Uso Forense do Peixe Piracatinga

“Callophysius macropterus” pode ser usado para Localizar e Identificar restos humanos retirados do rio Amazonas

A região amazônica é habitada por várias espécies de peixes, como Piranhas, Candirus e pequenos bagres, todos conhecidos por atacar pessoas. Esses peixes habitam principalmente os bancos de lama do rio Amazonas (1–3). A importância médica desses peixes está mais relacionada ao seu estilo de vida necrófago do que à sua contribuição para a saúde humana (2). Piracatingas são necrófagas, e cadáveres que afundaram até o fundo do rio são rapidamente devorados (4). Piracatingas são, portanto, conhecidas na região como “urubus da água escura”. Reproduzem-se entre janeiro e fevereiro e crescem durante dois períodos do ano – um durante a cheia do rio (em janeiro) e outro durante a vazante (em agosto) (5,6). Podem chegar a 45 cm de comprimento enquanto vasculham o fundo dos bancos que habitam (7,8). Exemplares de Piracatinga são mostrados na Fig. 1 (a, b). Além de sua importância forense, Piracatingas são capturados em grandes quantidades para abastecer o mercado de alguns países da América Latina, onde são considerados uma iguaria. Para capturar o Piracatinga, os pescadores usam a carne de boto (Inia geoffrensis e Sotalia fluviatilis) como isca, causando um desequilíbrio ecológico da fauna em seu habitat (9–12) e ameaçando essas duas espécies de extinção.

Figura 1––Piracatinga (Callophysius macropterus); a) Vista lateral mostrando Piracatinga em tamanho adulto próximo ao máximo. Barbelas saindo da boca funcionam como sensores de sabor; b) Vista frontal parcial mostrando arco dentário e mandíbula poderosos que permitem que o Piracatinga retire grandes pedaços de carne de restos; (c) Frenesi de piracatinga visto de longe, mostrando ondas concêntricas reunindo-se na amostra de isca; (d) Frenesi de Piracatinga visto de perto, mostrando Piracatinga nadando ao redor da isca com barbelos perfurando a superfície da água.

Embora não haja evidências claras na literatura de ataques de Piracatinga em seres humanos vivos, relatos de mergulhadores do Corpo de Bombeiros de pequenas cidades na região rural ao longo do Amazonas citam o Piracatinga como altamente agressivo na forma como desmembram os cadáveres de vítimas de afogamento presas em destroços de barcos ao longo do fundo do rio Amazonas. Na maioria das vezes, os corpos de vítimas de afogamento na Amazônia são difíceis de localizar devido à vastidão do sistema fluvial e à turbidez de suas águas, ou por serem devorados por peixes. Famílias que perdem um de seus membros no rio sofrem intenso estresse psicológico (13). De acordo com a legislação brasileira, um atestado de óbito não pode ser emitido até 5 anos após a pessoa ter desaparecido, mesmo que o afogamento tenha sido testemunhado. Portanto, encontrar uma maneira de reconhecer a morte de uma pessoa afogada pode trazer um conforto significativo para a família da vítima. Neste artigo, relatamos dois casos em que o Piracatinga foi fundamental para encontrar e posteriormente identificar restos humanos do rio Amazonas.

Após o desaparecimento do sujeito, as famílias envolvidas contataram o Corpo de Bombeiros da Cidade de Santarém. O Corpo de Bombeiros procurou no rio às proximidades do desaparecimento da vítima por sinais da Piracatinga. Uma vez que Piracatinga foi capturada e restos humanos identificados no trato digestivo, o Corpo de Bombeiros foi acionado para mergulhar e tentar recuperar os restos mortais.

Para capturar o Piracatinga, pedaços de pele de frango foram usados ​​em anzóis para atraí-los. Dentro de 5 minutos após o lançamento das linhas, o Piracatinga começou a morder, criando um frenesi de alimentação, cujos exemplares são mostrados na Fig. 1 (c, d). O local do desaparecimento do indivíduo foi anotado, e equipes de pescadores experientes foram solicitadas a relatar mudanças na superfície da água feitas pelo Piracatinga (Fig. 2).

Figura 2 –– Três fragmentos de pele recuperados e cabelos do Caso 1. A identidade do Caso 1 foi estabelecida por uma correspondência entre o mtDNA extraído das amostras de pele mostradas e o mtDNA de uma suposta irmã do Caso 1.

A análise dos restos do trato intestinal da Piracatinga começou no local em que foram capturados. O conteúdo do trato intestinal foi avaliado macroscopicamente. Nos dois casos apresentados aqui, havia pedaços de pele e cabelos com características humanas. Amostras do Caso 1 foram enviadas para análise de DNA. Os restos do Caso 2 foram descartados assim que o corpo foi encontrado pelo Corpo de Bombeiros.

Primeiro caso. Um homem de 56 anos mergulhou de um barco de uma altura de aproximadamente 4 m enquanto navegava no rio Amazonas. Ele bateu na água com grande impacto, perdeu a consciência e se afogou. A tripulação do barco viu seu corpo flutuando imóvel e virado para baixo. Ele afundou logo depois, não deixando tempo para tentativas de resgate, e a busca pelo corpo começou imediatamente depois que a vítima do afogamento desapareceu. Apesar de um esforço intenso nos cinco dias seguintes de busca, os restos do Caso 1 não foram recuperados.

O corpo não foi recuperado, mas a localização do desaparecimento foi anotada por testemunhas do acidente e serviu de base para o local onde pescar o Piracatinga. Isso, juntamente com o rompimento da superfície do rio pelo Piracatinga, serviu de guia para localizar os peixes que podem ter ingerido alguns dos restos. O material que foi removido do trato digestivo do Piracatinga foi enviado para análise de DNA. O DNA das amostras de pele e sangue de uma das irmãs da vítima foi analisado com a conclusão de que os dois conjuntos de amostras eram derivados de descendentes da mesma mãe.

Nove piracatingas, coletados no local onde a vítima foi vista pela última vez, foram apanhados em dois lotes – o primeiro lote (consistindo em seis piracatingas) foi capturado em 48 horas do acidente; o segundo lote (composto por três piracatingas) foi capturado entre 48 e 72 horas após o acidente. Dos nove peixes capturados, cinco continham material parecido com tecido humano em seu trato digestivo. Em amostras obtidas de três peixes, foi possível identificar macroscopicamente tecidos cuja aparência era consistente com a pele humana, incluindo a presença de pêlos. Os outros dois conteúdos do trato digestivo do Piracatinga continham material sugestivo de tecido adiposo em estágio avançado de digestão. Os peixes restantes capturados foram descartados.

Fragmentos dos restos foram preservados em formaldeído. O material preservado foi registrado na Seccional da Polícia Civil da cidade de Santarém, com relatos detalhados de testemunhas que presenciaram como o material foi coletado. Após os procedimentos judiciais, o material foi analisado por métodos histopatológicos convencionais para garantir que consistisse em tecido humano. Os achados microscópicos revelaram glândulas apócrinas e écrinas, folículos pilosos e outras características que confirmaram a identificação como pele humana. A epiderme mostrou sinais de exposição a enzimas digestivas, provavelmente de Piracatinga. Em seguida, o material foi encaminhado para análise de DNA mitocondrial, realizada no Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal de Brasília, conforme descrito nos Materiais e Métodos.

Segundo caso. Um homem de 51 anos, morador da margem direita do rio Amazonas, saiu de casa para ir a uma reunião social a 200 metros de distância de sua casa, mas não conseguiu retornar. Depois de 24 horas de desaparecimento sua família iniciou uma busca em sua casa. Alguns de seus parentes pescaram o Piracatinga nas margens do rio entre os locais da casa da vítima e o encontro. Os parentes notaram movimento na superfície do rio de cardumes de peixes que transmitiam um padrão característico, e levantaram a possibilidade de que a vítima se afogou ou que poderia ter sido assassinada. Os moradores locais disseram que ele poderia ter tido uma briga no local onde ocorreu a reunião na noite em que ele desapareceu. Os restos do corpo foram encontrados 48 horas após a morte com a cavidade torácica parcialmente comida, bem como o braço esquerdo, conforme se vê na Figura 3.

Figura 3 – Corpo do Caso 2 encontrado 48 horas após a morte.

No caso 2, o Piracatinga devorou todo o conteúdo do abdômen, órgãos intratorácicos e quase toda a musculatura e tecido subcutâneo em 48h. Depois que o corpo foi localizado, um exame mais detalhado do local perto da margem do rio, onde a vítima desapareceu, levou à descoberta de novas gotas de sangue em um trecho arenoso. A trilha de sangue levou à margem do rio onde o corpo estava localizado e não foi analisado mais adiante. Um corpo parcialmente decomposto foi recuperado, localizado pelo Corpo de Bombeiros, precisamente onde o Piracatinga foi capturado. Nesse caso, considerou-se desnecessário enviar os restos humanos para análise de DNA, pois a família identificava o corpo. A identificação preliminar dos restos foi confirmada com base no dinheiro que foi encontrado no bolso da vítima, joias que ainda estavam em volta do pescoço cor e textura do cabelo, um dente de ouro, restos de roupas e uma carteira contendo documentos pessoais do falecido. O assassinato não poderia ser descartado pelo Instituto Médico Legal devido à perda considerável de tecidos e órgãos devorados pelo Piracatinga.

O afogamento fatal é a maior causa de morte no mundo entre os jovens de 5 a 14 anos, com o Brasil tendo o terceiro maior número de casos do mundo (16,17). Na região amazônica, as mortes por causas externas são a principal causa de morte em algumas cidades (18). A região tem a maior incidência de afogamento acidental no Brasil, sem contar os naufrágios, onde muitas pessoas morrem (19). Muitas vítimas de afogamento a região amazônica, especialmente no rio, não são encontradas – seja por causa da vastidão do rio ou por serem devoradas por peixes carnívoros ou necrófagos, como o Piracatinga. Além disso, dados da literatura médica sobre afogamento na Amazônia são escassos (17).

Na ilustração dos dois casos, as vítimas de afogamento puderam ser identificadas devido à perturbação característica da superfície do rio feita pelo Piracatinga quando estes se alimentam. Mudanças características vistas na superfície do rio quando Piracatingas estão se alimentando consistem em ondas circulares concêntricas com uma grande ruptura no centro e bolhas que somente Piracatingas fazem. Barbelas nasais de piracatinga que penetram na superfície também podem ser vistas. Em contrapartida, Piranhas geralmente não perturbam a superfície da água quando estão se alimentando. Além disso, mudanças na superfície do rio, se houver devido à alimentação de piranhas, não são acompanhadas pela formação de bolhas. Embora bem conhecida pelos habitantes locais, a possibilidade de tal identificação descrita no presente relatório é, pelo que sabemos, a primeira na literatura médica.

Em outros lugares, fora da água, a ciência forense usa insetos necrófagos para detectar o local onde um indivíduo morreu. Várias espécies de insetos necrófagos são atraídas pelo odor de um corpo em decomposição (21). Piracatingas não são únicas em suas utilidades como fonte de restos humanos após um incidente fatal na Amazônia. Outras amostras de restos humanos foram obtidas de larvas de moscas e tubarões. A importância do Piracatinga baseia-se no acelerado desenvolvimento econômico da Amazônia e na crescente necessidade de identificar os restos resultantes dos incidentes fatais que se seguem.

Infelizmente, o uso de insetos é limitado a localizar apenas restos. Relatos de moradores locais e de outros pescadores ribeirinhos mostram que Piracatingas tendem a se reunir em lugares onde humanos ou outros animais desapareceram, e que frequentemente mostram restos humanos em seu trato digestivo. Não temos conhecimento de relatos científicos descrevendo o uso de peixes amazônicos como bioindicadores da presença de restos humanos resultantes de afogamentos fatais. Mais amplamente, esses estudos abrem uma discussão sobre o valor da informação anedótica para o avanço da medicina, a saúde e a interrelação com o meio ambiente na Amazônia.

Dr. Erick Jennings durante pesquisa de campo sobre uso forense do Piracatinga. Foto: Autor.

Mesmo considerando a vastidão da bacia amazônica, a pesca do Piracatinga em locais onde há a presença de animais mortos ou humanos se torna relativamente fácil. Piracatingas são peixes extremamente vorazes; se alimentam em cardumes e possuem hábitos territoriais, de modo que são conhecidos como “urubus da água” (6,18). Nos casos aqui apresentados, a coleta dos espécimes de Piracatinga demandou, em média cerca de 2 horas por dia.

O exame cuidadoso do trato digestivo desses peixes pode ser realizado in situ. Sua arcada dentária e mandíbula são fortes e geralmente arrancam pedaços de pele de tamanho considerável (25,26). No caso 1, a presença de pelos no couro cabeludo foi facilmente reconhecida pelo exame macroscópico. No caso 2, o peixe localizou a presença do corpo em um local improvável. Esperava-se que o corpo da vítima se encontraria em um local mais distante por causa da corrente do rio. No momento em que os peixes foram capturados, a família não tinha certeza do que havia acontecido. Depois que o Piracatinga foi examinado, a possibilidade de morte tornou-se evidente. Infelizmente não foi possível determinar a causa da morte. Como os restos não puderam flutuar devido à perda significativa de tecido, a presença do Piracatinga foi fundamental para a localização do corpo. No caso 1, o corpo não foi encontrado, possivelmente devido à maior profundidade do rio e à irregularidade do leito do rio no local da investigação.

Em resumo, o Piracatinga serve como uma ferramenta útil para localizar os restos mortais de vítimas de afogamento na Amazônia. Quando combinado com a análise comparativa de amostras de DNA de parentes do falecido, o método pode servir como uma poderosa ferramenta forense tanto para localizar os restos mortais das vítimas quanto para determinar a identidade das mesmas.

Você pode conferir o artigo original contendo as referencias bibliográficas clicando aqui.

 

Erik Jennings é neurocirurgião e professor da Universidade do Oeste do Pará. Ele foi o fundador do primeiro serviço público de neurocirurgia no interior da Amazônia brasileira. É coordenador de saúde do povo Zoé, uma tribo indígena, recentemente contatada, da floresta amazônica há cerca de 18 anos. Ele é um ativista ambiental e defensor dos direitos e cultura dos povos indígenas. Atualmente é consultor do Ministério da Saúde para questões de saúde envolvendo povos indígenas isolados de contato recente. Ele defende a preservação cultural, ambiental e social como o principal fornecedor de cuidados de saúde para esses povos. Além disso, coordena o programa de residência médica em neurocirurgia da Universidade Estadual do Pará.
O autor reconhece a assistência de Bernard Weisblum e Marcos Colón na preparação do manuscrito.
Imagem em destaque – Vista lateral mostrando Piracatinga em tamanho adulto próximo ao máximo Foto: Erik Jennings.
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