Movimento indígena ganha novo fôlego em 2020

Após um ano de ameaças constantes de invasores e do governo federal, povos indígenas se mobilizam para resistir ao interesse privado

A questão indígena gera controvérsias desde o princípio da colonização portuguesa, no início do século XVI. Passando por diversos tratados e tentativas de integração e supressão da identidade cultural indígena, foi apenas em 1988, na reabertura democrática, que os povos originários tiveram seus direitos garantidos por lei – dentre eles, a posse ancestral de suas terras e o direito de preservar seus modos de vida e tradições nesses territórios.

Apesar de os processos de demarcação serem conhecidos pela morosidade e pela oposição ferrenha de determinados setores da sociedade brasileira, os indígenas testemunharam um período de grande avanço na garantia de seus direitos entre as décadas de 1990 e 2010, um recorte temporal curto se levarmos em consideração os séculos de opressão pelos quais passaram.

No entanto, não podemos atribuir este avanço às gestões petistas. Nos anos Lula (2003-2010), a soja avançou e cresceu no Norte do país, invadindo até mesmo a floresta amazônica; sem mencionar o planejamento e construção de diversas usinas hidrelétricas na região, motores de grandes impactos socioambientais negativos. Já a gestão de Dilma Rousseff (2011-2015), encerrada por um polêmico processo de impeachment (considerado por muitos como um “golpe parlamentar”), deu continuidade às políticas iniciadas na era Lula e também gerou diversos problemas aos povos indígenas.

Apesar disso, foi com a queda da ex-presidente que o quadro se agravou. A ascensão de Michel Temer ao poder deu prioridade às demandas das bancadas ruralista e evangélica, colocando seus interesses à frente dos direitos conquistados pelos indígenas. Em 2017, Temer anunciou que planejava extinguir a Reserva Mineral de Cobre e Associados (Renca), compreendida entre os estados do Pará e Amapá, e abri-la para a exploração comercial – abandonando a medida logo em seguida para evitar represálias. A reserva, inserida na Amazônia Legal, possui 47 mil km² de extensão, uma área equivalente ao estado do Espírito Santo, e abriga um potencial mineral equivalente ao do Projeto Grande Carajás, considerado o maior reduto de minérios do planeta. Na Renca também estão localizadas nove áreas de preservação ambiental, sendo sete unidades de conservação e duas terras indígenas – Wajãpi, no Amapá, e Rio Paru D’Este, no Pará – onde a mineração privada é proibida por lei.

Paralelamente à extinção da Renca, tramitava no Congresso o Projeto de Lei 1610/1996, de autoria do então senador Romero Jucá (PFL/PR), que previa a liberação da exploração de recursos minerais em território indígena. Mesmo que paralisada pela saída de Jucá da comissão que analisava o processo durante vinte anos, a PL voltou a assombrar os povos originários na campanha presidencial de 2018 com os discursos do então candidato Jair Bolsonaro, hoje presidente da república. As polêmicas em torno das alegações de Bolsonaro não são novidade, mas as medidas tomadas pelo ex-militar em relação a movimentos sociais e à preservação ambiental trouxeram uma guinada de 180º em relação às mesmas políticas praticadas por governos anteriores.

Começando pela distribuição de ministérios e a realocação de autarquias e órgãos ligados a eles, como a tentativa de transferir o Ministério do Meio Ambiente (MMA) para a pasta da agricultura, o desaparelhamento da Funai, Ibama e ICMBIO, os desentendimentos com doadores do Fundo Amazônia e sua consequente paralisação, os cortes orçamentários e as extensas queimadas na floresta amazônica em agosto e setembro, a nova gestão mostrou que suas promessas de 2018 vão além de bravata de campanha.

Frente ao cenário que começou a se desenhar em 2019, lideranças indígenas em todo o Brasil se levantaram para mobilizar seu povo e resistir aos retrocessos. Dentre elas, Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Sônia Guajajara, Joênia Wapichana, Megaron Txucarramãe e Raoni Metuktire, muitos dos quais viajam pelo mundo para promover a defesa do meio ambiente e pedir ajuda à lideranças estrangeiras em favor da integridade física e cultural de seus povos.

Neste texto, mostraremos um pouco da trajetória de alguns desses representantes indígenas no ano de 2019 – eles estarão presentes no Colóquio Internacional “Amazônia: Violência Crescente e Tendências Preocupantes”, que acontecerá na Universidade de Oxford, Reino Unido, entre 31 de janeiro e 2 de fevereiro. Na ocasião, os representantes buscarão estabelecer um diálogo com a sociedade civil e acadêmica para pensarem juntos soluções para as ameaças que se abatem sobre o território amazônico.

Raoni Metuktire Yanomami

Há mais de cinco décadas, o cacique Raoni Metuktire luta pelos direitos do povo Yanomami e pela preservação da Amzônia brasileira. Foto: divulgação.

O cacique Raoni Metuktire é um líder indígena e ambiental brasileiro, chefe do povo Kayapó. É internacionalmente conhecido como um símbolo vivo da luta pela preservação da floresta amazônica e da cultura indígena – batalha que vem travando há quatro décadas. Foi tema de diversos documentários e artigos, o que também lhe rendeu aproximação com líderes mundiais para discutir as condições da Amazônia. A notoriedade internacional de Raoni veio à tona em 1989, quando em companhia do cantor inglês Sting, empreendeu uma turnê por dezessete países enquanto transmitia sua mensagem. Por conta de seus esforços e dedicação em causas ambientais, foi nomeado como candidato para o Prêmio Nobel da Paz 2020.

Em 2019, Raoni retornou à Europa para denunciar as políticas e ações do governo Bolsonaro relativas aos povos indígenas brasileiros. Acompanhado de outros líderes indígenas das reservas do Xingu, como Kaliu, Tapy Yawalapiti e Bemoro Metuktire, passou por Paris, Lyon, Cannes, Bruxelas, Luxemburgo, Mônaco e Vaticano, onde foi recebido por chefes de estado e outras autoridades. Com o objetivo de denunciar o avanço do desmatamento e angariar recursos para proteção de sua reserva e da Amazônia em geral, a viagem organizada pela ONG Forêt Vierge, da qual Raoni é presidente honorário, teve grande repercussão internacional.

A viagem ocorreu em período de tensão para os ambientalistas, que acusam o governo de Jair Bolsonaro de promover retrocessos na política ambiental e indígena em favor do agronegócio, madeireiros e mineradoras. Segundo a ONG, o líder indígena pretende usar o dinheiro arrecadado para intensificar a sinalização dos limites da reserva do Xingu, comprar equipamentos para monitorar a região, melhorar o atendimento de saúde e educação, e para a aquisição de conhecimento técnico para projetos de exploração sustentável da floresta, a fim de garantir a autonomia dos povos da reserva.

Ao longo do ano, Raoni e o presidente Jair Bolsonaro trocaram farpas por intermédio da mídia nacional e internacional. Durante a Assembleia Geral da ONU, em setembro, Bolsonaro afirmou que “A visão de um líder indígena não representa todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o cacique Raoni, são usadas como peças de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia”. A crítica do presidente a Raoni tem como base seu encontro com o mandatário francês, Emmanuel Macron, em maio do mesmo ano. Macron foi um dos mais ferrenhos opositores internacionais de Bolsonaro quanto à questão ambiental, sobretudo no ápice da crise das queimadas na Amazônia, mesmo que seus motivos fossem a autopromoção e a proteção do setor agropecuário francês, que teme possíveis consequências de um acordo econômico bilateral entre União Europeia e Mercosul.

Em entrevista ao Fantástico, Raoni rebateu Bolsonaro dizendo acreditar “que ele nunca conheceu a minha luta. Não conhece minha história”.

“No meu pensamento, as pessoas que ajudaram ele, que mexem com garimpo, que destroem a madeira, que ficaram falando de mim para ele, Bolsonaro, pensar isso. É pelo incentivo dele, pela fala dele que as pessoas estão queimando as florestas. Fala pela destruição da natureza, pela diminuição do território indígena. Bolsonaro é mentiroso, ele é doido”, afirmou Raoni à jornalista Sônia Bridi.

Entre os dias 14 e 18 de janeiro, Raoni participou do Encontro dos Povos Mebengokrê e Lideranças Indígenas do Brasil, na Terra Indígena Capoto Jarina, no estado do Mato Grosso, onde estiveram presentes representantes de 45 povos indígenas para angariar forças e denunciar o “projeto político de genocídio” empreendido pelo governo brasileiro no último ano. O encontro, que também foi a realização de um dos maiores desejos do cacique Raoni Metuktire, uniu diferentes etnias espalhadas pelo território nacional em torno de um único objetivo – a criação do Manifesto do Piaraçu – das Lideranças Indígenas e Caciques do Brasil na Piaraçu, onde os signatários se comprometeram a incrementar e permanecer na luta por seus direitos.

Davi Kopenawa Yanomami

Davi Kopenawa, líder indígena Yanomami, durante conferência na Universidade de Harvard. Foto: Dani Peréz.

Davi Kopenawa é pajé e porta-voz do povo Yanomami. Liderou, junto de Raoni, a extensa campanha internacional para assegurar os direitos territoriais dos Yanomami, motivo pelo qual ganhou reconhecimento no Brasil e no exterior.

Em 1989, Davi ganhou o prêmio Global 500 das Nações Unidas em reconhecimento à sua batalha para preservar a floresta amazônica. Davi continua a desempenhar um papel crucial na luta pelos direitos de seu povo, e é a força matriz por trás de um inovador projeto de educação bilíngue que visa ajudar indígenas Yanomami a defender seus próprios direitos por si mesmos.

Em 2004, junto de outros líderes Yanomami, fundou a Hutukara (a parte do céu da qual nasceu a terra), organização de direitos Yanomami. Também é autor do livro A queda do céu (2013), e recentemente foi vencedor do Right Livelihood Award 2019 por conta de sua “corajosa determinação em proteger as florestas e a biodiversidade da Amazônia, e as terras e a cultura de seus povos indígenas”. Considerada como um “Nobel Alternativo” premiação da fundação The Right Livelihood, organização com o objetivo de promover a pesquisa científica, educação, conhecimento público e atividades práticas que contribuam com o balanço ecológico, traz mais visibilidade para a luta indígena e ambiental, ainda mais em um cenário de constante pressão sobre a Amazônia e seus povos.

Segundo reportagem da emissora alemã Deutsche Welle, os Yanomami viram o garimpo ilegal disparar no ano de 2019. Nos sete primeiros meses, a Hutukara estimou a presença de cerca de 20 mil invasores em busca de ouro na terra indígena. Apesar das denúncias precisas da localização dos garimpos, feita através de GPS, o governo federal não se mobilizou para defender os Yanomami – ao contrário, desativou três das quatro Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes) da Funai, e desmobilizou os acampamentos do exército brasileiro, instalados na terra indígena em 2018 para combater o garimpo.

“Estamos falando como denunciantes fora do Brasil, viajando e falando sobre garimpo ilegal, pedindo apoio, pedindo socorro, para pressionar o governo federal”, afirmou à DW Dario Vitório Kopenawa Yanomami, filho de Davi Kopenawa e vice-presidente da Hutukara.

“Eu tô achando que o governo Bolsonaro é muito difícil, [tem] pensamento diferente. Pensamento para ele [é que o garimpo] é bom. Mas, para nós, não é bom. O governo não vai apoiar a retirada dos garimpeiros. Eu acredito que não vai apoiar. Porque ele está querendo que os garimpeiros continuem. Até estragar nossos rios. Mas eu, Davi Kopenawa, tenho 38 anos lutando contra o garimpo. Eu não quero que o governo deixa continuar. Queria que o governo tomasse as providências para retirada dos invasores do garimpo da terra demarcada e homologada”, disse Davi Kopenawa, durante uma conferência sobre mudanças climáticas na Universidade de Harvard, em maio de 2019.

Joênia Wapichana

Joênia Wapicahana, primeira advogada indígena e segunda representante indígena na Câmara dos Deputados na hiistória do Brasil. Foto: Câmara dos Deputados.

Joênia Wapichana é a primeira advogada indígena na história do Brasil e membro do povo Wapichana, localizada no estado de Roraima. Ela também foi a primeira advogada indígena a argumentar no Supremo Tribunal Federal (STF). Ela é a atual presidente da Comissão Nacional de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, e foi eleita deputada federal pelo estado de Roraima, sob a bandeira do partido Rede Sustentabilidade (REDE) nas eleições de 2018, sendo também a primeira indígena eleita para a Câmara dos Deputados, assim como segundo representante indígena na câmara na história do país.

“Somos muito novos em educação política, era entendido que se a gente se aproximasse da política, iríamos deixar de ser índios, que se tivesse uma identidade ou votasse, você iria deixar de ser índio. Um absurdo que não é do passado, o próprio presidente quer deixar a gente de fora da sociedade. Você vai ser indígena pela sua origem, costumes e crenças, pela forma que te reconhecem, posso passar anos vivendo na Alemanha e não vou deixar de ser indígena. Temos que participar e ter parte desses direitos civis, a emenda parlamentar não deve ser vista como assistencialismo, são direitos da população e nós indígenas também somos cidadãos brasileiros”, disse Joênia em entrevista à revista Marie Claire, em abril de 2019, quando questionada sobre a presença de indígenas na política brasileira.

Em seu primeiro ano de mandato, Joênia fez a voz indígena ecoar pelo Congresso Nacional. Durante a crise das queimadas na Amazônia, redigiu o Projeto de Lei 5467/19, em análise na Câmara, que altera a Lei dos Crimes Ambientais e o Estatuto do Índio. Dentre as propostas da lei, está inclusa a reversão dos recursos obtidos com multas por crimes ambientais cometidos em terras indígenas para os habitantes da terra em questão. “Entres as causas não naturais que envolvem as queimadas na região, foi noticiada a atuação de fazendeiros, inclusive com denúncias de serem responsáveis por queimadas dentro de terras indígenas. Diante dessas situações, nada mais justo do que reverter em benefício dos povos indígenas os valores arrecadados em pagamento de multas por infração ambiental cometida em suas terras”, disse Joênia durante a votação da PL.

Com uma emenda à constituição à Medida Provisória 890/19, tentou preservar a política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas e a gestão da atenção básica à saúde indígena sob comando da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), conforme já consta na Lei.12.314/10 e no Decreto 9.795/19. A emenda foi uma tentativa de incluir na MP 890 mais um dispositivo de segurança para assegurar o atendimento especializado à saúde indígena. A MP cria o programa Médicos pelo Brasil, com o objetivo de ampliar a oferta de serviços médicos em locais afastados, substituindo o Mais Médicos – extinto por conta de uma desavença diplomática com o governo cubano.

“Não foi fácil, mas conseguimos concluir esse primeiro ano, efetivando o principal objetivo do mandato: defender direitos indígenas. Creio que fomos além, por vezes, também defendi direitos coletivos de outros seguimos sociais que procuraram o nosso mandato para apresentar as suas demandas e preocupações, além dos direitos constitucionais que me propôs a defender no legislativo. Mesmo com muitos enfrentamentos, ataques aos direitos indígenas, humanos e direitos constitucionais, conseguimos alcançar um mandato propositivo, de Projetos Leis, Requerimentos, Emendas, Relatorias, participações em várias Comissões e uma atuação forte no plenário da Câmara. Enfim, com espírito de que conseguimos superar o primeiro ano de mandato, seguimos com as perspectivas renovadas e que em 2020, possamos avançar cada vez mais em prol dos direitos, da justiça, dignidade e do bem coletivo, dos povos indígenas e de toda sociedade”, relatou Joênia Wapichana em suas redes sociais.

 

Imagem em destaque – Cacique Raoni profere um discurso durante Encontro dos Povos Mebengokrê e Lideranças Indígenas do Brasil, na Terra Indígena Capoto Jarina, no estado do Mato Grosso, onde estiveram presentes representantes de 45 povos indígenas para angariar forças e denunciar o “projeto político de genocídio” empreendido pelo governo brasileiro em 2019. Foto: divulgação.
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