantação de empreendimentos de qualquer natureza no país. Por fim, vale destacar que a representação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento é a Secretaria de Inovação, Desenvolvimento Rural e Irrigação, estando, portanto, na suplência e não na titularidade, o diretor do departamento de Desenvolvimento Rural e Sustentabilidade da Agricultura Familiar e Cooperativismo, finado Ministério do Desenvolvimento Agrário. O Ministério do Meio
Ambiente, tristemente, está representado nesta comissão não por sua extinta Secretaria de Extrativismo, mas pelo coordenador do setor de Cooperação e Acordos Exteriores, para tornar possível a captação e viabilização da utilização de recursos do Fundo Nacional de Meio Ambiente.

Assim, o CNA, criado também para desempenhar ações de caráter emergencial na Amazônia, dificilmente cumprirá um papel fundamental de proteção às populações tradicionais na Amazônia face à pandemia. Não há nem mesmo a presença do Ministério da Saúde no conselho. Muito menos, dos conselhos representativos, totalmente inoperantes na função do controle social desde janeiro de 2019, como é o caso do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), ambos resultados de muita luta e organização dos segmentos que desses participam em resistência a anos de racismo estrutural, institucionalizado nos processos de tomada de decisão no país.

Conselho, Antidemocracia e o Vírus do Fogo

Área de desflorestamento ilegal descoberta pelos Uru-Eu-Wau-Wau em 15 de dezembro de 2019 pode ser vista à esquerda. À direita, uma área de desflorestamento ilegal para criação de gado. Foto: Marizilda Cruppe/WWF.

A reformulação do Conselho o redirecionou para estratégias de proteção, preservação e desenvolvimento da Amazônia de maneira integrada, focado no combate ao desmatamento, políticas de adaptação e mitigação a mudanças climáticas e criação de boa imagem do país para a comunidade internacional. O CNA, também neste movimento das portarias de abril de 2020, quando crescem os efeitos da pandemia, particularmente na região amazônica e no país, pode virar, sob Comando de Mourão, uma saída de política externa.

Entretanto, essa saída é de retrocesso, pois abre caminho para que novas violações socioambientais e de direitos humanos – desde normativas que podem ser aprovadas tais como a MP 910 ou a Portaria nº135/2020, do Ministério das Minas e Energia – sejam perpetradas com baixíssimo perfil democrático. Na visão da presidência, possibilidades econômicas existentes para o desenvolvimento do país, a partir da região amazônica, tais como mineração, exploração de madeira e expansão da fronteira agrícola com afrouxamento da legislação ambiental e negociação dos direitos e autonomia territorial dos povos, tendem a avançar nesse contexto de pandemia e de necessidade de aumento de investimentos em programas sociais que aliviem a situação.

O ininterrupto crescimento de eventos de desmatamento na região, que segundo monitoramento do DETER, em março, apontou crescimento de aproximadamente 25%, em relação a março do ano passado (Fonte: Deter 2020), aliada à degradação ambiental que se combina de forma brutal à violência contra povos, atesta isso. Segundo dados do Caderno de Conflitos da CPT para 2019, 79% dos assassinatos no campo foram na Amazônia e 84% das áreas invadidas pelas pressões extrativas e do agronegócio foram aquelas pertencentes a cerca de 158 famílias amazônidas. Entre os 79% dos assassinatos de lideranças, a maior parte foi de indígenas, justamente em áreas de pressão para o avanço do agronegócio, em conexão com o avanço do desmatamento, como é o caso do leste e sul maranhense, oeste do Pará, sul do Amazonas, calha norte no Amapá e Rondônia.

Os retrocessos, no que tange à relação com os estados amazônicos, que rebate em seus povos, ocorrem em duas vertentes. Uma de impacto imediato, como a falta de suporte da União aos Estados. A outra é a reestruturação da relação entre União e Estados, fazendo com que a operacionalização política entre as duas escalas de governo não seja mais a mesma. Estamos vivenciando uma guerra entre os governadores da maior parte do país e a Presidência por medidas eficazes de prevenção à Covid-19. De forma mais estruturante, alimentando a guerra nas bases institucionais do pacto federativo, tramita no Congresso Nacional desde 2019, com apoio de bolsonaristas, a Proposta de Emenda Constitucional nº 188, conhecida como PEC do Pacto Federativo.

O principal efeito de sua aprovação seria oficialização de um conjunto de “desobrigações” da União para com os Estados. Por exemplo, hoje existem mecanismos de subsídio orçamentário da União para que os Estados endividados continuem mantendo o serviço público em funcionamento. Perdendo esse subsídio, os trabalhadores do serviço público teriam salários e jornadas de trabalho reduzidas.

Para a região amazônica, além dos efeitos já discutidos sobre a formação do CNA e suas funções, existem movimentações em Brasília que pretendem diminuir o poder de ação e a autonomia dos governadores para decidir, participarem e, efetivamente, terem acesso a instrumentos de gestão pública integrada.

Não se trata, como diz o Governo Federal, da descentralização da política nacional estampada na frase “Mais Brasil, Menos Brasília”. Ao contrário, vemos a nacionalização integradora das políticas, principalmente aquelas consideradas estratégicas. No campo das políticas de monitoramento ambiental e de mudanças climáticas, consideradas estratégicas tanto pela União como pelos governos estaduais, a tensão ficou exposta no teor da carta de 02 de agosto de 2019, elaborada pelo Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia.

A carta trazia desconformidade e questionamento sobre as mudanças de diretrizes do Comitê Orientador do Fundo Amazônia (COFA). Ali, o objeto da disputa era a possibilidade de os governadores captarem recursos internacionais e manterem seu compromisso com as políticas de monitoramento e ordenamento territorial e ambiental, quase todas no mote da rubrica orçamentária para o combate às mudanças climáticas. No caso do Fundo Amazônia, quase 50% do seu montante em operação era destinado a projetos de implantação de estrutura e desenvolvimento de políticas públicas ambientais e climáticas em nível estadual. Em resposta, a Presidência recrudesceu a relação, centralizando ainda mais as ações para este e outros temas, visto a falta de controle sobre o direcionamento e uso deste dinheiro, inclusive territorial e político, pelos estados, especialmente nos casos do Maranhão e do Pará, que tomaram a liderança nos esforços de captação em nível jurisdicional.

Acontece que, também no caso do Fundo Amazônia, havia muitos projetos que garantiam outro tipo de autonomia e possibilidade de ação territorial para a promoção de boa vida aos povos e comunidades da Amazônia. Projetos que se relacionavam com a manutenção de fundos específicos, que redirecionavam recursos e assistência técnica para comunidades desenvolverem práticas sustentáveis de produção, tais como hortas, iniciativas de comercialização de produtos sem agrotóxico, vigilância e proteção territorial, autodemarcação de territórios e garantia de autonomia produtiva agroecológica para as mulheres, foram praticamente suspensos pela falta de recurso.

Atividades deste tipo poderiam ser facilitadas, ao invés de impedidas ou atrapalhadas pelo Governo Federal. Contudo, iniciativas e processos do gênero, que promovem a saúde integral e não fragmentada dos povos e de seus territórios, colidem frontalmente com as ações invasivas e destrutivas incentivadas pelo mesmo Governo Federal na região, como vimos ao longo do ano passado e já nos primeiros meses deste ano.

A coincidência da escalada da Covid-19 na Amazônia com o desmonte das políticas públicas ambientais e de proteção territorial se relaciona diretamente à desestruturação de processos que vinham atendendo à construção e o fortalecimento da autonomia local. Quando morrem estas possibilidades, abrem-se veias de fragilidade para que as consequências do desmonte fluam com muita rapidez para o interior de comunidades e terras indígenas, bem como para expulsar de maneira violenta povos e comunidades para as periferias da cidade.

A vulnerabilidade social, neste contexto, é produzida. Não se trata de consequências não intencionais do desenvolvimento e do progresso, que o CNA parece querer coordenar, emplacando sua inevitabilidade pelo silenciamento de qualquer tipo de presença deliberativa que possa opinar ou provar o contrário. É ainda mais grave: reproduz a quebra do pacto federativo e do princípio da redução das desigualdades regionais, tão caros ao nosso ordenamento constitucional.

A Amazônia não pode se tornar um objeto de disputa também nesta arena, pois a vulnerabilidade social existente, embora produzida e reproduzida, acabará deixando muito mais fogo na floresta e, particularmente, sobre os modos de vida e as pessoas que lá vivem e convivem. Da mesma maneira, a Amazônia não pode, no contexto de crise, ser o Eldorado, a tábua de salvação para a transformação do espaço onde se reproduzem estes modos de vida em espaço de produção de commodities. O dólar e as divisas não podem (e não valem) mais do que todas estas (formas de) vidas.

 

Marcela Vecchione é cientista politica e professora e pesquisadora no Programa de Pos Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Tropico Úmido no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos na Universidade Federal do Para. Desde 2007, atua junto a movimentos indigenas e organizacoes sociais conectados a luta pelo territorio, buscando trabalhar a metodologia da pesquisa ativista. Tambem esta conectada ao Grupo Carta de Belem junto ao qual debate os temas relacionados a financeirizacao e a mercantilizacao da natureza e seus efeitos historicos e continuos sobre os povos e seus territorios.

 

Pedro Martins é advogado popular e Coordenador do Escritório Tapajós na Organização de Direitos Humanos Terra de Direitos, Mestre em Agriculturas Amazônicas pela UFPA. Atua em assessoria a movimentos sociais e organizações populares em questões de Terra, Território e Biodiversidade. Representa a Terra de Direitos na ANA Amazônia e no Grupo Carta de Belém.

 

A imagem em destque é uma arte de Fabrício Vinhas, designer da Amazônia Latitude.

 

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