Breve panorama da violência na Amazônia em 2019

Violência na Amazônia/ Violence in the Amazon
Violações de direitos humanos na Amazônia apresentam tendência preocupante nos últimos anos

Quem chega de avião à cidade de Tabatinga receia, por um instante, que o piloto tenha se enganado. A pista de pouso se esconde na imensidão da floresta amazônica. Passado o susto, nos deparamos com um cenário urbano cuja tranquilidade só é atrapalhada pelo vai-e-vem de motocicletas, principal modal de transporte local. A paz aparente traz estranhamento a quem se prepara para adentrar em um reduto do narcotráfico brasileiro, na tríplice fronteira com Colômbia e Peru.

A presença da equipe de jornalistas* que o autor integrava se justificava pela cobertura do Seminário Internacional de Ecologia Política, em maio deste ano. Antes da chegada, nosso contato com a cidade se deu por reportagens da imprensa brasileira como Favela Amazônia, matéria d’O Estado de São Paulo sobre a miséria em Tabatinga. Vídeos produzidos pelo jornal mostravam indígenas catando comida em um lixão a céu aberto, retrato da ausência dos mínimos serviços nas cidades brasileiras.

Outro recorte, do site Sputnik, referia-se ao município amazonense como “terra sem lei”, e falava sobre a influência do narcotráfico no cotidiano de Tabatinga, ostentando como imagem em destaque um tapume de metal no qual uma pixação da facção Família do Norte (FDN) clama a posse sobre o território anunciando “a fronteira é nossa”.

A Família do Norte ganhou visibilidade com a onda de rebeliões nos presídios da região Norte a partir de 2015. Entre outros motivos, as rebeliões vieram a público por serem parte de uma guerra entre o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior facção criminosa do país, com origem em São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), principal facção atuante na região metropolitana do Rio de Janeiro.

Aliada ao CV, a FDN esquartejou e decapitou vários integrantes do PCC detidos nos presídios do Norte para garantir a soberania sobre as rotas de tráfico de drogas na região. A gravidade do conflito entre as facções teve como ápice o massacre no Complexo Penitenciária Anísio Jobim (Compaj), localizado na cidade de Manaus, ainda no primeiro dia de 2017. Foi o segundo massacre mais violento na história do sistema prisional brasileiro, contabilizando 56 mortes.

Pichação da FDN usada como demarcação territorial na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, na cidade de Tabatinga-AM. Fonte: Sputnik.

Tendo em conta o histórico de extrema violência da FDN, ir a Tabatinga se mostrou, no mínimo, preocupante. Para a surpresa dos jornalistas, que acabavam de desembarcar na cidade, acessível apenas por via aérea ou aquática, logo estávamos defronte ao tapume em questão. Porém, não esperávamos encontrar o “termo de posse” da FDN na Avenida da Amizade, principal via da cidade, que faz a ligação com o município de Letícia, na Colômbia.

Mesmo ali, no centro de Tabatinga, o tapume pixado parecia não preocupar os habitantes e a vida seguia tranquila – o que dissipou a imagem de município extremamente violento pintado pelas matérias da imprensa. A impressão seria reforçada quando um motorista de moto-táxi comunicou de modo natural a impossibilidade de passar pelo posto de fronteira em um fim de tarde, pois criminosos haviam deixado um corpo no local.

Próxima ao Trapézio Amazônico, região que responde pelo maior volume de produção de cocaína no mundo, Tabatinga parecia não sofrer diretamente com a ação do narcotráfico. Essa percepção é compartilhada por Luiz Fábio Paiva, em seu artigo Nas margens do Estado-nação: as falas da violência na tríplice fronteira amazônica. O autor realizou diversas entrevistas com moradores de Tabatinga para compreender suas próprias noções de violência. Seu artigo mostra que a violência sangrenta do narcotráfico (compreendida como um prato cheio para o exibicionismo de parte da imprensa) não é a única forma de violência que se abate sobre as populações amazônicas.

Muitos dos tabatinguenses entrevistados por Luiz Fábio afirmam, nas conversas, que só morrem aqueles diretamente envolvidos com o crime.

“Funciona assim [crimes de pistolagem] Você compra uma droga, ai tipo assim, você compra fiado. Aí, de repente você some com a droga ou porque a polícia prende ou porque tu quer enganar o cara. Aí, eles chamam e dizem “ou você paga a minha droga, ou você morre”. E é assim que funciona, se você não pagar, você morre. Você pode fugir, mas nunca mais voltar para cá, porque no dia que você voltar pode ter passado 10 anos quando aconteceu isso, a pessoa acha que esqueceu, mas não esquece. Quando você bota os pés aqui, geralmente, eles já tão sabendo que você vai chegar, já tem um pistoleiro te esperando. Ai matam mesmo! Aí, é assim!” (Polícial Civil entrevistado por Luiz Fábio).

Além da violência lenta física e subjetiva, os amazônidas precisam lidar com outras formas de violência, tais como a grilagem, colonização da natureza através do extrativismo predatório ilegal de recursos naturais para manutenção do capitalismo, tráfico de pessoas, expansão da fronteira agrícola que, com o apoio do Estado, já liberou até o momento 439 tipos de agrotóxicos, entre outros problemas que afetam diretamente a integridade física, moral, espaços interiores e os próprios modos de vida das comunidades tradicionais.

Assim como o trabalho de Luiz Fábio, tantos outros artigos se referem a essa violência pelo termo conflitos socioambientais, situações de embate entre interesses das populações locais e dos demais agentes sociais. Esse conjunto difuso não se restringe a pessoas e perpassa o modelo de desenvolvimentismo econômico que se impõe a todas as regiões do mundo, priorizando o lucro ao bem-estar social.

Conflitos Socioambientais

Pedro Rapozo, professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e coordenador do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos Socioambientais da Amazônia (NESAM), afirma que os conflitos socioambientais são marcados também pelas desigualdades de capital político e econômico. Ambos, no caso brasileiro, estão representados nas disputas de poder nos campos Legislativo e Executivo, relacionados a políticas de demarcação territorial e sua morosidade judicial.

“Os conflitos socioambientais mantêm uma relação de agentes com recursos naturais disponíveis. A mediação desses recursos é representada pelos impactos gerados pela ação humana nesses ambientes. Os conflitos também são pensados através de valores de modos de vida divergentes, ideologias não consensuais entre grupos hegemônicos e não hegemônicos que disputam o poder por determinado bem ou recurso natural predisposto”, avalia o sociólogo.

No artigo Invisibilidades e Violências nos conflitos socioambientais em terras indígenas da microrregião do Alto Solimões, Amazonas Brasil, ainda não publicado, Rapozo esclarece que a disputa de poder gera embates socioambientais entre agentes como o Estado, latifundiários, expropriados territoriais, posseiros, pescadores artesanais, agricultores, quilombolas e povos indígenas. O pesquisador observa que a ocorrência de conflitos motivados por transformações nos modos de vida, pela permanência e sobrevivência das sociedades rurais amazônicas, intensificou-se com o avanço do agronegócio e megaempreendimentos na região.

“Temos isso claramente: de um lado, a sociedade civil, instituída a partir de grupos sociais, camponeses, trabalhadores rurais, posseiros, pescadores, indígenas. De outro, há as ações do Estado, como as políticas de financiamento de grandes projetos econômicos. São exemplos de como isso acontece na Amazônia. De fato, o grande capital de um lado e a sociedade civil do outro. Não significa que, dentro da própria sociedade civil, não existam conflitos de interesses entre pescadores, indígenas, populações ribeirinhas, quilombolas, sem que haja um grupo especialmente impactado por esses conflitos, considerando que são resultado do interesse direto pelo território, sua ocupação e uso de algum bem. Mas, tendo em vista o contexto da Amazônia, temos claramente uma oposição muito expressiva das sociedades rurais, de um lado, sendo criminalizadas e, por outro lado, o andamento de projetos na Amazônia se dá pela influência do Estado” explica Rapozo.

Violência em números

Em setembro, dois relatórios sobre a violência na Amazônia foram publicados. O primeiro, da Human Rights Watch (HRW), discorre sobre como a violência e a impunidade catapultam o desmatamento na região. Por sua vez, a compilação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) esmiúça o quadro de violência contra povos indígenas.

No relatório Máfias do Ipê: Violência e Desmatamento na Amazônia, a HRW examinou 28 assassinatos, a maioria a partir de 2015 – além de 4 tentativas de assassinato e mais de 40 ameaças de morte. A análise constatou que, na maioria dos casos, os crimes estavam diretamente ligados a atividades ilegais de madeireiros, garimpeiros e posseiros da região. Dentre as vítimas, estão indígenas e membros de outras comunidades tradicionais que denunciaram os criminosos, assim como agentes públicos atuantes na fiscalização e combate a essas atividades.

O cenário de omissão do Estado se expressa na impunidade dos criminosos implicados nos assassinatos, ameaças e extorsões. Segundo o relatório da HRW, entre os mais de 300 assassinatos analisados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização não governamental que registra denúncias não processadas pelos órgãos oficiais competentes, apenas 14 foram julgados; dos 28 assassinatos analisados pela HRW, dois foram aos tribunais. Nenhuma das 40 ameaças examinadas foi a julgamento.

Essa impunidade se deve, em grande parte, à condução inadequada das investigações pelas instituições policiais. A polícia local reconhece as deficiências e as atribui à ocorrência das mortes em áreas remotas. No entanto, a Human Rights Watch documentou graves omissões, como a falta de autópsias nas investigações de mortes ocorridas nas cidades, não muito longe das delegacias de polícia.

Sobre essa forma de violência, Pedro Rapozo afirma não se tratar apenas “de uma questão de assassinatos e tentativas de assassinato como violência física materializada que podem ser pensadas como consequências do conflito. A imposição de determinadas práticas, de determinadas políticas do Estado, o não assegurar dos direitos de uso da terra, a ineficiência no tratar dos processos de judicialização dos conflitos, a maneira como o Estado e determinados agentes econômicos tratam essa relação com os agentes impactados, podem ser vistos também como um modelo de violência simbólica, também expressa como decorrência desses conflitos”.

Os povos indígenas, que há tempos desempenham um papel de monitores e defensores das florestas para combater o desmatamento (por meio de alertas e denúncias), encontram-se particularmente ameaçados frente o enfraquecimento dos órgãos e leis de fiscalização e proteção ambiental. O relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil: Dados de 2018, publicado pelo Cimi em setembro, mostra que no último ano foram registrados 109 casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio”, ante os 96 registrados em 2017. Entre janeiro e setembro de 2019, o Cimi havia contabilizado 160 casos de invasão de terras indígenas entre janeiro e setembro, distribuídos por 153 territórios em 19 estados do Brasil.

Até o lançamento do relatório, o Cimi observou 941 casos de violência contra o patrimônio dos povos indígenas. São ataques relativos à omissão e morosidade na regularização de terras; conflitos relativos à direitos territoriais; exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio. Nesse contexto, o órgão dá especial atenção para o caso da terra indígena Munduruku, na qual estima-se que cerca de 500 garimpos já estejam instalados.

No quesito violência contra a pessoa, foram registrados 110 casos relacionados à abuso de poder; ameaça de morte; ameaças várias; homicídio culposo; lesões corporais dolosas; racismo e discriminação étnico cultural; tentativa de assassinato; e violência sexual no ano de 2018. No mesmo ano foram registrados 135 casos de assassinato de indígenas, 25 a mais que os registrados em 2017. Entre outras formas de violência que se abatem sobre os povos indígenas por omissão do Estado ou violação de direitos por criminosos, ainda constam suicídios, aumento na mortalidade infantil, mortes por desassistência médica, entre outros.

Como ressalta a Secretaria Especial de Saúde indígena (Sesai), são dados parciais, já que novos casos poderiam ser notificados. Desse modo, fica evidente que a situação real em relação ao assassinato de indígenas é ainda mais grave do que desenham as estatísticas.

Relação com o desmatamento

Operação “Pé ybyrá” faz apreensão de maquinário de madeireiros na BR-163 (Santarém-Cuiabá), em 19 de novembro, no estado do Pará. Fonte: ASCOM/SEMAS.

O Brasil se comprometeu, em 2016, a eliminar o desmatamento ilegal na Amazônia até 2030, ao assinar o Acordo de Paris. Entre 2004 e 2012, observou-se uma redução do desmatamento na Amazônia em mais de 80%, de quase 28.000 km² de floresta destruída por ano para menos de 4.600 km². Após a aprovação do novo Código Florestal no Congresso Nacional, sob intenso lobby da bancada ruralista, o desmatamento voltou a subir em 2012. Em 2018, atingia 7.500 km², e espera-se que essa extensão seja ainda maior em 2019.

O sucesso do Brasil no combate ao desmatamento antes de 2012 decorreu, em parte, do uso de imagens de satélite em tempo quase real para localizar e fechar os sítios de extração ilegal de madeira. Outro fator de sucesso foi a criação de áreas protegidas – unidades de conservação e terras indígenas – abrangendo centenas de milhares de quilômetros quadrados em toda a região amazônica, onde restrições legais sobre o uso da terra e dos recursos protegem a floresta.

Em 18 de novembro deste ano, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou os resultados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), que monitora o desmatamento no período de um ano. O índice foi obtido por meio da análise de imagens de satélite do Prodes, responsável por contabilizar as áreas que evidenciam estar no final do processo de desmate. Os números ultrapassam em 42% o alerta do sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), outro sistema do Inpe – porém de fiscalização diária da região amazônica – que previu um total de 6.833,9 km² de desmatamento para o período.

Dentre os fatores apontados como responsáveis pelo aumento no desmatamento no ano de 2019, estão a adoção de técnicas sofisticadas de extração de madeira, mais difíceis de identificar através da vigilância por satélite, e os cortes orçamentários e humanos sofridos pelas agências federais de fiscalização ambiental, o que reduziu a capacidade de investigação e punição de madeireiros.

Outro destaque apontado no relatório da HRW é o desinteresse governamental em apurar e até mesmo registrar denúncias relativas a atividades ilegais na floresta. Esse cenário de impunidade e redução da fiscalização dá maior liberdade para que madeireiros, posseiros, garimpeiro, entre outros criminosos, executem suas atividades e agravem o quadro de destruição dos biomas amazônicos, assim como permite que intensifiquem a opressão contra as pessoas que os denunciam para proteger sua integridade física, seus modos de vida ou o próprio meio ambiente. Vale ressaltar que a flexibilização da legislação ambiental e a indiferença a denúncias deixa a sociedade civil impotente, sem alternativas de ação para intervir no desmatamento.

Debate sobre a Amazônia em Oxford

Os relatórios publicados pela Human Rights Watch e pelo Conselho Indigenista Missionário este ano, junto dos dados divulgados recentemente pelo Prodes, mostram uma tendência preocupante quanto à segurança das populações tradicionais na região Amazônica. Neste ano, deparamo-nos semanalmente com graves notícias a respeito de desmatamento, invasão de terras, ameaças e assassinatos de lideranças indígenas e de movimentos sociais, e ainda o tão comentado “dia do fogo”.

Vimos processos de demarcação de terras indígena serem parados (sem previsão de retomada); o enfraquecimento dos órgãos de fiscalização e proteção ambiental; a liberação de mais de 400 agrotóxicos para o uso na agricultura nacional; e o aumento nas diversas investidas de criminosos em terras indígenas e outros patrimônios da União, entre outros fatos polêmicos, muitos deles ligados ao discurso do presidente Jair Bolsonaro, como atestam reportagens dos principais veículos de imprensa e acadêmicos que acompanham o tema.

Levando em conta esse cenário, a Universidade de Oxford irá realizar o Colóquio Internacional “Amazônia: Violência Crescente e Tendências Preocupantes”, que trará importantes lideranças indígenas e de movimentos sociais para dialogarem com professores, artistas e pesquisadores dedicados aos problemas socioambientais da Região Amazônica entre os dias 31 de janeiro e 2 de fevereiro de 2020. O objetivo principal será debater legados do passado, questionar responsabilidades e avaliar os alarmantes índices de violência, desigualdade e insegurança alimentar.

O colóquio é parte de um amplo esforço para descolonizar práticas científicas por meio de um diálogo Norte-Sul que reconhece a importância de uma ética baseada na reciprocidade socioambiental. A edição de Oxford dá seguimento às discussões realizadas no Seminário Internacional de Ecologia Política e é parte das atividades da rede internacional de pesquisa AgroCultures, que espera fomentar a produção científica e cultural em razão do evento e estreitar os laços entre pensadores da Amazônia mundo afora.

O evento produzirá diversos resultados concretos, tais como publicações técnicas e científicas, denúncia da grave situação em que se encontram muitos grupos sociais devido ao crescente ataque a direitos básicos e bens comuns, e propostas para os governos nacionais da região para informar mudanças de políticas econômicas, sociais e ambientais.

 

Imagem em destaque – Comunidades tradicionais se preocupam com o número crescente de mortes relativas a conflitos territoriais nos estados amazônicos em 2019. Fonte: Diário da Amazônia.
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