“O Estado brasileiro nasceu sem a Amazônia e contra a Amazônia”

problema ambiental
Durante o colóquio internacional em Oxford, Charles Trocate, escritor e integrante do MAM, falou sobre a rolagem perpétua do capital na Amazônia

Na ocasião do Colóquio Internacional “Amazônia: Violência Crescente e Tendências Preocupantes”, Charles Trocate, escritor, filósofo e integrante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), falou sobre a construção social e política da Amazônia sob a pressão do interesse comercial, que vê na região apenas seu potencial econômico.

Para explicar a construção social e política da região, Trocate recorreu a exemplos como as arbitrariedades do setor minerário através dos recentes desastres envolvendo a Vale, maior empresa do ramo no mundo. Além disso, falou sobre o rompimento do “pacto federativo” firmado na Constituinte de 1988 ocorrido no polêmico impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o que, segundo ele, foi responsável por colocar os interesses das classes mais altas acima das demandas populares.

Confira a fala de Charles Trocate na íntegra abaixo.

Vou falar sentado, que quem fala sentado fala melhor. Dizem! Tô com uma dor no joelho… Quero agradecer imensamente o convite a mim feito e, na medida do possível, estou tentando cumpri-lo. Agradecer ao convite em especial à Antonio Ioris. E vou rapidamente tentar desenvolver o meu tema que é a rolagem perpétua do capital, o objeto industrial e a melancolia da política no caso brasileiro.

Bueno, eu sou amazônida, nasci no estado do Pará, e muito cedo, aos quinze anos, entrei no MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], e de 2002 para cá, como uma tarefa delegada do MST, tenho assumido uma outra experiência que é articular os afetados pela indústria extrativa da mineração no Brasil. Vou começar, então, com três aspectos que eu acho importantes.

O primeiro sobre a Amazônia, desnaturalizando a Amazônia. A Amazônia é uma construção que vai da lenda a uma região política, portanto uma construção social. Já se sabe hoje que a floresta não é uma dádiva, a floresta foi uma construção social, uma relação, uma interação humana. Um exemplo concreto de que há uma dialética na floresta e há uma modernidade na floresta.

O segundo aspecto é que a Amazônia é também uma definição política. Ela é uma construção social, mas ela é também uma definição política. Depois da Ditadura Civil-Militar, em 1964, que criou a Amazônia Legal e criou a SUDAM [Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia], todos os estados queriam ser da Amazônia pelo incentivo que a SUDAM daria para o desenvolvimento dos projetos. Portanto, a Amazônia ultrapassava o seu bioma. É uma definição política para além do bioma. Assim, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins… todos quiseram ser da Amazônia, porque os grandes projetos receberiam incentivos. No ano de 2019, muitos desses estados querem sair da Amazônia Legal.

Um terceiro aspecto que eu queria comentar rapidamente: a Amazônia é a geografia para onde concorre o capital na sua realização permanente. Por isso é importante concluir essa parte dizendo: a Amazônia brasileira é anterior ao Estado brasileiro. O Estado brasileiro nasceu sem a Amazônia e contra a Amazônia. Assim como nasceu sem os índios e contra os índios. E essa é a guerra que nós estamos vivendo.

Bom, encerrada esta parte, é importante considerar que há uma rolagem perpétua do capital. Tristemente, é preciso reconhecer isso. Natureza, objeto industrial, consumo, criação de novos consumos, natureza, objeto industrial, consumo. É impossível controlar partes da rolagem perpétua do capital. E não existe a retirada da natureza sem o poder de comunicação. Ontem à noite, no hotel, passei 50 canais de televisão e todos, com um minuto ou dois minutos que estava assistindo, passava uma propaganda. Portanto, não existe essa agressão, esse conflito à natureza, sem essa rolagem: natureza, objeto industrial, consumo e novas necessidades criadas pela propaganda. Há uma relação entre a forma de expropriação da natureza e a forma de propaganda.

É possível considerar hoje no Brasil, em 2003, de que a forma encontrada para o progressismo se estabelecer foi: consumo ostensivo das elites, consumo imitatório (sic) das classes médias e consumo compensatório das classes populares. Como se vê, nós não saímos do ciclo: natureza, objeto industrial, consumo, natureza, objeto industrial, consumo… É importante dizer para finalizar esse pequeno tópico de que a natureza americana, a natureza brasileira, a natureza amazônica, é funcional para esse sistema mundo de produção de mercadorias.

Eu diria, neste tópico, quais são as alternativas. Há no Brasil, um tópico sobre a minería, a mineração, em função de que a mineração cresceu de 2002 a 2012, 400% no Brasil, portanto chegou em muitos territórios que não tinha chegado antes, inclusive em terras indígenas. As três alternativas que estamos nesse tema, porque preciso descrever depois a melancolia da política.

[A primeira é] a luta por territórios livres de mineração. No Brasil, o Estado brasileiro não disse quantas pessoas vão morar no campo e quantas vão morar na cidade. Não faz a reforma urbana, nem faz a reforma agrária. No tema da mineração é igual, Joênia tá aqui. O Estado brasileiro não diz em que território se pode minerar, qual o ritmo dessa mineração e qual é a renda dessa mineração. Nessa indecisão, quer se minerar em todos os lugares. Por isso, a bandeira de luta crescente é “territórios livres de mineração”.

A segunda alternativa é lutar por direitos onde a gente não consegue vencer a mineradora. Como se sabe, as mineradoras estabelecem e criam as suas elites predatórias, deixando o povo fora de qualquer renda da mineração. E por último, nesse tema, as lutas jurídico-institucionais, a perspectiva de construir um outro modelo de mineração: mineração alternativa e alternativas à mineração.

E por fim um comentário sobre a melancolia da política. Como se sabe, em função do tempo, em 1988, nós construímos uma “Constituinte Cidadã”. Ela é resultado das lutas no interior da sociedade brasileira, que vai da libertação dos escravos em 1888 a 1988, 100 anos. A Constituinte em 1988 é um empate entre o interesse das elites e os interesses populares, incluso os interesses indígenas, quilombolas, ribeirinhos… enfim. Quando se fala empate significa que havia uma correlação de forças que nem o campo popular avançava, nem a elite avançava. Houve um acordo, um grande pacto.

O que aconteceu é que em 2016 as elites convenceram a imensa maioria da sociedade, acumularam força e saíram do pacto. Por isso, tudo aquilo que havia como garantia na Constituinte e que o Partido dos Trabalhadores (PT) tentou implementar, de 2016, está sendo jogado fora – o pacto com os indígenas, com os quilombolas, com os movimentos de reforma agrária, os movimentos de moradia, com os movimentos civilizatórios brasileiros. Ou seja, nós perdemos a democracia, o pacto de 1988, por isso estamos todos melancólicos.

Termino aqui, vou cantar uma canção para encerrar. Pode ser? Acho que no Brasil, a morte de Marielle e as canções de Belchior vão derrubar Bolsonaro.

“Não quero regra nem nada
Tudo tá como o diabo gosta, tá
Já tenho este peso, que me fere as costas
e não vou, eu mesmo, atar minha mão

O que transforma o velho no novo
bendito fruto do povo será
E a única coisa que pode ser nova
é nenhuma regra ter
é nunca fazer nada que o mestre mandar
Sempre desobedecer
Nunca reverenciar”

Muito obrigado.

Por ultimo, dia 25 de janeiro completou um ano do crime-tragédia da Vale em Brumadinho e eu e Tádzio [Peters] escrevemos um livro que é uma espécie de guia introdutório ao problema mineral brasileiro, chamado “Quando vier o silêncio: o problema mineral brasileiro”. Não está em inglês, mas certamente logo chegará.

 

estado brasileiro amazônia

Charles Trocate é escritor, filósofo e educador popular, integra a coordenação nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). É um dos organizadores da coleção “A questão mineral no Brasil” pela editora Iguana. É membro da Academia de Letras do sul e sudeste do Pará-ALSSP, e autor de vários livros de poesia, entre eles, Ato primavera, Expressão Popular (2007).
* O diálogo foi mediado e traduzido pela Dr. Grace Souza.

 

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