O poeta na selva: aflito, mas vivo

Poetas se tornaram aves raras no mundo atual. Ainda mais numa capital de fronteira como Belém. E, sobretudo, produzindo na própria fronteira, como Altamira, a principal cidade sob influência da quarta maior hidroelétrica do mundo. Paulo Vieira é esse poeta, professor de literatura, observador da natureza e intérprete de uma poesia de vanguarda, que chega a maturidade com seu novo livro, Belembrada, que está sendo lançado agora.

Paulo Vieira nasceu em 1978, em São Miguel do Guamá, Pará, mudando-se para Belém em 1980, onde viveu até 2011. É Engenheiro Florestal e Professor de Literatura na UFPa, Campus Altamira. Publicou Infância Vegetal (IAP, 2004), Orquídeas Anarquistas (IAP, 2007), Livro para distração na tragédia (FCP, 2008), Livro para pescaria com linha de horizonte (Embrapa, 2009), Retruque / Retoque, Livro-CD (Vieiranembeira, 2010), Peso Vero (Vieiranembeira, 2011), Pablo no mundo das nuvens (FCP, 2017), Arte, erotismo, natureza e amizade: os diários de Max Martins (Intermeios, 2017).

Publicou poemas na revista Poesia Sempre da Fundação Biblioteca Nacional – RJ, na Revista de Estudos Avançados da USP (Dossiê Amazônia I) e na Revista Cult, entre outras impressas e digitais. Participa da coleção Roteiro da Poesia Brasileira – Volume Anos 2000, Ed. Global. Recebeu duas vezes o Prêmio de Literatura do Instituto de Artes do Pará (IAP). Também duas vezes o Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura. Recebeu ainda o prêmio de Livro Destaque no 4º Prêmio Literário Internacional da Casa de Cultura Mário Quintana e o Prêmio Bolsa Funarte de Criação Literária.

Paulo respondeu ao questionário que lhe enviei.

 

Como um poeta engenheiro-florestal vê Altamira de perto? Como as duas especialidades se conjugam?

Eu estive em Altamira pela primeira vez há cerca de dez anos, em uma expedição como pesquisador do Instituto de Educação do Brasil (IEB), enquanto visitava áreas de floresta em municípios ao longo das rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá. Lembro que esse era um trabalho tenso, pois tratava de investigar os tipos de contratos estabelecidos entre madeireiros ilegais e famílias de agricultores. Em Altamira, depois de encarar o esverdeado rio Xingu, visitamos a UFPa, entrevistando alguns professores e também famílias de agricultores em algumas viciais.

O curioso é que embora eu soubesse que aquele era meu último grande trabalho como engenheiro florestal – ideia a qual eu já começava a me habituar, pois era uma opção pessoal – por outro lado, algo que eu sequer suspeitava é que Altamira e a UFPa se tornariam a minha casa tempos depois. Assim, alguns meses após essa extenuante e quase interminável viagem eu deixaria a profissão de engenheiro florestal de lado para embarcar numa outra expedição – a de um doutoramento em literatura brasileira na Universidade de São Paulo.

Eu estava cansado da vida de florestal. Já havia trabalhado por muitos anos em frentes que buscavam construir e consolidar a quase utopia do manejo florestal comunitário e familiar. Estive no sul do Amazonas, naveguei pelo rio Madeira, andei por Manicoré, Humaitá, Apuí, Boca do Acre, Lábrea. Também fiz trabalhos em Rondônia, na Resex Cuniã. No lado oriental da Amazônia brasileira, já havia atuado em diferentes projetos e instituições, percorrendo municípios do nordeste paraense. E tantas outras cidades e rios de Santarém a Belém. Mas àquela altura, por muitas razões que aqui não cabe citar, eu dei o fora da floresta.

Gira-mundo, e veja onde vim parar, na terra do meio, exatamente onde, ainda mais na atualidade, a questão socioambiental explode a cada dia. Sobre como vejo Altamira? Eu fico com a definição de Eliane Brum, a outra jornalista brasileira que, como você, se concentra em denunciar as agressões contra a Amazônia. Ela nos conta, no recente artigo, A notícia é esta: o Xingu vai morrer, que Altamira é o epicentro dos conflitos amazônicos, redescoberta periodicamente para, em seguida, ser esquecida.

Já quanto à segunda pergunta, minha resposta é a descrição da vida que levo como professor de literatura em Altamira no curso de Educação do Campo, na Faculdade de Etnodiversidade da UFPA. Aqui dou aulas sobre poesia, prosa e arte para um público muito específico, filhos de agricultores, de extrativistas, ribeirinhos, porque o curso é inteiramente dedicado a eles.

Quer dizer, se antes eu trabalhava principalmente com os agricultores, hoje trabalho mormente com os filhos dos agricultores de Altamira, Brasil Novo, Uruará, Medicilândia, Placas, Anapu, Gurupá, Porto de Moz, Souzel. Se antes falava sobre a importância da floresta em pé. Hoje, também.

Agora, penso que se tivesse me tornado professor de uma Faculdade de Letras aqui na capital da transamazônica, seria, talvez, um tédio, considerando o florestal que sou. E, por outro lado, se me tornasse professor de uma Faculdade de Engenharia Florestal, aí eu nem seria eu mesmo, porque nunca quis atuar nessas frentes cheias das Stihl e dos Caterpillar. Tudo posto, eu saí da floresta, mas a floresta me puxou de volta.

 

A sua poesia tem raízes? Quais? E os seus enlaces?

Desde cedo tive muita disposição e curiosidade crítica pra pensar poesia. Nessa acepção mesmo, das raízes, dos enlaces, isso tudo sempre me interessou e animou, o que hoje em dia me ajuda a ser professor de literatura. Portanto, em certo sentido, sempre fui um poeta-crítico de literatura mesmo antes de escrever um livro de crítica literária como é o meu Arte, erotismo, natureza e amizade: os diários de Max Martins (Intermeios, 2017).

Me lembro que, no começo, eu lia Baudelaire, Drummond, Rimbaud, João Cabral, Rilke e divagava (para além das belezas e das desgraças brotando daqueles versos) “de onde vem isso? Qual a origem? Quantos mistérios…”. Muito bem, mas se me entretenho buscando refletir sobre a minha própria poesia não consigo ir muito longe, porque me vem o óbvio (ou o supostamente óbvio).

Por outro lado, não quero deixar você sem resposta… A morte sempre foi minha principal companheira de viagem poética, um flerte muito sério desde cedo, até bastante exasperador, em meio a uma natureza não situada, não declaradamente amazônica, mas inelutavelmente desse lugar. No fundo, talvez, entre contemplação (rios, árvores, mar, noite, solidão, sóis, silêncios, tardes) e buscas, uma desmedida vontade de viver é o que se deixa ver num olhar mais detido sobre esses versos, a boa e velha contradição da poesia. Mas aí já estou me apropriando um pouco das opiniões de certos críticos que leram meus livros anteriores.

Creio que, em muitos aspectos, Belembrada, editado pela Intermeios, graças à sensibilidade do poeta e editor Joaquim Antônio Pereira, é um livro bastante diferente dos demais que já publiquei. É o livro sobre o qual me debrucei mais tempo entre o escrever e o reescrever, o substituir, o moldar, o remoldar e o resubstituir para de novo reescrever. Tentei levar ao grau máximo a autocrítica na construção e reconstrução dos poemas. Deixei pra trás as peripécias exibicionistas formais, nem um pouco condenáveis (não condenemos a juventude), e me agarrei ainda mais ao discurso, sem, no entanto – viva os paradoxos! –, abandonar de todo meu apego ao caligrama, ao verso mais ou menos desenhado, ao vício da forma.

Comecei a escrever esse livro no ano que me despedi de Belém quase de vez, em 2010, pouco antes de ir viver em São Paulo, depois, em 2016, estive de volta a Belém, por pouco tempo, e desde o final daquele ano vivo em Altamira, onde a parte final do livro, espécie de bônus, Altamiracles, foi escrita. Como se vê, os poemas foram tramados em diferentes lugares, porque a última década foi para mim uma temporada de viagens, inclusive, no livro, registrei, em certos poemas, os lugares onde foram escritos. Assim, Belembrada é um livro quase totalmente escrito fora de Belém.

 

Para você, qual o significado de ter nascido na Amazônia?

Na foto da capa de Belembrada, feita num fim de tarde pelo menino Pablo, se pode vislumbrar parte de uma embarcação naufragada. É a minha metáfora de Belém, onde cresci, engolida pelo violentado rio Xingu, num enlace impossível se não fosse onírico, mas sem colorido, porque há muito de nossa grave e dura realidade nessa fotografia. Aqui estou, longe e perto de casa. Longe de casa e em casa, ao mesmo tempo, pois a Amazônia também é, entre tantos símbolos, esse sentimento de distância com gosto vegetal.

Um poeta que nasceu, cresceu e escreveu na Amazônia pode sentir, na leitura, de modo muito mais íntimo, familiar, por exemplo, os versos de um poema como Batuque de Bruno de Menezes do que os versos de Essa negra Fulô, de Jorge de Lima. É, naturalmente, um sentir diferente que por vezes nos abisma e pode aparece na criação literária. Embora não seja um imperativo a apropriação dos elementos da natureza e da cultura do lugar, como nos ensinava Benedito Nunes, à consciência artística vale mais o ser na Amazônia e menos o ser da Amazônia. Nessa direção, duas obras contemporâneas, uma em prosa e outra em poesia, ilustram bem esse viver/nascer na Amazônia mais do que da Amazônia, o alucinante romance Pssica, de Edyr Augusto, e o lirismo poderoso do belo livro de poemas, Há horas, de Rosângela Darwich.

 

Qual a sua avaliação da hidrelétrica de Belo Monte?

Entendi, primeiro lendo o Jornal Pessoal, e agora vivendo em Altamira, que Belo Monte foi um dos grandes erros dos governos Lula-Dilma. Um erro que caiu no colo do atual governo, o governo do ódio. Ódio a tudo, ódio à natureza, ódio à cultura, ódio ao diferente. Os moradores de Altamira, principalmente os dos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUC), vivem no limite e a coisa só tem piorado.

Quanto à distribuição de água e ao tratamento de esgoto, por exemplo, que são extremamente problemáticos nos RUC Laranjeiras, Jatobá, Água Azul e nos demais, a Prefeitura e a Norte Energia já falam em privatizar o serviço. E quem vai pagar a conta? É o que o Movimento do Atingidos por Barragens (MAB) e outras organização sociais denunciaram recentemente num debate na UFPa.

De um lado temos Altamira que se tornou uma espécie de garimpo em termos de superfaturamento de preços para quem paga aluguel, energia elétrica (talvez a mais cara do planeta!), vai ao supermercado, precisa de médico, escola, etc. De outro lado, os impactos ambientais devastadores sobre gigantescas áreas do rio Xingu, afetando indígenas, ribeirinhos, extrativistas, flora e fauna de forma irreversível. Além disso, mais do mesmo, a violência na região se expandiu enormemente.

 

O que as queimadas representam para a Amazônia?

Eu estava na Resex Rio Iriri quando começou aquela onda de incêndios para além das já conhecidas ondas de incêndios na Amazônia. Por isso não fiquei sabendo em tempo real. Quando cheguei a Altamira, semanas depois, o noticiário brasileiro já se ocupava de outras barbaridades relacionadas ao governo do ódio. Mas o noticiário pelo mundo ainda estava em polvorosa. Essas queimadas são um troféu da ignorância, uma violência a mais no tempo da barbárie brasileira. Quem diria, no Brasil nunca foram tão atuais os livros 1984, de George Orwell, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, curiosamente, ambos relidos por mim recentemente, numa rede pênsil, no terreiro da comunidade São Francisco, no interior da Resex Iriri, onde a única maneira de se comunicar com o mundo exterior é por meio de um rádio amador, sem internet, celular ou noticiários para estragar a leitura.

 

Como você situa Max Martins e a sua obra?

Max é um dos poetas brasileiros mais importantes do século XX, o que significa dizer da literatura brasileira desde sua origem. Afinal, são apenas dois séculos os mais relevantes em termos de poesia nossa, à parte um Gregório de Mattos, claro. A originalidade inimitável da poesia de Max (e quantos tentaram e tentam imitá-lo) reside especialmente na relação erótica dela com a natureza transfigurada em mulher, Eros e Gaia, numa perversão violenta, medida, alinhada a certos preceitos que ele assimilou da cultura oriental e transpôs para sua poesia.

 

Qual a repercussão e o efeito do trabalho que você fez sobre o poeta?

Eu não sei responder a essa pergunta. Lancei o livro sobre ele, Arte, erotismo, natureza e amizade: os diários de Max Martins, em Belém, em 2018, e revi tanta gente querida, celebramos a poesia e a vida do poeta de Caminhos de Marahu, foi uma noite inesquecível, mas depois disso não participei de mais nada sobre o Max. Embora saibamos que sempre esteve muito bem cuidado pelos amigos e amantes da poesia dele, o que é uma felicidade à memória do poeta, além de mobilizar a obra, como se viu na reedição da poesia completa e nas leituras críticas importantes que recebeu nos últimos anos.

Agora, se você me perguntar qual o efeito e o impacto sobre mim dessa pesquisa que durou cerca de cinco anos, sobre um poeta que só conheci de fato na leitura de seus quase 50 diários inéditos, na investigação detida da poesia, das pinturas, e no contato com os familiares e os amigos dele, aí, sim, eu saberei responder.

Por conta dessa pesquisa, só para ficar em dois exemplos marcantes, pude conhecer e estudar a obra inédita do paraense Jurandyr Bezerra, outro poeta sobre quem ainda há muito a dizer, e me tornei amigo de Jim Bogan, o poeta e cineasta norte-americano que desde a década de 1980 passou a frequentar e a assimilar a vida amazônica na arte. Jim inclusive já me visitou mais de uma vez em Altamira onde celebramos os encontros com boas conversas, poesia e Cerpinha (a eterna professora de língua portuguesa do diretor do clássico curta metragem Variações da rede). O livro Belembrada é dedicado a Jim Bogan.

 

Originalmente publicado no Jornal Pessoal nº 672, outubro/2019, 1ª e 2ª Quinzena
Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. É o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014.
Imagem em destaque – Como o menino Pablo vê o Xingu. Foto: Divulgação.
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