O ser coletivo não totalitário: Experiência em Etnoeducação com Quilombolas de Oriximiná/PA

O programa de Extensão “Educação Patrimonial em Oriximiná-PA envolve diretamente educadores da rede pública do município paraense, em ações de formação de educadores sensíveis aos saberes e fazeres locais, denominados etnoeducadores. Buscamos construir, de modo coletivo e plural, a articulação entre os modos de vida locais e seus desdobramentos no ambiente escolar. Esta articulação, da vida comunitária com a escola, serve de base para o desenvolvimento de pesquisa e intervenção.

Oriximiná, município brasileiro de grande extensão territorial, tem o rio como elemento primordial de encontro e ligação entre as comunidades e a floresta. Atravessado pelo rio Trombetas, importante afluente do Amazonas, é morada de muitas pessoas, grupos sociais e histórias. Seu território é composto por uma diversidade de modos de vida e existe enquanto pedaço de resistência deste Brasil pluriétnico.

Índios e quilombolas nessa região conhecem-se há 200 anos, desde quando escravos fugidos de fazendas e cidades do Baixo Amazonas (Pará) subiram as águas mansas do Rio Trombetas em busca de refúgio, alcançando as águas bravas e os territórios indígenas e ali fundando seus mocambos, como eram denominados regionalmente os quilombos. Avizinhando-se, mantiveram uma convivência, ora de troca, ora conflituosa, que trouxe aprendizados mútuos, influenciando profundamente tanto o modo de vida indígena quanto o das comunidades afro-amazônicas que ali se constituíram. (GRUPIONI E ANDRADE)

A partir desta diversidade que, em 2008, organizamos o Inventário do Artesanato Local.. Durante quatro anos percorremos distantes regiões de Oriximiná, numa convivência fraterna e amorosa com seus habitantes. Nossa ideia era reunir esta diversidade de fazeres, saberes e objetos culturais em um livro que seria utilizado nas escolas municipais como fonte de pesquisa. Este livro se configurou como trabalho de educação patrimonial e salvaguarda destas tradições. Paralelo ao nosso trabalho de campo, acompanhamos atentos a expansão, construção e organização de escolas municipais nas zonas ribeirinhas e rurais, assim como, nas reservas quilombolas e indígenas. Estes prédios escolares, todos com edificação padronizada, e toda a expansão da rede pública de educação convivem, nem sempre de modo harmônico, com modos locais de ensinar e aprender. O movimento de expansão e formalização do ensino fundamental no interior de Oriximiná é seguido de muitas histórias singulares. A fundação e gestão desses ambientes de ensino estão diretamente ligadas à Educadores comunitários que nem sempre se tornam os professores destas escolas. Assim estes ambientes comunitários vão convivendo, nem sempre de modo harmônico, com esta expansão escolar no município. Assim podemos dizer que convive nestas comunidades modos de aprender e ensinar locais com os modos padronizados e hierarquizados do ensino público municipal. Esta “escola local”, feita e organizada pelos comunitários, ainda mantém uma relação de circunvizinhança com os fazeres locais. A caça, a pesca, o extrativismo, a agricultura e toda uma vida comunitária se encontram nesses espaços de aprendizagem. Interessados em acompanhar e participar desstes entrecruzamentos e preocupados com possíveis disparidades dos projetos pedagógicos que estas novas escolas poderiam trazer, assim como toda uma estrutura política pedagógica extrínseca e pouco sensível aos modos de vida locais, realizamos o inventário do artesanato como instrumento pedagógico.

Na avaliação de 2011 resolvemos modificar nossas ações. Avaliamos que, por mais rica e engajada que tenha sido nossa participação nas comunidades e nas escolas em Oriximiná, ainda ocupávamos o lugar de “pesquisadores das culturas locais”. Neste sentido, o protagonismo estava concentrado nos “pesquisadores” e determinava uma relação “objetal” com atores de Oriximiná. Mesmo que de modo sensível e atentdo de nossa parte, sentíamos dificuldades em romper com esses muros. Decidimos buscar outros modos de pesquisa em que a participação e a intervenção local fossem consideradas e partilhadas entre todos. Inspirados no que a etnografia poderia nos oferecer enquanto um “modo” de pesquisa e intervenção COM os comunitários de Oriximiná, iniciamos ações em que os saberes e os fazeres, o aprender e o ensinar são feitas COM as comunidades locais. Criamos conjuntamente formas de inserção e valorização destes saberes locais nas escolas públicas municipais.

Para sustentar tal atitude ética e pedagógica, estabelecemos alguns princípios que ao longo de nossas ações têm norteado o trabalho. Tais princípios e ações sustentam um modo de pesquisa-intervenção coletiva e uma metodologia que vem sendo denominada Etnoeducação. Deste modo, temos buscado sair de certa organização hierárquica e vertical dos espaços de aprender e ensinar. De caráter transdisciplinar, a Etonoeducação, agrega contribuições de diversos saberes e atravessa muitas áreas acadêmicas (Antropologia, Psicologia, Educação) conjuntamente com os saberes locais que habitam o cotidiano dos comunitários de Oriximiná/PA. O programa pauta-se ainda no princípio da indissociabilidade entre pesquisa-ensino-extensão, no qual a participação de alunos de graduação de vários cursos da UFF e dos professores de Oriximiná é fundamental.

Princípios da Etnoeducação

ETNOEDUCAÇÃO: Processo metodológico multidisciplinar no campo da Educação Patrimonial que visa a valorização dos saberes e das tradições (patrimônio material e imaterial) e o respeito pelo outro. Reconhece o pertencimento dos sujeitos em seus grupos sociais e lugares e inclui estratégias de pesquisas educacionais que promovam a memória coletiva. Ação educativa dinâmica, participativa e ética que ocorre em ambientes escolares e fora dele. Essa abordagem se constrói na partilha e na convivência. (Texto coletivo construído numa oficina em abril de 2015 entre educadores de Oriximiná e da UFF para tentar definir o que entendíamos por Etnoeducação)

Nosso grupo se orienta pelo o que denominamos de princípios norteadores da Etnoeducação. Esses princípios norteadores se sustentam na atitude ético e epistemológica, em que o caminho é o que importa, não aonde se pretende chegar. “O desafio é o de realizar uma reversão do sentido tradicional de método – não mais um caminhar para alcançar metas pré-fixadas (metá-hódos), mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas. A reversão, então, afirma um hódos-metá” (PASSOS, E.; BENEVIDES, R. 2009). Deste modo, acreditamos que imersos nas práticas locais construiremos os caminhos para os modos de ensinar e aprender, que podem incluir, sem unificar, as diversidades locais. Como trabalhamos com o processo, toda e qualquer chegada é provisória, os resultados não podem portanto se descolarem das forças vivas que vão se fazendo presentes. As forças são intrínsecas à formação. A processualidade surge como abertura para novas possibilidades e encontros. É, portanto, o processo enquanto encontro de forças e formas, que estabelece o lugar de formação, os caminhos e as singularidades da aprendizagem. Suposições outras como, tempo e espaço que a priori não conhecemos e não controlamos ou levantamento de hipóteses e da organização de roteiros preestabelecidos, são desconsiderados no processo, pois apostamos que as proposições do trabalho surjam no próprio caminhar, respeitando as singularidades e as surpresas do caminho. Para sustentar nossas ações, segundo a perspectiva metodológica da Etnoeducação, construímos coletivamente alguns princípios. Princípios são valores que sustentam e mantém a diversidade em um plano comum, mas valores não são ideias preestabelecidas do caminhar. Em nossas ações buscamos sempre avaliar as interações a partir destes princípios que seguem:

  1. Primazia da experiência;
  2. Autonomia e protagonismo de todos os envolvidos nas ações;
  3. Gestão participativa, coletiva, plural e circular;
  4. Inclusão radical das diferenças com formas de cuidado sem tutela;
  5. Disposição para aprender COM e não sobre;
  6. Transdisciplinaridade como encontro transversal de valores.
  7. Narrativas abertas à diversidade de vozes.

Tais valores ou princípios são organizados de modo circular, em que nenhum deles é primordial ao outro, ou estabelecido de modo sequencial. Acreditamos que ao abordar determinados temas todos os princípios são acionados e acabam por surgir de modo limiar, sempre no “entre”, o que permite e exige o movimento e as relações. Discutiremos a seguir o princípio da disposição do aprender Com e não sobre, que vai nortear um pouco nossa discussão aqui.

Aprender e ensinar de modo coletivo, compartilhado e comum

Os projetos de etnoeducação em Oriximiná buscam desconstruir a rigidez na hierarquia de ensino. Foto: Johnny Alvarez/ UFF.

A Escola da Ponte é uma escola de área aberta construída por vontade dos professores, onde não foram erguidos muros nos lugares em que os arquitetos derrubaram as paredes. (…) É um edifício-escola que permite o desenvolvimento de uma pedagogia orientada para uma praxis social de integração do meio na escola e da escola na vida, aliando o saber ao saber fazer. Nesta escola não há salas de aula e não há aulas. Um espaço pode, no princípio de um dia de trabalho, acolher o trabalho de grupo, pode servir a expressão dramática, a meio da manhã, e pode receber, no fim do dia, as crianças que vão participar no debate.
José Pacheco

A Escola tradicional e seus processos de ensino e aprendizado costumam se fundamentar em relações dicotômicas, que envolvem antagonismos e disputas de poder. Tais dicotomias, organizadas e gestadas de modo vertical, acabam operando múltiplas separações. Essas dicotomias empreendem divisões entre “quem” ensina e “quem” aprende, entre professor e aluno, entre quem pesquisa e o que é pesquisado (sujeito e objeto), entre escola e comunidade, entre saber acadêmico e saber local, o formal e o informal, a oralidade e a escrita. Tal posição epistemológica se estabelece num processo de objetivação do outro, que excluído dos procedimentos de decisões e escolhas, acaba por se submeter àqueles que “dominam” os espaços de ensino de modo unilateral. Esse modo de ensinar e aprender é sustentado em atitudes de dominação e alienação do outro, tratando-o como ser sem luz.

No trabalho que empreendemos, vamos em sentido diverso desta tendência hegemônica dos espaços escolares. Visamos uma formação circular dos professores, incluindo de modo radical os alunos e a comunidade neste processo. Circular porque entendemos o nosso trabalho como uma via de mão dupla, tensionando as divisões dicotômicas descritas acima. Assim buscamos nos situar nessas zonas limiares em que quem ensina aprende e quem aprende ensina. Nesse processo conjunto, temos a roda como dispositivo fundamental para esta organização circular e limiante. Circularidade em espiral, já que nunca voltamos ao ponto de início e o círculo nunca se fecha. Nossa perspectiva é sempre manter a roda em movimentos transversais. Este movimento contínuo e em espiral é visto como um esforço de reflexão ativa e continuada do que estamos fazendo e, principalmente, o momento em que podemos agir no grupo cuidando dos espaços territoriais constituídos. Tal circularidade criativa de atuação e reflexão continuada, com os riscos de nos perdermos em antagonismos, distinções excludentes e dicotômicas, tem servido de base no processo de formação de Etnoeducadores. Deste modo, as funções rígidas de formadores e formandos se embaralham, abrindo a possibilidade do encontro e do diálogo entre sujeitos protagonistas.

A formação plural, transversal e autônoma dos envolvidos neste processo necessita de cultivo e cuidado. Ao nos referirmos aos agentes do processo, todos são necessariamente incluídos. Professores pesquisadores das universidades e do município de Oriximiná, alunos, bolsistas e demais integrantes das comunidades fazem parte desse coletivo. Estes aparecem com suas diferenças, mas estas não são vistas como diferenças que separam e hierarquizam o grupo. Corremos sempre o risco de produzir unidades (homogêneas) e acionar, nesse modo de organicidade, as dicotomias e os seus antagonismos.

Em um importante artigo escrito a respeito da formação de profissionais da saúde em Santos-SP, o professor Eduardo Passos discute alguns aspectos importantes na formação de agentes de saúde pública para garantir o acesso democrático, gratuito e público da saúde brasileira sem perder de vista a heterogeneidade e as singularidades destas ações. Discute a tentativa de conciliar o acesso ampliado da saúde, garantindo a “equidade” da assistência e de sua extensão como política pública, sem apagar as diferenças e heterogeneidades dos serviços e público atendido. Tal discussão se sustenta em descrições e análises de algumas práticas de formação por que passavam, algumas políticas públicas de saúde no Brasil, na compreensão de seus fundamentos de igualdade e democracia.

As noções de igualdade e de democracia aparecem como fundamento das políticas públicas na Educação e na Saúde. Saúde e Educação são públicas e democráticas quando construídas para que “todos” possam ter acesso. Igualdade e Universalidade aparecem como princípios básicos. Mas esta universalidade e igualdade, que a princípio devem ser preservadas e mantidas, podem ser entendidas como acesso irrestrito de “todos” aos “mesmos” serviços e cuidados. Nesse processo de composição e entendimento do que seja “Público” pode trazer junto a ideia de que em sendo público, os serviços devam ser homogêneos. Universalidade e Igualdade são entendidas como serviços padronizados e iguais à todos. Onde a homogeneização dos serviços e do público acarretariam, assim, nas subdivisões também homogeneizantes de especializações e especialistas. Nelas as divisões respeitariam o princípio de identificação dos grupos por “totalidade de semelhantes e iguais”. Como manter os ideias democráticos e públicas das ações em Saúde e Educação descolando-se da ideia de totalidade e homogeneidade? Eduardo Passos a problematização da noção de “Comum”, como operador conceitual que pode gerar outras compreensões e abrangências das noções de público, acesso democrático e igualdade.

A palavra comum pode ter o sentido de “como um”, onde o “um” significaria uma unidade individualizante e totalizante. Na frase “A Educação é um bem “comum” ao brasileiro”, o sentido de “comum” é normalmente pensado no sentido de que “todo brasileiro” (unidade individualizante de nação) tem os mesmos direitos à educação. Um do “comum” é visto assim, como unidade, (COM UNS). Unidade, totalidade, universalidade como bases da democracia e da igualdade. Então, como garantir a amplitude dos acessos públicos sem desconsiderar as diferenças das populações, as minorias étnicas, raciais, de gênero entre outras? Buscando responder esta pergunta Eduardo Passos sugere pensar de outra modo a noção de Comum -. oOnde o “um” não aparece como substantivo de unidade mas como um artigo indefinido “um” no singular e “uns” no plural. “Com uns (artigo indefinido) e não Com Um (unidade)”. Como fora da noção de Unidade, podemos manter o princípio público e democrático do acesso àa Educação sem indicar segregação ou discriminação? Eduardo Passos propõe a ideia de equidade para ressignificar a noção democrática de igualdade. Na equidade, a igualdade não é tratar todos de modo homogêneo e geral, mas estar apto a trabalhar “Com qualquer um, mas não todos”. Equidade é dar o necessário para qualquer “um” (indefinido) que precise. O um (artigo indefinido) permite que os agentes e serviços públicos de educação e de saúde possam proporcionar aos cidadãos, grupos e minorias o que eles precisam e não o que o sistema universal oferece. O artigo indefinido “uns” permite uma “discriminação includente”, sem a totalização homogeneizante do “Um” enquanto unidade de todos, numa ambição totalizante que, muitas vezes estes dispositivos acabam impondo às minorias, ao lhes atenderem.

Uma escola pública em uma comunidade quilombola, que seja pública tem que ser “comum” àqueles que lá vivem, deve ser discriminada ao seu mundo, sob pena de servir ao projeto universalista e global de unificação dos modos de ser e existir. Mas esta localidade não pode ser discriminada a ponto de se tornar algo exterior ao público, portanto ser esquecida pelas ações públicas. Equidade democrática como valor de políticas públicas de saúde e educação “com quaisquer uns”. Esta perspectiva do COMUM deve ser exercida em todos os espaços públicos.

Se pesquisar é mergulhar no plano das experiências “comuns” e avaliar coletivamente seus efeitos podemos perfeitamente afirmar que toda pesquisa é intervenção em permanente processo de construção. Intervenção por dentro da experiência e não por fora, como estrangeiros colonizadores. Intervenção como um mergulho na experiência que agencia os sujeitos e objetos, a teoria e a prática, num mesmo plano de produção. É este traçado de experiências em produção que pretendemos mapear ou cartografar. Não há em nossa orientação pressuposições a priori do que seja “cultura quilombola, indígena, ribeirinha” ou “patrimônio cultural quilombola, indígena ou ribeirinha”, nem muito menos de um padrão de escola. Como apresentamos acima, a noção de público e coletivo não impõe dicotomias excludentes e nem conjuntos unificadores. Por isso, apoiamos o trabalho de extensão nos fazeres e saberes, em seus contextos e tempos próprios, onde “saber e fazer” são inseparáveis e que coemergem de práticas e experiências locais. Mergulhamos nas experiências de saber/fazer, fazer/saber. Assim, nossas ferramentas de trabalho, nossos operadores conceituais serão sempre imanentes às práticas e seus fazeres.

Inspirados no método etnográfico, que lança o etnógrafo na aventura do campo e o faz participar e habitar dos territórios da pesquisa, propomos a formação de etnoeducadores, que também vão desenvolver a aventura de ensinar/aprender em seus territórios existenciais (ALVAREZ e PASSOS, 2009). O Etnoeducador será convidado a se incluir de modo problemático no processo de ensinar/aprender. Outra vez as dicotomias não nos ajudam. Sujeito e objeto, teoria e prática estão intimamente imbricados. Aprendemos ensinando e ensinamos aprendendo. Neste sentido, entendemos que apenas atentos à experiência e não preocupados na busca constante pela informação e conteúdos é que o Etnoeducador irá construir o seu trabalho de pesquisa/intervenção na escola.

A importância dos Mestres e da tradição nos processos coletivos de ensino e aprendizado

Mestre transmite seu conhecimento aos mais jovens em Oriximiná-PA. Foto: Johnny Alvarez/ UFF.

No dicionário, o termo mestre é definido como “professor; aquele que ensina; aquele que é versado numa arte ou ciência” (FERNANDES, 1993). Na tradição da escola, enquanto instituição que se propõe ser o lugar de aprendizado, o professor incorpora esta posição de mestre, encarnando um papel de prevalência e hierarquia na função de transmissão de saberes. Mestre, segundo esta definição, é alguém versado em uma suposta área que está autorizado a ensinar. Essa história marca um pouco o sentido da maestria relacionado a uma prática de ensino e aprendizagem, que tem na escola o seu lugar privilegiado, mas que se repete em outros setores da sociedade. Contudo, se o ser mestre nesta primeira apreensão o aproxima do que chamamos de professor, podemos encontrar outros sentidos para este termo nas culturas populares. Dentre estes destacamos as referências aos mestres de ofício: “Título dado aos peritos trabalhadores manuais. Mestre carabina, Mestre pedreiro, Mestre sapateiro” (CASCUDO, 1988). E aqui o sentido é o de dominar determinados modos ou práticas de ofícios. Aquele que preserva e encarna um saber fazer. Por isso, eram chamados pela população, em tom respeitoso, de Mestres.

O aspecto referente ao ensino e transmissão de saberes na instituição escolar não está diretamente ligado a este sentido de ser mestre. Estas práticas eram estendidas também aos artistas populares que, como os mestres de ofício, detinham os saberes e práticas de sua arte. Mestre de bonecos, Mestre de viola, Mestre de reisado, Mestre de capoeira. Estes mestres populares eram os mantenedores de saberes e práticas artesanais. Artesanal não tem aqui o sentido de algo simples e precário, não industrial, mas de uma prática em que o saber e o fazer estão juntos e relacionados. Eram respeitados e reconhecidos como mestres por dominarem com maestria todas as etapas e processos de sua arte. No caso, por exemplo, dos Mestres das folias e festas que encontramos em Oriximiná, seu trabalho se estende desde a escolha e preparação dos materiais, passando pela construção dos espaços, das roupas, das músicas e das histórias, indo até sua realização. Não há separação entre aquele que sabe e aquele que faz. Tal separação é mais comum à tradição moderna de produção e transmissão de conhecimento, na qual os que sabem devem se dedicar apenas ao saber (o que facilita abstração) e os que fazem devem se dedicar apenas ao fazer (que facilita à automação). Saber por saber e fazer por fazer. Automação dos fazeres e dos saberes, reprodução automática de palavras e ações. Muitas vezes é o que, hegemonicamente, vivenciamos nos ambientes escolares. Tal cisão comum às escolas tradicionais têmtem nas práticas de transmissão das tradições populares, uma forma de resistência. Desse modo, acreditamos que a escola possa crescer muito, abrindo suas portas para a tradição dos modos de aprender e ensinar que as culturas populares sempre souberam cultivar. O papel do Mestre/Educador não se separa de sua posição de cuidador e cultivador de uma tradição viva. Essa relação encarnada entre o Mestre e a Tradição, dificulta que se ensine algo que não passe por experiências de vida concreta, mantendo sempre o cultivo do aprendizado vinculado aos modos de ser e fazer locais. Ensinar é cultivar os ritos e práticas vivas que não podem estar separadas. Tal afirmação requer uma mudança do papel do mestre enquanto cultivador/educador daquele que, nas escolas tradicionais, é apenas o reprodutor (professor) ou pesquisador (teórico). Uma primeira e importante diferença entre esses dois tipos de aprendizado é referente ao engajamento do professor e do aluno em relação àquilo que se ensina e se aprende.

Observamos, cada vez mais, em nossas escolas uma atmosfera de desengajamento tanto dos professores quanto dos alunos. Preocupados com questões formais, de preparação e criação de técnicas de ensino que possam garantir e facilitar os resultados do aprendizado vem-se gerando nas escolas o que chamamos de “pedagogia da infantilização”. Nesse processo, o conhecimento é tratado como algo dado, que deve ser separado e “mastigado” para que sua absorção pelos alunos seja facilitada. A atenção dos acadêmicos vai sendo atraída por criação de meios e técnicas de avaliação e transmissão do conhecimento. Vão sendo criadas apostilas, textos didáticos e outras fórmulas de simplificação do tema. Professores e alunos vão se acostumando com essa prática de simplificação do ensino. Assim, a escala industrial de separação, aceleração e falta de implicação daquilo que se vivencia cotidianamente tem sido levada a extremos nesses espaços. Aluno e o professor vão reiterando relações de aprendizagem que apenas reproduzem conhecimentos gerais e transmitem informações simplificadas. Tal característica tem promovido certo desengajamento do aluno e do professor com o processo de aprendizado, reproduzindo o cenário escolar como um “Shopping Center”. Os sujeitos funcionam com atenção dispersa e desencarnada, prontos para, a qualquer sinal dos estímulos, responder consumindo produtos acabados e vazios. É claro que nesta paisagem gélida e formal ainda encontramos contraexemplos, mas que de modo algum são vivenciados como rotineiros e comuns. Estariam os Mestres da vida, da cultura popular reproduzindo esse papel simplificador destas pedagogias de infantilização?

Apostamos que os espaços artesanais e de cultivo dos ofícios próprios ao cuidado das culturas populares pode nos suscitar pistas para solucionar alguns questionamentos. Nesses espaços, o saber ou o conhecimento não são considerados como algo que esteja separado da vida e das experiências cotidianas. Não há uma tendência de separação entre o saber e o fazer, prática e teoria. Quem quiser aprender um ofício já inicia nos fazeres. Portanto, é na prática, nos eventos, que os mestres cultivam suas transmissões. Uma prática encarnada “fala” mais do que mil discursos vazios. Para tanto eles não criam espaços ou técnicas específicas para principiantes. Não entendem que esse ainda não possa frequentar os espaços tal como eles são. Não há infantilização do aprendiz. Sabem, que uma separação, poderia impedir ou dificultar a sensibilização e engajamento do aprendiz pela paisagem da tradição. O que o aprendiz encontra no Mestre/Educador não é um cuidado especial e infantilizador, mas um acolhimento paciente. O aprendiz não é visto como um ignorante, como desprovido de algo, como alguém que não sabe. Tal mudança de atitude coloca o aprendiz numa posição de ajudante e não de aluno. Os aprendizes são colocados em atividades, com fazeres e responsabilidades, recebidos como companheiros desse cultivo. Há hierarquia, mas não há formalidades nem práticas pré concebidas e sem sentido, já que para aprender e ensinar é preciso de uma experiência engajadora e “quente”, afastando-se dos ambientes frios e formais. O Mestre/Educador tenta colocar o aprendiz numa posição em que se aprende COM e não COMO ou SOBRE.

O trabalho de extensão que desenvolvemos está ligado a uma disposição de composição e não ao de domínio técnico. Não visamos a submissão ou domínio da técnica, mas o FAZER COM, compondo com os elementos envolvidos. Fazendo COM o trabalho de aprendizado é sempre coletivo e solidário. Abrir-se para que essas forças coletivas compositivas possam nos ensinar. Como não há nestas tradições populares de aprendizado uma separação do cultivo de uma tradição e de sua transmissão, entre espaços dedicados somente ao aprendizado e outro de produção e realização de um saber/fazer, o aprendiz se sente desde sempre convidado a pertencer a uma cultura viva e atuante. Nas escolas, muitas vezes, os alunos não se sentem construtores de algo, mas apenas reprodutores. Esse aprender COM acaba por cultivar no aprendiz a necessidade e a disposição do engajamento na tradição. Cultivar uma experiência coletiva e encarnada na e da tradição é uma das funções do Mestre/Educador. Tal experiência encarnada força o cultivo de uma comunhão e pertencimento a algo. Mas pertencer não é vivenciado como um movimento de apropriação ou propriedade de algo ou alguém. A Tradição não é vista como um produto a ser apropriado ou consumidos. Seja algo material como um instrumento, ou algo imaterial como um saber ou prática. Este é o sentido de coletivo como um cultivo em comunhão engajada. Esse sentimento de pertencimento a uma tradição Simone Weil (2001) chama de “enraizamento”. Essa importante pensadora e ativista da Europa do início do séc. XX buscou pensar de forma politizada o enraizamento de um povo, que segundo ela estava cada vez mais desenraizado. Weil nos mostrou, em sua curta vida, exemplos de como as práticas de desenvolvimento do capitalismo vão produzindo o pior de todos os flagelos que um povo pode padecer: o desenraizamento. Dentre os fenômenos analisados como práticas de desenraizamento, Weil destaca o aparelhamento da educação e os modo de ensinar em desenvolvimento na Europa moderna.

O renascimento provocou em toda a parte um corte entre as pessoas cultas e a massa; (…) disso resultou uma cultura que se desenvolveu em meio muito restrito, separado do mundo, em uma atmosfera confinada, uma cultura consideravelmente orientada para a técnica e influenciada por ela, muito tingida de pragmatismo, extremamente fragmentada pela especialização, completamente desprovida ao mesmo tempo de contato com este universo e de abertura para o outro mundo espiritual. (WEIL, 2011).

A pensadora, oriunda de uma família abastada, cedo se revolta com essas práticas que provocam o desenraizamento do povo. Em bela passagem do livro Weil aposta que não adianta um camponês, aluno de escola primária, saber mais do que Pitágoras – na medida em que repete que a terra é que gira em torno do sol – se ele já não se encanta mais pelo céu e pela observação das estrelas. Assim descreve, “esse sol de que lhe falam na aula não tem para ele nenhuma relação com aquele que ele vê” (idem, p.45). Weil afirma que instrução do povo é uma vulgarização de uma cultura desenraizada, depositada na memória dos jovens, na qual “o desejo de aprender a aprender, o desejo de verdade tornou-se raríssimo. O prestígio da cultura tornou-se quase exclusivamente social (…)” (idem, p. 46).

Na prática de cultivo COM, certos ambientes populares ainda preservam modos de enraizamento. O coletivo é então uma comunidade composta de forças e matérias engajadas em saberes que não se separam dos fazeres, e nem se submetem a apropriações, constituindo-se como fortes estratégias de resistência. Buscando resistir ao modo de aprender que desenraiza, nos dedicamos ao cultivo de paisagens, nas quais as práticas e os saberes sejam exercidos em sua integridade, imersas em todos os seus elementos de tradição e ritualística, construindo um ambiente em que os participantes sintam-se pertencentes a algo maior do que suas vaidades e pretensões pessoais, vencendo a solidão e a preguiça de uma atenção dispersa, engajando-se numa construção coletiva e solidária.

O ponto principal que buscamos desenvolver na Etnoeducação é o da experiência como base no aprendizado e a virada na colocação do problema que ele implica. O eixo central da experiência neste sentido deve ser colocado do ponto de vista do aprendiz e não do ponto de vista de quem ensina ou de um observador intelectual. A ênfase deve ser posta no aprender e não numa aprendizagem submetida ao aprendido e seus resultados. O aprender não é pessoal e nem circunstancial, não está amarrado a práticas frias (métodos e técnicas), mas está ligado à experiência de uma tradição impessoal.

Algumas experiências entre nós, quilombolas e o programa de Etnoeducação na UFF

Estudantes da Comunidade Quilombola de Araçá, Oriximiná-PA. Foto: UFF.

No Pará, a população cativa, negra, não ultrapassou em nenhum momento a taxa de 20% da população total da província. Todavia, as relações de produção escravista ali se faziam presentes, fossem na ilha de Marajó, na região do Salgado, no baixo Tocantins, ou no oeste do estado, onde concentrei meus estudos sobre as sociedades mocambeiras, ali constituídas no século XIX – nos rios Trombetas, Erepecurú/Cuminã, Curuá e nos lagos de Óbidos e Santarém -, hoje materializadas nas comunidades quilombolas descendentes dos mocambos existentes naquela região, então conhecida por baixo Amazonas. (FUNES, E. 2015)

Fugidos da escravidão, os mocambos negros iniciam uma história de luta e resistência no alto das cabeceiras dos grandes rios navegáveis nessa região do Pará. No braço direito do médio Trombetas encontramos algumas comunidades quilombolas que se distribuem entre os rios Erepecurú e Cuminã. Até o final da escravidão no século XIX estas pessoas viviam nas “águas bravas”, no alto das grandes cachoeiras, para não serem encontradas pelos seus perseguidores, os senhores de Engenho. Neste processo de resistência escrava, os “altos” dos rios Erepecurú, Curuá e Trompetas tornam-se moradas das comunidades quilombolas. Ao longo do século XIX esstas populações continuam a crescer, buscando sempre se manter à margem e em isolamento das províncias locais.

Na arte de se tornar quilombola os ex-escravos foram produzindo uma nova vida de acordo com as condições naturais e culturais ali encontradas. Seu corpo e sua alma vão se moldando ao local. Das comunidades indígenas que ali viviam eles herdam o modo comunitário do extrativismo, da caça e da pesca. Vivendo em pequenos povoados com casas familiares, onde uma pequena horta é plantada, estes quilombolas vão construindo modos de vida comunitários ao longo dos séculos XIX e XX. Nesta convivência a floresta ocupa uma posição sagrada, trazendo os elementos materiais e cosmológicos de sua forma coletiva de vida.

Nossa experiência de Etnoeducação “com” os quilombolas de Oriximiná tem início em 2013, na escola Nossa Senhora Aparecida da comunidade Boa vista Cuminã. Reunidos fora das disciplinas e das séries, alguns professores, alunos, merendeiras, barqueiros e comunitários desta escola, decidem pesquisar coletivamente os saberes e fazeres locais (festas, histórias da região, ente outras). Em grupos heterogêneos, às vezes acompanhados do “pessoal da UFF”, inicia-se uma conversa, inspirada nos princípios da Etnoeducação, com àqueles que a comunidade julgam ser os conhecedores e fazedores das tradições (Mestres). Nestes grupos heterogêneos (professores, barqueiros, merendeiras, alunos de séries e idades distintas) vão pesquisando e se engajando em importantes saberes e fazeres de sua comunidade.

Para dar ao leitor uma experiência de como os projetos de pesquisa em Etnoeducação são exercidos, com seus princípios de autonomia, circularidade e protagonismo, mostraremos, a partir de narrativas polifônicas e plurais, como concebemos e operamos estes encontros com os Quilombolas. As narrativas que apresentaremos abaixo foram construídas para que o acontecimento do encontro dos grupos no campo e suas vozes pudessem aparecer sem as separações “nós” e “eles”. É importante ressaltar que este dispositivo de escrita mantém e reúne característica de ambientes muito diferentes, o acadêmico e o comunitário, e visa romper, mesmo que de modo provisório, o isolamento monotemático das escritas acadêmicas.

Esta experiência de construção coletiva e plural com a comunidade Boa Vista Cuminã será apresentada abaixo por três narrativas construídas a partir do encontro de “campo”. Assim, acreditamos, que o leitor terá uma relação sensível e direta com os princípios que norteiam nosso programa. Os procedimentos grupais de inclusão radical da diferença, os modos de gestão dos conflitos que estas inclusões acabam por criar, os riscos e perigos dos antagonismos e disputas que geram exclusões, ficam mais claros a partir da leitura desses relatos.

No início do ano de 2016, iniciamos, com o protagonismo de um de nossos alunos, Matheus Cruz, a escrita inventiva e a construção de narrativas de nossas experiências de campo. Para acolher novos integrantes do trabalho, Matheus resolve escrever um texto de boas vindas, que buscou apresentar as propostas do programa. Inspirado na oralidade e dando grafia aos sons e não a gramática, Matheus lê em voz alta o texto que segue abaixo. A narrativa busca suspender com as pessoalidades do discurso e deixar que os acontecimentos aflorem neles mesmos, incluindo as pessoas como acontecimentos. O que não significa não descrever personagens, mas sim colocar acontecimento e personagem no mesmo plano de importância. Sugerimos ao leitor que leia em voz alta o texto a seguir, pois a intenção da escrita era a de potencializar a referência oral do texto e promover uma conversa entre leitor/ouvinte, personagens e escritor/narrador, sem separações textuais rígidas. A seguir um trecho:

Beber água. Bebia água. Outro copo. Outro. Outro copo. Mais outro copo. Calor. Sede. Nem tanto… Cruzava o pátio da escola. Observava uns movimentos. As personagens em seus atos. A reunião estava sendo puxada pôr Irene e outras professoras. Ei, Mateus! Oi, como cê tá? Sorria. Conversava. Cumprimentava. Observava. I u Pedro, Pedro num vem? Chama u Pedro! Cadê a professora Dilena?! Tá vindu. Foi buscá na sala… Atenção! Tem que tá ligado! Ao mesmo tempo não pode fazer estardalhaço. Deve ser sutil. A roda é importante. Ela transforma o ambiente e propulsiona a circularidade das vozes. Mas a roda tem que ser sincera. Tem que ter todas as vozes… Chama ela! Fala pra ela que depois ela faz isso. Sim, tem que ter a merendeira. O barqueiro. A diretora. A professora. Eu. o Johnny. Os alunos. os alunos?! Us alunos também! Hãããm! Etnoeducação, meu amigo! Tem que botá fé! Os alunos tem voz também. Mas tem que ser sutil, não si pode forçar a participação de ninguém. Um convite. Convite a conversar. Primeiro nós vamos aonde? Primeiro na Santa Rita?! Mas u Seu Manuel vai tá lá? Eli tava pra cidade… Ei, Miguel, teu avô? Já voltô? Aham… O muléqui que tava sentadu meiu di bobera, meiu escutando… Tá não. Tá pra cidade. Quandu eli volta? Pronto. Já entrô… A roda tem sua dinâmica. Ela roda. Bom, dévi rodar… A gente? A gente iscuta. Quanto di gasolina vai precisá? Bom. Vai até quais comunidadi? Qual u barcu? Quantas pessoas vão? Quem fazia u cálculu era u barquero i quem perguntava era u diretor. Isso também é Etnoeducação. Potencializar. Quando as falas circulam, o coletivu si impodera i é capaz di gerir suas soluções. A genti iscuta. Fala quandu é chamado. Observa o jogo de forças. Saca as instituições e as afecções qui atravessam aqueli território. Pei!!! Ah, mas tem qui visitar a comunidadi tal! A escola nunca foi lá! Alguns chamam di analisadoris. São coisas qui a genti iscuta, é um movimentu, sons, coisas qui geram disconfortu ou impulsionam uma análise. Pur que a escola nunca foi até lá? Nessas coisas… Nessas coisas devemos estar atentos! Devemos pescá-las… I acompanhar u desenvolvimento da discussão, conversa. A genti interféri pra somar ou pra istimular que pululem mais falas, mais opiniões. As vezis só iscuta. As vezis queria tantu intervir i não faz. Acontéci. As vezis foi melhó não ter intervido. Sênti! A genti sênti na pele. Na carni. I age! Não planeja. Ou melhó, planeja sabendu qui vai mudá.”
(Texto escrito por matheus Cruz para receber os novos alunos e integrantes de nosso grupo em março de 2016).

Seguindo a mesma forma e inspiração de escrita, construímos também outras narrativas de experiências de campo. A seguir apresento uma narrativa escrita por mim em uma de nossas idas à Oriximiná. Este modo de narrativa, estilo diário de campo, articula de maneira intensiva a descrição e a apresentação da experiência, a partir de determinadas reflexões no calor do acontecimento. Nessa articulação a descrição e a análise não se diferenciam completamente e se aproximam de forma menos teórica ou abstrata. Deste modo, este estilo de narrativa, também oferecida ao leitor, se constitui como um dos pilares do que é fazer, pensar e estabelecer pesquisas Etnoeducação. Vejamos.

Acordamos cedo, todos animados depois de uma viagem com a família que nos pegou em Oriximiná e fez de tudo para que ficássemos em sua casa nas próximas duas semanas que estavam por vir. A sempre animada e “pau pra toda obra” Suélen, mãe de três filhos e seu atual marido Francisco Neto, com seu cavaquinho, faziam de nossa chegada um ritual de aconchego e música. Definido a lugar onde ficaríamos fui procurar a professora Irene, com quem havíamos feitos os contatos de organização de nosso trabalho. Encontro ela na casa da sua irmã e também professora Dilena. Na presença de outros parentes e amigos iniciamos uma conversa com colheradas de caldo de tucunaré e farinha. Irene conta como andam os trabalhos na escola. Diz que os professores estão ensaiando, uns mais e outros menos, suas atividades de ensino atravessadas pelo tema que havia sido escolhido no início do ano, a partir do encontro com nosso programa. O tema disparador “Trajetórias dos quilombos na região”, segundo Irene é um bom tema, pois tem uma abrangência suficiente para permitir diversas apropriações nas turmas e matérias. Assim os trabalhos não ficariam centralizados numa única tarefa, como na ocasião da ramada. Conversamos sobre a importância de que o trabalho em Etnoeducação não fique restrito a outras tarefas distintas daquelas que se faz na escola. Agregando-se a estas, a experiência de Etnoeducação poderia dinamizar e integrar atividades que na escola acontecem, quase sempre, separadas e solitárias. Irene diz que em sua disciplina de História para o 8 e 9 ano vem experimentando estes atravessamentos de ensino, pesquisa e extensão. Convida seus alunos a pesquisarem na comunidade alguns modos de fazer e saber que são constituídos através das trajetórias dos quilombos na região. Na sexta feira, 18 de setembro ela irá fazer uma atividade em que os alunos apresentarão seus trabalhos de pesquisa para toda comunidade escolar. Diz que aos poucos a escola, direção, professores, alunos e pais vão entendendo e que estas atividades servem para integrar e produzir o protagonismo escolar.

Entendem cada vez mais que não são atividades exteriores ao fazer escolar e ao contrário só oxigenam estes fazeres. E interessante destacar que esta prática só parece estranha ao ambiente escolar. O modo como estes quilombolas se organizam no seu cotidiano traz bastantes elementos disto que hora nomeamos por Etnoeducação. Reuniões coletivas e abertas aos comunitários, sem diferenças entre idades. A roda como um modo de conversar e ouvir. A circularidade das palavras e dos ouvidos para que possam ser construídos de maneira coletiva e plural os caminhos a se seguir. Mesmo existindo distinção dos papeis e funções estas não geram relações de comando e de obediência, que levam as pessoas a fazer por ter que fazer. Já na escola, ambiente importado de outro mundo, aonde a hierarquia, as separações de funções, a disciplina pela disciplina e o conhecimento como reprodução de verdades que lhes chegam inquestionáveis parece criar, em relação aos seus modos de vida, incompatibilidades. Daí, talvez certa facilidade em trabalhar com eles estes princípios da Etnoeducação.

Dilena e Irene nos falam que talvez devamos aproveitar nossa visita para realizarmos COM os integrante da escola visitas às comunidades cujas crianças estudam na escola Boa Vista Cuminã. Combinamos iniciar nossa atividade na terça dia 15 de setembro com uma reunião para discutirmos e organizamos nossa semana. Penso o que fazemos ali. E mais uma vez sinto que a opção dos princípios que norteiam o trabalho no lugar de tarefas ou planos a se fazer tem sido uma decisão acertada. O que experimentamos com a Etnoeducação é muito mais um fazer/saber COM do que algo a se fazer ou saber. Para isto devemos estar o tempo todo disponíveis para que nos encontros possamos juntos realizar nossas escolhas, sempre pontuais e estratégias, encontrando os dispositivos e escolhas em que os princípios sejam fortalecidos e exercidos. Deixando e querendo que estas escolhas e decisões coletivas sejam atravessadas pelos modos de fazer e saber destes sujeitos sociais que estamos convivendo.

Nossa primeira refeição matinal na casa de Suélen e Neto têm como vista um descampado imenso que liga o rio à escola. Esta, assim como outras construções comunitárias, barracão de festas, cozinha comunitária, Igreja e campo de futebol habitam o centro da comunidade Boa Vista Cuminã. As casas dos moradores fazem um circulo entorno destas habitações comunitárias. É impossível que atividades comuns não sejam atravessadas e vistas pelas casas dos moradores. O ser individual, próprio dos modos de vida privados de nossas casas na cidade, são quebrados pelo ser coletivo dos quilombolas do Cuminã. Experimentaria nos próximos dias este modo de convívio do individual e do coletivo. Tema tão importante nas lutas destas pessoas. Nossa comida matinal é atravessada de cenas comuns dos outros, como um barco chegando com as crianças da escola, o movimento de banho no rio para vestir a farda da escola. Idas e vindas atravessadas do fazeres individuais, compondo-se numa comunidade e indicando para todos o início de mais um dia na escola. Sinto-me logo, atravessado nesta integração, e sem perceber acabo entrando nesta preparação e matinal para entrarmos na escola. O que faremos lá? Esta pergunta, feita por um de nossos bolsistas, faz-me ver “estrangeiro” de novo. Tira-me da incrível força de pertencimento que hora sentia e nos convoca a ocupar o lugar do “povo da UFF”, como somos às vezes nomeados pelos quilombolas.

Interessante experiência de pertencimento a dois grupos heterogêneos, dois mundos que se propõe a dialogar sem, esperamos, se sobrepor. Conversamos, entre nós da UFF, que vamos evitar o máximo ocupar os lugares de proponentes solitários e vamos apenas propor o que nascer do encontro. Chego primeiro à escola. Muitos ali já são meus conhecidos e outros me são apresentados. Todos me passam a felicidade de termos um “professor da UFF” na visita. Desde o início deste campo, há quatro anos, somente os alunos bolsistas visitaram a comunidade. Vejo, ali o risco que esta posição de “professor” pode gerar em nossos fazeres que iniciam. Neste sentido, evito ocupar a posição de quem sabe e, portanto de quem fala. Do mesmo modo evito ficar só entre os outros professores da escola, reforçando um de nossos piores hábitos escolar que é o corporativismo. As crianças, mais a vontade, se aproximam com a curiosidade de saber quem sou. Abraços e beijos são distribuídos. Aos poucos Guilherme, Matheus, Thamara e Damaris (alunos bolsistas) vão chegando. Matheus, que já conhecia o local, é reconhecido por todos e alegremente vai festejando o reencontro. Professora Irene e os outros professores vão aos poucos iniciando uma organização. Perguntam-me o que acho de fazer uma conversa com os professores, merendeiras, barqueiros para organizarmos nossas ações desta semana. Digo que seria interessante fazer fora da sala de aula. Os alunos vão se dirigindo para atividades do Mais Educação, que acontecem nos primeiros horários. Neste dia a atividade era o desporto, o que é feito de maneira entusiasmada nos arredores da escola. Aos poucos, vamos nos reunindo em roda no pátio da escola. O dispositivo da roda, elemento que nosso grupo vem valorizando a cada dia parece ser neste lugar o modo por excelência de conversar assuntos coletivos. Durante a semana experimentaremos muitas destas cenas em ambientes múltiplos, que vão desde um encontro de mulheres em torno do “fazer unha” até uma conversa dos meninos do futebol que suados e com o sol se ponto conversam para decidir a organização do time da comunidade. Reunidos em roda a Professora Irene inicia a conversa sugerindo que cada um de nós fizesse uma apresentação rápida. O que é feito de modo circular. Depois disto Irene explica um pouco o resumo dos trabalhos anteriores e o que tem motivado os trabalhos deste ano.

Podemos explicar de forma acadêmica o que entendemos por ser coletivo não totalitária, no entanto, as narrativas que construímos nesses encontros expressam de forma mais clara e menos abstrata esse modo de conceber os coletivo. Pois isso, oferecemos mais uma narrativa de campo. Os relatos a seguir são o resultado da transcrição de áudios de um dos encontros na escola da comunidade Boa Vista Cuminã. Para intensificar a polifonia do texto, optamos por transcrever as vozes sem a autoria das enunciações, por acreditarmos que deste modo a escrita se aproxima mais fortemente da oralidade e da conversa realizada. Mais uma vez convidamos o leitor a ler em voz alta o trecho a seguir e experimentar este modo de narrativa.

As outras comunidades pouco vinham, mas eles sempre, sempre estavam aqui. Então eu acho também que precisa incentivar as outras comunidades a esclarecer também dessa, né, do programa do projeto que é importante. As conversas que eu tive com a Irene, as semanas que eles da UFF ficavam aqui, 2013 e 2014. Falávamos que toda atividade da escola, quando a equipe tava aqui, nós fazíamos em conjunto, fazia atividades diferenciadas da sala de aula, usavamo todos os alunos né Elaine? Todos que tavam aqui, fazia com todos eles. Uhum uhum uhum. A gente fazia atividades com as crianças dentro do programa da UFF. Podemos planejar isso também! Uhum, uhum. Entendeu porque o nosso encontro aqui, nesse dia (…) Uhum, é porque também tem três elementos importantes nisso aí né! Um é colocar as nossas impressões, nas atividades, de maneira ativa, então você vai aprender e vai ensinar de maneira ativa agora na comunidade. Não só pra tirar conhecimento, mas pra poder conversar com as pessoas que sabem pra aprender com eles e eles também. O outro elemento é esse de informar e poder convidar pra participar os pais, que estes entendam um pouco disso que tá acontecendo. E o outro exercício é que a própria comunidade daqui, tanto a comunidade escolar quanto comunidade do entorno entenda que isso faz parte do da rotina, né, que isso pode ser a rotina, né. Que eles possam ver e entender que sair para conversar e aprender com os mais velhos eé escola! Que escola não é só ficar anotando no caderno e repetindo os livros. Eles precisam entender o que estamos fazendo aqui com o pessoal da UFF, porque senão a gente fica extra excepcionalmente essa semana fazendo assim e depois volta pra uma rotina diferente. Entender que isso pode acontecer independente da participação do pessoal da UFF. Isso que a gente não fique com tanto medo de sair um pouco daquelas, daquelas, daqueles modos mais tradicionais de cada um na sua sala fechado e ensinando, e o que ta sendo tratado em história repercute em matemática, repercute em biologia, em ciências, né? E que faz parte, né? De um conjunto de saberes e temas que necessariamente tem que ser interdisciplinar, né? Tem que atravessar, né! Então a gente pode a gente ta a disposição de fazer todas essas formas de experiência, experiência na comunidade com os alunos pra poder pesquisar, fazer a pesquisa junto, o que a gente ta chamando de etnoeducação, né!! E também experiências aqui dentro de ensino que também é pesquisa, né. Por que não é só ensino, você também ta pesquisando, você também ta aprendendo. E aí quando eu to dizendo que a gente não tem um planejamento é nesse sentido que a gente está à disposição daquilo que nós achamos que é mais importante, aonde a gente pode tá com vocês neste momento? De maneira mais sensível e aí a gente ta à disposição pra pensar com vocês isso. Mas essas atividades elas são fundamentais, né! Tanto a de convite, quanto a de pesquisa lá fora, quanto também a de ensino e pesquisa aqui dentro. E aí temos (risada) esses dias todos pra praticar junto!

(…) também em cima do que você tem trabalhado em sala no tema da trajetória dos quilombos, alguma questão que cê acha interessante que eles pudessem pesquisar na comunidade, alguma coisa que pudesse retornar pra sua sala de aula, que eles fossem pra lá, mas também voltassem e trouxessem uma coisa pra sala, seria legal, aí pode preparar também, né, não só selecionar os alunos, mas também selecionar com eles as questões. (…) Na questão logística tem que ver qual é o barco, que quantia de diesel ele gasta, quem dos nossos professores vai, como é que fica esses alunos de sexta que não irão pra lá, como é que fica aqui na escola, acho que tem que ver isso, porque não são todos os alunos de sexto à nono ano que vão, são sessenta e dois alunos. Até agora como é. Não é? Como é que vocês trabalharam o tema? Durante esse ano? Nós trabalhamos dentro dos conteúdos entendeu? Por exemplo a professora Antônia trabalha historia, ela faz um trabalho referenciado na geografia na aula…e como é que os alunos vem a se interessado? Oi? Como é que os alunos eles tem se interessado por isso assim? Olha, deixa eu dizer uma coisa, eu não sei se os outros professores tão observando, mas a gente observa que quando a gente faz um trabalho que sai da rotina da sala de aula eles tem mais vontade de fazer, entendeu? Que sabe aquele negócio de todo dia ta no quadro escrevendo, explicando, falando, é eles fazerem na prática, isso pra eles, a gente percebe que eles tem mais vontade de fazer. Tem um aluno ali, nosso aqui, que ele é mudo, né, ele não fala, mas enquanto a gente ta dando aula no quadro ele não faz nada, ele não escreve nada, ele, mas se der uma coisa, um desenho, pra ele fazer, é com ele mesmo. Se sair da sala de aula pra fazer outra atividade é com ele mesmo. Então a gente observa que o aluno ele ta cansado desse dia a dia de escrever, escrever, escrever, explicar, entendeu, tem que fazer um tipo de atividade que seja diferenciada. Então cê acha que vai ter muita gente que vai querer dar esse passeio? (Risada). Mas aí tem que pensar na questão do barco, vai que um aluno (…). É deixa eu fazer uma outra sugestão, eu to escutando vocês assim e to pensando com vocês, é a Damaris fez uma pergunta interessante e a Irene indicou co como que vocês tão trabalhando e a partir um pouco das disciplinas, das matérias, talvez pudesse selecionar em cada disciplina e em cada matéria não só os alunos, mas também temas, temas vinculados a esse tema que seria interessante discutir na comunidade, né então. Eu pensei em uma coisa, posso falar? Vocês já trabalharam com a castanha? Porque é bem presente aqui pra vocês, não é? Porque eu tava conversando e pensando e é da pra trabalhar tanto na questão da geografia tanto na questão das artes porque você pode elaborar desenho sobre a castanha, você pode trabalhar com com o português, você pode fazer uma narrativa sobre a castanha, uma pesquisa e, e ver nessas outras comunidades que vocês indo tão “ah, tem castanha aqui?” e então identificar a planta, não sei. É que ta tudo aqui na trajetória dos quilombos, aí teria que pegar a história da castanha através da do da trajetória dos quilombos, aí poderia ser , se vocês acham, poderia ser um tema, né. Se ele é, se ele é… Acho super importante (…) ela ta dentro da história desse lugar. É, saber sobre a história. É porque assim como a gente se pega trabalhando passo a passo, não da pra pegar tudo, entendeu? Vai pegando primeiro a tradição da espécie, depois pegar a tradição do local, do alimentar, do tipo de alimentação, depois vem essa questão da castanha. A escola que fica na outra comunidade quilombola no Araçá já fez esse trabalho da castanha, já foi o trabalho deles, no outro ano o tema desta escola foi a madeireira, né, da exploração. Então eles, os professores e os alunos, tem um pouco a história da castanha e dos castanheiros, do castanhal, e da madeireira. O que acontecia? A gente pode fazer um intercâmbio de conhecimento, esse tipo de referência que aproxima, né!

(…) É, mas eu, mas eu, eu acho que a Damaris ia falar nisso, eu acho interessante a gente colocar, é, é, se tem uma coisa bacana nesse encontro nosso aqui é que nós somos muito diferentes, né? Então é colocar aluno de comunidades diferentes pra pesquisar em comunidades diferentes (…)

Considerações finais:

O trabalho de Etnoeducação em Oriximiná, desenvolvido no município desde 2011, se constitui como laboratório de construção coletiva e plural de modos de ensinar e aprender COM o outro. A partir de princípios basilares temos criado, na singularidade do encontro, trabalhos de pesquisa e intervenção, em diversas comunidades da região. Através de práticas de gestão grupal, tanto no grupo da UFF, como em encontros com os coletivos quilombolas e com seus modos singulares de “ser coletivo”, mergulhamos radicalmente nestas experiências.

Destacamos como proposta primordial do trabalho, até aqui desenvolvido, os modos de ensinar a aprender COM e não sobre o outro. Modos de ensinar e aprender que podem incluir, sem unificar, as diversidades locais. Ao trabalharmos com o processo, toda e qualquer chegada é provisória, os resultados não podem, portanto se descolarem das forças vivas que vão se fazendo presentes, sendo intrínsecas à formação. Assim, nossa experiência não pode ser utilizada como modelo para outras práticas. Os caminhos devem ser construídos no caminhar, sem referências fixas e universais. Evitamos conceber, neste sentido dicotomias, como já elencadas no artigo.

Para finalizarmos, deixamos a questão norteadora que tem nos sustentado: é possível pensar e formar grupos heterogêneos para além de dicotomias, sem cair em unidades unificadoras? nem o Um nem o Dois! Como dizia o Xamã Mbyá-Guarani em uma conversa com Pierre Clastres, já citado em nossa epígrafe, “as coisas em sua totalidade são uma: e para nós que não desejamos isso, elas são más” (CLASTRES, 1995).

 

Johnny Alvarez é Professor Adjunto IV de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Vice coordenador do Programa de Extensão “Educação Patrimonial em Oriximiná-PA” desde julho de 2011.
Imagem em destaque – corpo docente e discente da Escola da Ponte, local onde é desenvolvido o projeto de etnoeducação com comunidades quilombolas, em Oriximiná-PA. Foto: Johnny Alvarez/ UFF.
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