“Curvando o ombro das horas”

Paes Loureiro

Em “Os ombros suportam o mundo”, Carlos Drummond de Andrade apoia-se na resignação do homem diante de circunstâncias diversas, de um tempo em que “os olhos não choram” e “o coração está seco”, num tempo em que as coisas provam que “a vida prossegue”. O poeta mineiro vale-se da poesia para falar no/sobre o mundo, de um mundo que vivia os anos 40 do século passado, nos tempos de guerra.

A poesia, lembra Octavio Paz, revela este mundo; cria outro. É súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero. Confissão. Experiência inata. Pérola da literatura, a poesia, pode-se dizer, revela o nosso íntimo em que se escondem sentimentos que a alma reclama expressar pelas palavras ou mesmo pelo grito. A poesia é a janela do desconhecido humano que se abre no papel – ou na tela do computador – para revelar os sentimentos do mundo, remando aqui, mais uma vez, na direção de Drummond.

João de Jesus Paes Loureiro, poeta paraense de primeira grandeza, não se furta ao que Drummond e Paz nos lembram no quesito sentido/função da poesia. Navega o autor de “Cultura amazônica: uma poética do imaginário” nos entremeios das paisagens que descortinam as horas, os dias, as tristezas, a fúria, o medo, na margem em que o amor e a esperança aparecem para aplacar “Esse fardo de tristeza / curvando o ombro das horas” no sorriso de Helena, neta do poeta.

Se o sorriso de Helena alegra e dá alento ao coração de um poeta-avô que já enfrentou tantos banzeiros e navegou rios e mares mundo afora, o tempo de solidão parece despertar a consciência de um outro mundo, o mundo do presente, o mundo do agora, de homens que olham atrás das grades, reclusos, indefesos, reféns do tempo. Esse mundo aturdido pela pandemia que assusta, que intimida, que causa medo e exige o afastamento justamente daqueles que nessas horas a gente mais precisa por perto, nas horas em que o silêncio nem sempre nos ensina e aconselha, como pensa Walter Benjamin.

Ler 4 e 5 de abril 2020 permite ouvir, pensar, sentir, adentrar no mundo de outras janelas, diferentes daquela que o poeta vê o seu mundo. A propósito, a leitura da poesia nos possibilita entrar em mundos possíveis – ou mesmo impossíveis. Talvez sem a angústia que o poeta sente – ou deveras sente, como duvida o poeta português Fernando Pessoa. Entretanto, ela, a poesia, e aqui o poema-lamento-desabafo-reclamação de Paes Loureiro permite ao leitor caminhar nas esquinas que confabulam presságios. Obriga entrar na Barca de Caronte e ser transportado à outra margem sob o luar que cobre meninos e meninas de rua, ou leva ao encontro do medo, do silêncio, das despedidas, do último sorriso espelhado, como o último sorriso daquela “mulher (que) passa e sorri talvez na direção de um nunca mais”, mas que renasce no sorriso que alimenta e cimenta o futuro da pequena Helena.

4 e 5 de abril. 2020
Paes Loureiro

Eu olho da janela e vejo o entardecer.
As mangueiras abarrotadas de garças.
E penso nestes dias
                                     E penso nestes dias.
Ah! Esse fardo de tristeza
curvando o ombro das horas.
Lamentações desgrenhadas
ecoam do beco das almas.
A manada dos carros
em fúria vai mugindo pelas ruas.
E retorna o silêncio,
essa esfinge indecifrável do medo.
As angústias espreitam das janelas.
Os presságios confabulam nas esquinas.
As palavras de amor
                                                engaioladas
no silêncio da voz, sangram suas asas
nos espinhos da flor da liberdade.
Quem diria que a Barca de Caronte,
a transportar a morte à outra margem,
teria agora novo comandante.
O rumor seco do medo rasga lento
o aveludado silêncio do crepúsculo.
Um belo rosto de mulher passa e sorri
talvez na direção de um nunca mais.
No tempo sem poesia
                    morrem sem ar as palavras sufocadas.
No rio ao longe a lua antiga
afoga-se encenando a terna Ofélia.
A brasa das estrelas apaga
                                                           esfria.
Em noites como esta
apenas o luar é o manto que recobre
tantos meninos e meninas de rua.
Há um cão sem dono a farejar o lixo.
O solitário bêbado cambaleia
                     a caminhar sem rumo feito o meu País.
O amor distante dói como um pecado.
Que mente humana será capaz de conceber
que algo pode ser maior que a vida?
Ah! Se eu pudesse ter um verso lâmina
capaz de degolar o preconceito.
Ah! Por que o poema não seria
para todos o pão de cada dia?
Ah! Por que os países do egoísmo
são insolventes com a democracia?
Passarinhos pousam nas plantas da janela.
A esperança tambatajá não morre nunca
pois vive a renascer e renascer.
                                                                 E renascer.

Eu fecho a janela e abro o celular.
Vejo Helena, minha neta e seu sorriso
no jardim de um ano e meio florescendo.
E no meu coração a brasa da esperança
torna-se chama,
                                            torna-se fogueira
de amor amor e amor por toda a humanidade
agora a renascer nessa criança.

 

João de Jesus Paes Loureiro é poeta e professor de Estética, Filosofia da Arte e Cultura Amazônica, na Universidade Federal do Pará. Mestre em Teoria da Literatura e Semiótica pela PUC/UNICAMP, São Paulo e Doutor em Sociologia da Cultura pela Sorbonne Paris, França. Também exerceu as funções de Secretário de Estado da Cultura, Superintendente da Fundação Cultural do Pará, Secretário de Estado da Educação e Secretário de Educação e Cultura de Belém, capital do Estado.

 

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