Cartas para Manaus

Hoje Manaus completa 350 anos desde sua fundação. Ao longo de sua história, passou por momentos de grande prosperidade e foi parte vital nos planos de integração Sul-Norte executados pelo governo brasileiro no século XX.

Para comemorar a data, a Amazônia Latitude convidou professores, escritores e acadêmicos manauaras (ou que tiveram relações próximas com a cidade), para escrever cartas de aniversário para a “Mãe dos Deuses”, felicitando-a e refletindo sobre sua história.

 

Manaus, 24 de outubro de 2019.

Aos meus 2,182,763 conterrâneos,

Escrevo esta carta à todas e a todos os cidadãos manauaras para compartilharmos o pouco que temos a celebrar nesta data em que nossa amada cidade de Manaus comemora 350 anos de sua fundação. Quem poderia imaginar que chegaríamos ao século XXI como a 7ª mais populosa e rica cidade do país? Logo Manaus, cidade cabocla, no coração da Amazônia, região considerada por muitos brasileiros (muitos, mesmo), como sendo “uma terra sem gente”. No entanto, quero antes me solidarizar com a desdita dos 7% de seus habitantes, as famílias de 130 mil concidadãos que, apesar de viverem na cidade com o 7º maior PIB do país, sobrevivem com rendas abaixo da linha de extrema pobreza.

Hoje, peço licença aos mais de 4 mil manauaras indígenas, descendentes de seus habitantes originais, para nesta data compartilhar com eles o orgulho de ter nascido nesta terra que ainda mantém 92% de suas florestas nativas. Porém, quero fazer um alerta: a fragmentação dessas florestas está diminuindo os seus valores para a conservação da biodiversidade. O isolamento dessas áreas decorre das barreiras criadas pela expansão e adensamento da matriz de ocupação do solo. O caso mais alarmante é o isolamento da Reserva Florestal Adolpho Ducke, área de 10.000 ha, administrada pelo INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) e localizada na fronteira nordeste da expansão da área urbana de nossa cidade.

Nossa cidade cresceu e gerou seu próprio clima, pois dentro das áreas urbanas densamente ocupadas, o clima é diferente comparado com as áreas de florestas. Nossa cidade é uma ilha de calor, que registra temperaturas médias 10 o C mais quentes que seu entorno florestado, nos meses de agosto e setembro. Com o passar de 3,5 séculos, é contraditório que o povo e os governos de uma cidade da Floresta Amazônica não demonstrem apreço pelas árvores. Segundo o IBGE, os dados do Censo de 2010, indicavam que apenas 25,1 % dos 451.437 domicílios permanente em Manaus possuíam arborização em seu entorna. Isso deixaria Manaus na penúltima posição no ranking dos 15 municípios brasileiros com mais de um milhão de habitantes.

Podemos até sentir orgulho de uma cidade com ares de metrópole, mas com isso vem o ônus. Não estamos livres da perda de qualidade do ar. Uma das principais fontes dessa poluição é a queima de combustíveis fósseis pela frota de veículos que circula na cidade. Em 2012, a frota de Manaus atingiu a marca de 581.479 veículos, o que corresponde a uma taxa de motorização de 3,12 habitantes por veículo. Não sabemos a qualidade do ar que respiramos, pois inexiste uma rede de monitoramento da qualidade do ar em Manaus. Não bastasse isso, os deslocamentos em Manaus, hoje, levam em média 67% a mais de tempo nos horários de pico em comparação com aquelas em situação de tráfego livre. Parabéns, Manaus! Em termos de congestionamento do país somos a 6ª colocada no ranking das 10 maiores capitais brasileiras.

Durante a estação seca, principalmente, observa-se a diminuição da qualidade do ar pelo acúmulo de matéria particulada no ar oriunda principalmente da queima da biomassa vegetal, fenômeno conhecido como queimadas. No ano de seu 350º aniversário, o mundo se depara como nunca antes com o aumento da incidência das queimadas intencionais que provocam incêndios florestais como atos de desobediência civil. A Natureza foi agredida, violada.

Não quero me despedir sem antes lhes falar do sentimento de topofilia que nutro por nossa cidade, o que me faz desejar que a nossa cidade ainda se torne o lugar de nossos sonhos, nos séculos que virão. Para lhes dar um gostinho do que estou falando, fiquem sabendo que para comemorar o aniversário da Manaus, eu jantei uma caldeirada de tucunaré, no Canto da Peixada, como molho de tucupi, pimenta murupi e farinha do Uariní.

Henrique dos Santos Pereira
Professor titular da Faculdade de Ciências Agrárias e do Centro de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde coordena o programa de pós-graduação em ciências do ambiente e sustentabilidade na Amazônia (www.ppgcasa.ufam.edu.br), professor e pesquisador conveniado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. 

 

Manaos

La primera vez que escuché el nombre de Manaos, hace muchos años, como una ciudad en medio de la selva , aislada de todo, quise entender “Manoa”. Entonces surgieron en mi imaginación las torres, los palacios, las cúpulas de una ciudad encantada de leyendas improbables, contadas por narradores sentados en las plazas que hablaban de ataques de animales de ojos tenebrosos, de serpientes que hipnotizan a quien se atreve a mirar sus ojos brillantes y los hacen girar y girar en torno a ellas hasta el agotamiento y la muerte .Pensé en personajes ilusorios, en mujeres fuertes para enfrentar el destino y débiles para experimentar el amor. En buscadores de tesoros que terminaban sabios al darse cuenta que la gran fortuna no está en las piedras preciosas, ni en las joyas cubiertas de oro, sino en la belleza sobria de la piedra de río, cuya belleza se enaltece cuando es cubierta por el agua que va inscribiendo en sus formas la historia de sus recorridos.

Luego, ya mayor, leí sobre Manaos y su belleza. Vi fotografías del gran Teatro, recorrí en los escritos sus rincones y aprecié sus maderas. Entonces Manoa empezó a ser Manaos y entré en el universo de aquello que había sido necesario para que hoy lo admiráramos como lo hacemos. Pude ver debajo de las maderas pulidas y ensambladas por arquitectos del refinamiento, al cauchero que extraía la riqueza en medio de la selva a kilómetros de allí a través del río. Lo vi en su cansancio, en la virulencia del calor sobre su piel, en las cicatrices de su tormento, en la mirada perdida del que se siente lejos de su tierra, del acento de su gente, de la calidez de su lar. Lo vi todo. Y cuando llegué a Manaos por primera vez vi también los palacios, pero no como los había imaginado, vi en el encanto majestuoso de las construcciones aún en pie el rostro de la soberbia y el despilfarro, la voluntad de emblanquecer, la de crearse una historia de estirpe , que anule el origen incestuoso de quien proviene del látigo y el dolor.

Hoy llego a Manaos y respiro aire de caboclo, de indio, de quilombo, de herencia de cabanos, respiro olor a pez frito, a guayaba, tucurí. El acaí me colma la vida y escucho los cantos de Nossa Senhora de Nazaré, las oraciones de Nossa Senhora Aparecida.Todo es gozo. Pero veo de lejos también las llamas que tragan la selva, arrasando el espacio verde para futuros cultivos que produzcan dinero, circulan los vehículos de las empresas mineras, flotan los maderos por los ríos en navegación oscura. Y Manaos es todo esto, en una mezcla que me deja atónita, que a ratos es belleza y a ratos angustia. Quien sabe, me surge la secreta fantasía, si algún día podamos volver a pensar a Manaos como si fuese Manoa recién reimaginada.

Ana Pizarro
Pesquisadora em Estudos Culturais da América Latina. É doutorada pela Universidade de Paris e tem ensinado na Universidades de Santiago do Chile, Universidade de Concepción, Chile, Universidades de Paris e Buenos Aires. Também tem sido professora convidado em diferentes universidades da América Latina, Estados Unidos, Canadá e Europa. Autora de inúmeras publicações,  onde se destacam a Amazonia: o rio tem vozes e a América Latina: palavra, literatura e cultura.

 

Maná us

Fincada no meio da floresta amazônica, Manaus: ilha de concreto, ao qual o sentido de ilha é salvação e isolamento, o concreto é a parte emotiva de nossas experiências de viver na cidade, um amorfo de verde e cinza. Um cinza das alvenarias, construções e aparelhos que denotam urbanidade; cinza convidativo, uma salvação da querência de muitos originários do verde Natureza, de um verde que guarda memórias de um outrora ainda em lapidação e esquecimento. Um vago mundo sintonizado pelas frequências dos sinais de telecomunicações, pelas selfies nas mídias sociais ou por qualquer lugar em que a estrada aquática ou de asfalto pode acomodar o senso de origem e acolhimento.

Em seu aniversário de 350 anos, o que comemorar? Como um estranho estrangeiro que sou, considero os problemas sociais como partes elementares da vida e da formação humana em grupo e privada, sendo o conflito uma massa amorfa de desejos, realizações, frustrações, querências, esquivas, alegrias, tristezas, ganhos e perdas, onde a Sociedade debita sua força criativa. Pulsões de vida e de morte jogam carteado e bebericam brandy de suor e sangue da população que investe seus anseios de viver, de ser normal, integrado, solidário e afagado.
Manaus é a história de um, logo a trajetória de todos, a capacidade de criar simultaneidades em seus espaços verde-cinza transforma-a em uma grande cidade pequena: “Maná us”. Um “Maná” produzido por algo divino sem a cifra e mando de um intermediário terreno, por isso seja história de um, ela é de todos que partilham essa salvação e/ou aprisionamento, administrados pela ditadura da rotina, pelo cotidiano, por aquilo que sabe o que seja, mas não possui oportunidade de obter um nome que pudesse servir de chamado, memória, esquecimento ou querência.

Nos 350 anos dessa que me abrigou e nem ao menos pediu, mas quisera que fosse, pelo olhar de um estranho estrangeiro acalentado por uma Gaia a me proteger de Chronos lembro que o preço da liberdade é a eterna vigilância, qual Thomas Jefferson. Dai nesse aniversário a liberdade e a independência estão sob forte ataque de tiranos barés, reprodutores de uma velha e desbotada guerra ideológica, devido alianças veladas com o Estado, formadora de uma “chapa-branca” entre formas de tirania e pseudoliberdades em que a finalidade é justificar o “direito” do Estado sob as populações.

A expansão dessa “chapa branca” para setores internos da Sociedade, muito deles até pouco tempo desconhecidos conseguem se promover por este “direito”, fazendo com que populações menos preparadas para essas questões se tornem presas fáceis de uma opressão moral e libertária, cuja função é especializar as prensas da opressão adquiridas muitas vezes na idade infantil. Por isso, sob a tirania do cotidiano, Manaus: “Maná us” ensina que o preço da liberdade é a eterna vigilância, sob o aspecto pragmático de que a “Esperança” e a “Obediência” são formas sociais que viabilizam a tirania contra todos e diminui as realizações sociais dos indivíduos, como o bem-estar e sua felicidade social.

Josué Vieira
Professor de Língua Portuguesa da Secretaria Estadual de Educaçao do Amazonas (SEDUC-AM), e no ensino superior nos cursos de Letras e História da Universidade Estadual do Amazonas (UEA).  Como pesquisador, desenvolve pesquisas e consultoria em projetos na área de Sociologia e Antropologia, mais especificamente quanto ao tratamento da matéria Crime, Criminalidade, Vítima e Vitimização.

 

Manaus, 350 anos

Cheguei em Manaus em 2009 como um migrante da pesquisa. À época estava fazendo mestrado e investigava as idas e vindas de trabalhadores cearenses que haviam passado pela cidade no século XIX. Minha cabeça estava cheia dos papéis velhos, fragmentos do passado, que descreviam uma acanhada urbe, destino obrigatório de regatões e toda sorte de populações indígenas que dominavam as paisagens entrecortadas de igarapés. A cidade que trazia na cabeça era o destino de migrantes pobres que a partir da segunda metade do século XIX passaram a chegar aos montes, tendo a então Cidade da Barra do Rio Negro como porta de entrada dos Altos Rios, onde estavam os cobiçados seringais do Purus, do Madeira e do Juruá.

Saindo das expectativas do historiador e entrando na experiência prática da cidade, não encontrei um porto de lenha na floresta. Afinal de contas, Manaus já era há tempos muito maior que Liverpool. Trata-se de uma caótica cidade industrial que se alonga na última braçada do rio Negro, que teimosamente vai se misturando com o Solimões e se despede dos manauaras engrossando as águas do Amazonas. Milhões de pessoas vivem num tecido urbano oriundo de uma floresta devassada, que conforma a maior metrópole do vale amazônico. Em Manaus saltam temporalidades sobrepostas, com sua modernidade envidraçada e climatizada, prédios futuristas, avenidas largas que engolem a paisagem, e que a todo momento são desafiadas pelas palafitas e renitentes populações ribeirinhas.

Ao encontrar essa Manaus, tão diferente da que eu estudava nos documentos, comecei a fazer minhas primeiras explorações. Morei inicialmente no Boulevard, e da minha janela via ao longe a cúpula do Teatro Amazonas, a famosa ópera inaugurada nos tempos iniciais da República. Meu destino diário era o Arquivo Público do Estado e o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). Todos os dias meu expediente iniciava com a caminhada até o arquivo, que passava pela Rua Joaquim Nabuco, e depois seguia pela Av. Getúlio Vargas, virando na 10 de julho rumo ao Largo de São Sebastião. Depois de quase 30 minutos de andança, parava no “largo” para tomar fôlego, sentando nos bancos da praça e observando a pressa dos trabalhadores do comércio. Retomava o passo seguindo no contrafluxo da Av. Eduardo Ribeiro até chegar na “sete” e achar a praça D. Pedro II onde está sediado o arquivo. Nesses itinerários conheci amigos para uma vida inteira, que formam outra faceta de Manaus, cidade calorosa não só na temperatura.

O centro de Manaus guardava e guarda traços da cidade velha que trazia nas minhas memórias e leituras. O porto, ou melhor, o roadway, flutua nas águas rionegrinas camuflando a sobreposição de camadas de tempo e de sentidos presentes no local. Os imensos navios de cruzeiro que ancoram na área, cheios de “quadrilhas” de turistas e suas demandas por exotismo, compõem parte da paisagem, cuja história e contrastantes insistem em sobreviver nas ruas do centro – seja em prédios antigos, seja nas multidões de atarefados camelôs, vendedores ambulantes, carregadores, moradores de rua, homens, mulheres e crianças de marcadas ascendências indígenas. Naquela mesma imediação, em 1867, o viajante Albert Frisch da Baviera fotografou barqueiros bolivianos (da nação Mojo) adventícios do rio Madeira, instalados em Manaus em busca de trabalho à exemplo de outros migrantes que chegavam na então florescente povoação portuária. Ao lado dos índios, escravos fugidos do Pará se passavam por carregadores e tripulantes de canoas de regatão, muito visadas pela polícia defensora dos direitos senhoriais. Nesse mesmo palco, em tempos ainda mais antigos, o valente Ajuricaba, líder da nação Manao, se encantara nas águas do rio Negro.

Em seus 350 anos, Manaus foi sempre uma encruzilhada de povos e culturas, Violentamente adensadas no tecido urbano. A povoação acanhada e ladeada pela antiga fortificação portuguesa tornou-se uma grande urbe, atravessada por problemas sociais. A aniversariante capital do Amazonas convive em estado de conflito permanente com a floresta, aterrando igarapés, cada vez mais escassos e poluídos, que servem de refúgio e morada para os mais pobres – muitos dos quais migrantes e operários.

Inadvertidamente, as matas, os rios, os animais, e outros “motivos” edênicos regozijam nas propagandas e nas brincadeiras “folclóricas”. A floresta é bonita no cartaz, as sociedades indígenas são belas nas danças de “pajé” dos festivais. Como já disse o professor Davi Avelino Leal, da UFAM, na Manaus do concreto opera-se uma espécie de mito do Narciso invertido, pois o passado celebrado oficialmente é o que reflete a faceta europeia de uma efêmera Belle Époque – negando-se o enraizamento ameríndio da urbe. Hoje, em tempos de ofensivas agressivas contra floresta, com ataques cada vez mais cruéis ao patrimônio social, cultural e de biodiversidade da Amazônia, talvez seja necessário um levante popular, uma tomada de consciência daqueles e daquelas que conseguem enxergar para além da ilusão do fausto. Parabéns aos manauaras que resistem e lutam por uma cidade menos desigual, que vislumbram um espaço urbano atento a sua cultura e cioso em enfrentar seus problemas sociais.

Antonio Alexandre Isidio Cardoso
Professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), colegiado de Ciências Humanas/História, Campus Codó. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), com estágio de pesquisa na New York University (NYU). Foi professor substituto do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde continua como colaborador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI). Tem desenvolvido pesquisas no âmbito da História Social da Amazônia, com ênfase em estudos sobre frentes de expansão econômica, problemáticas de fronteira e migrações internas no século XIX.

 

350 anos de muitas cidades em uma só, Manaus.

Devemos celebrar a história de uma metrópole encravada nas entranhas da Amazônia. Jamais esqueçamos de sua gênese. A Manaus forjada pelo processo de ocupação colonial que invisibilizou vozes, sujeitou à subalternidade seus filhos, e em detrimento a um projeto de modernidade “civilizou” mentes e corpos.

Esta Paris dos trópicos – e que “nunca será Liverpool” – expressa nos monumentos, ruas e praças sua estética terceiro-mundista, que revela o sangue e a exploração da força de trabalho pelo Capital na Amazônia. Celebremos as transformações de sua paisagem urbana forjada no asfalto, concreto e no preconceito que renega tudo o que é natureza em detrimento da civilização.

Devemos comemorar a morte de seus igarapés, o deslocamento compulsório dos povos que viveram em suas margens procurando abrigo e a esperança perdida na ilusão da industrialização econômica, e que hoje povoam as periferias planejadas pelas políticas governamentais?

Celebremos o direito à cidade, ainda que marcado pela exclusão e o esquecimento das histórias que jamais foram contadas, histórias de vida que se perderam no espaço urbano de uma capital que produz o Capital, e que aqui não fica.

A Manaus que também é caos – Manacaos – o caos ordenado pela vida cotidiana e produzido por suas múltiplas estéticas e identidades impressas no rosto indígena, na pele morena, nos cheiros, sabores e cores que nos permitem refletir, num momento de leseira, o que nos faz amazônidas.

Comemoremos a cidade que a todos acolhe, migrantes e imigrantes, tal qual um grande, caloroso e sofrido coração de Mãe, porque seu nome é Manaus, a Mãe dos Deuses, forjada no mormaço dos corpos suados que todos os dias enfrentam as adversidades da violência, da exclusão e da dor com um sorriso no rosto e lágrimas nos olhos.

A cidade que tudo tem, mas acabou! Deve comemorar aquilo que revela suas ruas, palafitas e invasões, a esperança e a resistência dos povos amazônicos renegados ao signo do desenvolvimento, mas que persistem na produção de suas existências, na luta e nos processos de mobilização política, pelo direito a cidadania, ao direito de viver, de ser lembrado e jamais esquecer que aqui é um mundo diverso que nos habita, nos consome e nos faz sentir a vida vivida na pluralidade expressa em seu nome, Manaus.

Pedro Rapozo
Professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), além de ser Coordenador do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM vinculado ao CNPq.

 

Manaus, por quê não mais Paris?

Lembra-te de quando o poeta praguejou que um porto de lenha jamais chegaria a ser
Liverpool?
Pois é…. Dizem que o tempo é generoso com alguns.
Outros dizem que o tempo é a melhor resposta. E tu provas isso!
O casal Agassiz achou-te estranha, com um povo de tez acanhada, porém com a
vocação que sinalizava para seres grande, quem sabe até mesmo bem maior que a tão
afamada Liverpool e brilhar no meio da maior floresta do mundo.
Paul Marcoy viu na tua aparência de jovem em formosura todas as circunstâncias que te
reservariam um futuro de grandeza, apesar do aparente abandono, das epidemias, da
distância que te separava das outras cidades, inclusive da tua irmã mais velha Belém.
Mário de Andrade estranhou a tua aparência artificial. Descreveu-te como uma moça
que se embelezou com a pujança da borracha, a mesma que te levou a destruir teus
igarapés para transformar em largas avenidas, ruas de cimento e asfalto.
Nos teus áureos anos de riqueza, ganhaste o Teatro Amazonas, que sorri elegante para o
Palácio da Justiça. Deixaste ser cortada por ruas de asfalto, por onde antes deslizavam
canoas com suas velas, e pescadores com suas tarrafas e malhadeiras. Onde segredavam
as lavadeiras a bater roupas das madames. Onde meninos e meninas mergulhavam sem
medo de se encantar ou se afogar.
Ganhaste pujança, Manaus. Perdeste teu siso. Encapaste teu riso.
Deixaste envolver pelos fios da modernidade. Abandonaste os bondes da lentidão e do
aparente atraso, ganhaste a velocidade das rodas traiçoeiras que te poluem e tornam-te
mal-humorada, meio atormentada.
Quiseste ser moderna com a mesma pressa com que é lançada a flecha dos teus povos
que te fizeram o que és.
Não te vi a menina do Mindu. Não te vi a cidade que foi dita Paris dos Trópicos.
Não te achei parecida com a tal Liverpool.
Quando te visitei pela primeira vez, achei-te estranha. Na licença ao poeta, não vi o teu
rosto. Cidade estranha, murmurei. Cidade de costas para o rio. Meio amuada,
desajeitada. Cidade escondida!
Mas, se de longe escondes teu riso, de perto abraça quem te escolhe.
És Manaus, mas tens a cara de todo o Brasil: tens todas as cores, todos os ritmos, todas
as crenças, todos os mitos, dos ritos e ditos.
Abusas do tucumã, tens a fama de terra do jaraqui, mas é a toada azul e vermelha que te
domina e te envolve de junho a junho.
Desejaste a modernidade que vem com todos os males deste tempo que tudo transforma
e tudo desmancha no ar.
Abriste mão de ser cidade pacata para ser metrópole que pouco dorme, que abriga, que move.
Mas também matas. Perdeste teu sossego. Trocaste a simplicidade pela vaidade!
Ganhaste a Arena, a Ponta Negra, a Ponte sobre o rio.
Ergueste luxuosos prédios, cavaste viadutos. Mas aterraste teus igarapés.
Perdeste teu clima.
Esqueceste teu laço com teu berço, o Forte do São José da Barra do Rio Negro.
Destruíste teu Porto de Lenha
Não te chamam mais de Paris
És agora a metrópole da Amazônia,
A cidade nobre dos barés… MANAUS!

Joaquim Onésimo Ferreira Barbosa
Professor e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação Sociedade – PPGSCA e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.

 

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