O resgate da tradição Huni Kuin

Coletivo de artistas indígenas preserva a cultura kaxinawá e vende telas para comprar mata virgem

Em uma faixa territorial que vai do leste peruano à fronteira com o Acre habita a etnia Kaxinawá. Sua história é marcada por violentos conflitos com seringueiros e madeireiros ao longo do século XX, quando a etnia se fragmentou e migrou para diversos pontos do Alto Juruás e Purus, assim como para o Vale do Javari – sendo que grande parte deles permaneceu em território brasileiro.

Os Kaxinawá se autodenominam Huni Kuin (“homens verdadeiros”), pois na língua Pano, idioma original da etnia, Kaxinawá pode significar “povo morcego”, “povo canibal” ou “povo que caminha à noite”, adjetivos considerados ofensivos pelos próprios Kaxinawás.

Ao longo do século XX, os Huni Kuin se viram envolvidos nos mais diversos conflitos advindos de seu contato com a sociedade ocidental – a exemplo disso podemos citar a morte de 80% da população por doenças trazidas durante a visita de antropólogos alemães em 1951.

Já no final do milênio, em 1992, os Huni Kuin abriram trilhas no perímetro onde moram para melhor explorar o látex. Essa iniciativa fez a produção prosperar, o que levou a um crescimento da etnia para 1.085 indivíduos (em comparação com as cerca de 500 pessoas encontrados pelos alemães na década de 1950).

No entanto, a aproximação dos Huni Kuin com a cultura ocidental fez com que muito de sua tradição fosse esquecida por seus membros – em casos como este, podemos interpretar “cultura ocidental” como política, economia, religião e tradição. Como mostra a história, essa bagagem cultural trazida pelo colonizador foi usada como motor do etnocídio ao longo dos séculos.

Frente a isso, o cacique da aldeia acreana de Chico Curumim, Ibã Sales, aprendeu toda a tradição Huni Kuin através de seu pai, e agora transmite o conhecimento ancestral para as gerações mais novas para preservar a cultura, hábitos e tradições de seu povo.

Ibã, além de cacique, é professor, educador, artista plástico e ativista. É mestre pela Universidade Federal do Acre (UFAC) e doutorando na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), onde leciona no curso de antropologia.

Em 2013, Ibã fundou o Movimento de Artistas Huni Kuin (MAHKU), coletivo de 12 artistas plásticos da etnia e instrumento para um plano ousado: usar o dinheiro da venda das obras de arte para comprar mata virgem e protegê–la do desmatamento.

 

1– Os Huni Kuin (Kaxinawá) habitam a fronteira brasileira com o Peru na Amazônia Ocidental e constituem a maior população indígena do Acre, com aproximadamente 7,535 indivíduos contabilizados no Censo IBGE de 2010. As aldeias Kaxinawá no Peru se encontram no rio Purus e Curanja; as aldeias em território brasileiro se espalham pelos rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira, Humaitá e Purus. Há grupos Kaxinawá que migraram do rio Envira, onde estavam engajados no trabalho das seringueiras, muitos dos quais se estabeleceram na aldeia Fronteira e em vários núcleos próximos. Foto: Bárbara Veiga.

 

2 – Os Huni Kuin se incluem na área cultural Juruá – Purus, zona de floresta com predominância de terras baixas. Caracterizam–se por uma subdivisão de dois grupos linguísticos (Aranque e Pano), com o histórico em comum de sobrevivência à atividade extrativista da borracha e do caucho desde 1860. A migração de nordestinos, bolivianos e peruanos, somada a ataques e massacres contra a população Kaxinawá, resultou no engajamento compulsório da etnia no extrativismo de látex e caucho. Foto: Bárbara Veiga.

 

3 – A divisão entre os sexos é uma das bases da sociedade Kaxinawá e marca mais a vida cotidiana do que qualquer outra categorização. As crianças, assim que aprendem a andar sozinhas, são encaminhadas às atividades consideradas próximas de seu gênero. O grupo está junto aos idosos em papéis considerados de menor compromisso, já que as tarefas produtivas consideradas mais importantes são feitas por homens e mulheres na idade adulta.Foto: Bárbara Veiga.

 

4 – Pintura e música são peças centrais na cultura Huni Kuin, uma vez que a própria língua pano possui características musicais. Sua vasta cultura material compreende a tecelagem com tingimento natural, a cerâmica feita em argila com cinzas obtidas de animais e árvores, onde são impressos os kenê (desenhos da cobra), marca que identifica a cultura material Kaxinawá, cujo significado está relacionado à coragem, força, poder e sabedoria. Os mesmos padrões usados no artesanato também se fazem presentes na pintura corporal e vestimentas Huni Kuin. Devido à sua beleza, o artesanato produzido pela etnia possui grande aceitação no mercado, configurando uma de suas principais fontes de renda. Foto: Bárbara Veiga.

 

5 – As pinturas Huni Kuin giram em torno de dois eixos principais – a música e o nixi pae (ayhuasca). Segundo postagem do cacique Ibã no blog “O Espírito da Floresta“, veículo através do qual publica as pinturas, músicas e demais aspectos da cultura Huni Kuin, é através do nixi pae que se manifesta o espírito da floresta. “Poderíamos recorrer aos mitos huni kuin ou à História para falar de como ou quando a bebida surge entre os índios. Porém quanto mais aprofundamos suas músicas, suas histórias, seus desenhos, suas técnicas, sua cosmologia, maior é a impressão de que foram os próprios huni kuin que surgiram do nixi pae”, reflete Ibã. Foto: O espírito da floresta.

 

6 – As obras do Mahku são criadas para retratar de forma pictográfica a história dos Huni Kuin. As imagens representadas nas telas são baseadas na letra de cantos huni meka, sendo também uma forma de ilustrar a “miração”, nome dado por eles às distorções visuais causadas pelo consumo do nixi pae. Foto: O espírito da floresta.

 

7 – O Movimento dos artistas Huni Kuin (MAHKU) nasceu do processo tradicional do cacique Ibã Huni Kuin (Isaias Sales), transmitida a ele por seu pai, Tuin Huni Kuin (Romão Sales), notável pesquisador dos conhecimentos desse povo. Ao longo de sua vida, Tuin resguardou os saberes musicais e rituais que corriam risco de extinção perante a atividade seringalista na região. Ibã aliou sua formação tradicional com os instrumentos da escrita e da pesquisa ao se formar professor, passando a registrar e publicar esses cantos. Foto: O espírito da floresta.

 

8 – Em matéria da revista Trip, após a seleção de um dos trabalhos do MAHKU para a exposição “Made by…feito por brasileiros”, em 2014, o coletivo conseguiu vender sua primeira obra – uma tela de 5 metros no valor de R$40 mil. O dinheiro ganho com a venda da tela foi investido na compra de 50 hectares de mata virgem, dando o pontapé inicial no sonho de Ibã. Desde então, 15 outras obras do MAHKU foram vendidas, em tamanhos e valores menores, revertendo parte da verba arrecadada para a aquisição de mais terras.” Imagem: Ibã Huni Kuin (à direita) e Pedro Mana Huin Kuin durante à exposição Vaivém, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), na cidade do Rio de Janeiro, em abril de 2019. Foto: O espírito da floresta.

 

9 – Além da preservação da floresta e da cultura Huni Kuin, o MAHKU pretende estabelecer um ponto de encontro para o intercâmbio cultural entre artistas indígenas e não indígenas na área conquistada com a venda das telas. “Não vamos derrubar nada. É pra ser uma área independente de reserva florestal. Vamos limpar, ver as ervas medicinais e fazer uma kupixawa [construção mais ancestral Huni Kuin], bem no meio, pra receber artistas e pessoas que venham fazer intercâmbio com o Mahku. Nas Terras Indígenas não pode. Nas terras que a gente compra é um movimento independente”. Foto: O Espírito da Floresta.

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