A luta pela terra na região do Araguaia-Tocantins

Araguaia
O autoritarismo do Estado e o desprezo pelos povos tradicionais intensificaram o avanço do grande capital e a concentração de terras nas fronteiras da região.

Este texto é uma introdução ao artigo “Fragmentos sobre as pelejas pela terra no Araguaia”, de Rogerio Almeida, professor do curso de Gestão Pública da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Você pode ler o artigo na íntegra clicando aqui.

No trabalho de campo, que se dá com a pesquisa no local estudado e a vivência com os moradores da região, Almeida desnuda a experiência amazônica, em específico na região do Araguaia-Tocantins. Neste mundo de águas, os rios condicionam a rotina dos moradores, organizando os encontros, trabalhos, celebrações e utilização dos recursos como a coleta, o plantio e a pesca.

Até meados dos anos 1950, os rios representavam o vetor de povoamento da região, sendo a principal via de circulação de mercadorias, informações e pessoas. A exportação das drogas do sertão, o extrativismo da borracha e o ciclo da castanha do Pará deram-se através dos rios. Mais adiante, estes mesmos rios começaram a ser barrados para a geração de energia.

Ao passo que a exploração da região aprofundava a sua condição (colonial) de exportadora de matérias primas, também aumentava a espoliação das populações nativas. Hoje, esta relação permanece, como se verifica no processo que envolve a construção da hidrelétrica de Belo Monte, na Volta Grande do Xingu.

Observa-se uma frequente indiferença às populações locais, sob a justificativa do desenvolvimento nacional. Neste percurso, é possível identificar uma reedição de práticas primitivas no modo de produção capitalista, além de serem comuns o trabalho escravo, o mandonismo e o clientelismo nas relações de poder da região. Os lugares ocupados por povos indígenas ainda são tratados pelo Estado como vazios, conforme Almeida destaca no trecho:

Na bacia do Araguaia-Tocantins, até meados dos anos de 1980, o grupo indígena Gavião e seus subgrupos (Krikateje, Parketeje e Akrikateje), bem como, Kaapor, Xicrin, Atikum, Guajajara, Suruí, entre outros povos, eram os senhores do lugar, ainda que o Estado viesse a declarar, durante o regime militar, essa porção de terras como um vazio demográfico.

Há que se destacar o agravamento da subordinação da Amazônia à economia do Brasil e do mundo durante a Ditadura Militar (1964-85). As obras de infraestrutura, em particular as rodovias, atravessaram a floresta, alterando significativamente o modo de vida na região. Aprofundou-se o processo migratório, o surgimento dos núcleos urbanos, o desmatamento, a disputa de terras, a violência contra as populações locais, a grilagem, o mercado de terras públicas e o já mencionado trabalho escravo.

É preciso perceber que o Estado, em vez de se colocar como protetor daqueles que habitam o seu território, foi o principal indutor do saque aos recursos naturais e da violação de identidades locais. Ao longo dos anos, os governos brasileiros, em especial os da ditadura, promoveram renúncia fiscal, financiaram obras de infraestrutura e empresas estrangeiras, subsidiaram grandes empresas de produção de alumínio, como a Albrás e a Alunorte, bem como concederam terras públicas ao capital privado.

Ao estudar nossa história agrária, Rogerio percebeu que os aspectos concentracionista da propriedade rural e intervencionista do Estado são componentes centrais da penetração do capital na fronteira amazônica. Utilizando jagunços e militares na coerção das populações locais, posseiros são expropriados, priorizando o modelo de grande propriedade rural, estabelecido através da política de incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM).

Vale do Araguaia/TO – A região é uma das mais produtivas do Tocantins, conforme os dados da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Aquicultura (SEAGRO). Foto: Aldemar Ribeiro/Secom

O autor cita como exemplo de concentração de capital a colonização induzida e espontânea, fatores que motivaram a Guerrilha do Araguaia; e o Garimpo de Serra Pelada, dentre outros grandes projetos aos moldes do Programa Grande Carajás (PGC). Almeida ainda menciona a estrada PA-150, que integra a história da região considerada a mais violenta na luta pela terra no Brasil. “Não sei se por ironia ou reivindicação, o nome do advogado Paulo Fontelles, executado a mando do latifúndio em 1987, nomeia hoje a rodovia”, completa.

Ao final do século XX, a chamada Nova Ordem Mundial, com a consolidação do neoliberalismo, trouxe algumas transformações que contribuíram para o acirramento das lutas na região. Dentre as mudanças, estão a chegada das sementes transgênicas, as revoluções tecnológica e da informação, reconfigurando as fronteiras de espaço e tempo, a hegemonia das agências multilaterais e a presença de global players no cenário econômico e político mundial.

Neste cenário de abissais transformações econômicas, políticas e culturais, esgrimavam nas disputas territoriais, bem como em projetos de desenvolvimento, indígenas, camponeses, grandes corporações do capital nacional e internacional, grileiros de terras, oligarquias rurais ligadas ao controle dos castanhais e o Estado

No Brasil, a Assembleia Constituinte de 1988 foi marcada pelo lobby de ruralistas, que se mobilizaram no sentido de dificultar a implantação do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Os mais radicais organizaram a União Democrática Ruralista (UDR), que depois se provou ter ligações com uma série de chacinas e execuções de camponeses, advogados, sindicalistas, religiosos, dentre outros que apoiavam a luta pela terra.

Por falar em religiosos, vale lembrar que, durante a transição política do país, parte da Igreja Católica se converteu às lutas populares, cerrando fileiras ao lado dos partidos do campo democrático e das organizações sociais. Esse movimento ocorreu quando parte dos seus membros aderiram à Teologia da Libertação. No meio rural amazônico, esse grupo se associou e apoiou as Comissões Pastorais da Terra (CPT), as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o Movimento de Educação de Base (MEB), os posseiros e os sem terra, somando forças no enfrentamento de fazendeiros, madeireiros e grileiros, que tinham no Estado um apoiador.

Estes grupos deram relevo na organização de delegacias sindicais, cantinas, cooperativas, caixas agrícolas, associações, assim como nos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs), no Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (CEPASP), na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), no Conselho Sindical dos Seringueiros (CNS) e na Sociedade Paraense de Defesa de Direitos Humanos (SPDDH).

A execução do seringueiro Chico Mendes, em 1988, configurou-se como um divisor de águas no que tange às políticas públicas para a região. Após o fato, houve a criação de várias Reservas Extrativistas (RESEX) e a oficialização de órgãos relativos ao meio ambiente e aos povos tradicionais. Para além da luta pela terra, incluiu-se no debate o uso dos recursos da floresta por quem nela vive. Os povos da floresta, ou povos tradicionais, ganharam significativa força política no cenário nacional e mundial, ao reivindicar o direito à identidade e à cidadania plena.

Sobre o histórico de lutas na região do Araguaia-Tocantins, local onde foi realizado o estudo de campo de Almeida, alguns aspectos são destacados. Durante o Regime Militar e o advento da Guerrilha do Araguaia, numa região cujo trabalho era coletivo, composto por laços familiares, de apadrinhamento, vizinhança e parentesco, e organizado através de mutirões, verificou-se um agravamento da coerção pública e privada aos camponeses. Neste cenário, a presença da Igreja Católica ganhou grande importância.

A fração da igreja orientada pela Teologia da Libertação e alinhada à luta popular, inspirava-se nos princípios educativos e pedagógicos do educador Paulo Freire e compunha, junto a intelectuais orgânicos, partidos políticos e ONGs, o arco de aliança das representações camponesas com vistas à emancipação. Assim, percebe-se que a vida política, sindical e religiosa, de leste a oeste do Tocantins, estiveram interligadas e foram marcadas pela orientação dos grupos de apoio.

Apesar disso, Rogerio afirma: “Jean Hébette, ao avaliar as pelejas pela terra nas paragens do Araguaia-Tocantins com relação a posseiros e sem-terra, alerta que a necessidade de uma área visando a produção de gêneros para suprir as necessidades da família surge antes de qualquer processo de organização social, religiosa ou política, que intermedie a luta pela terra”.

A década de 1980, marcada por inúmeras chacinas, ficou conhecida como a mais violenta na região. Apesar disso, não há sequer um processo em tramitação para apurar os casos. Passadas quase quatro décadas, os massacres continuam impunes. Há casos em que nem mesmo inquéritos foram instaurados para se chegar aos responsáveis. “Dados coletados na CPT por Anthony Hall (1990) indicam que 125 pessoas estavam marcadas para morrer em 1987, numa lista organizada pelos fazendeiros, e que 45 camponeses foram presos em 1985; um ano depois, o número pula para 700”, sentencia.

Na década de 1990, houve o Massacre de Eldorado do Carajás, crime contra os sem terra que resultou no reconhecimento em massa das ocupações, os chamados Projetos de Assentamento (PAs) da reforma agrária. No século XXI, as chacinas persistem, a exemplo do Massacre de Pau D´Arco, ocorrido em 2017, quando policiais militares e civis executaram dez posseiros que pertenciam à Liga dos Camponeses Pobres, em ação de reintegração de posse. Assim, comprova-se que a impunidade faz parte da indiferença do Estado a essas populações.

Fato é que, ainda hoje, verifica-se grandes projetos – ditos desenvolvimentistas – que promovem verdadeira reconfiguração do território, afetando Unidades de Conservação, Projetos de Assentamento, terras indígenas e quilombolas, não apenas na região do Araguaia-Tocantins, mas em toda a Amazônia.

 

Você pode se aprofundar mais no assunto através do artigo “Fragmentos sobre as pelejas pela terra no Araguaia”, de Rogerio Almeida.
Imagem em destaque: Parque Nacional do Xingu – Fiscalização preventiva realizada pelo Ibama e pela Funai para evitar incêndios florestais na região. Foto: IBAMA.
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