Márcio Souza e a Amazônia dez anos depois

Márcio Souza, de óculos, olha para o lado esquerdo.
O escritor Márcio Souza, que faz 76 anos no dia 4 de março. Foto: Matheus Dias

Márcio Souza é esse tipo de escritor que não se acomoda à ficção. Autor de uma vasta produção ficcional e histórica, entre elas Galvez, o imperador do Acre e Mad Maria, História da Amazônia, Amazônia indígena e Cadernos de Literatura Brasileira, o escritor também se dedica ao teatro, a cenas da vida cotidiana escrevendo crônicas, além de ser roteirista. Em entrevista ao cineasta Jorge Bodanzky, em 2009, o escritor amazonense nascido em Manaus em 1946 fala sobre a Amazônia e seus contrastes. Dono de uma vasta biblioteca com coleção de livros e filmes do cinema brasileiro e português, e mais de mil filmes do cinema mudo, Márcio Souza recebeu Bodanzky em seu apartamento de cujas janelas com vista para o centro de Manaus, inclusive para o suntuoso teatro Amazonas, consegue tirar belas fotos da paisagem que o rodeia de vários ângulos, segundo ele.

Márcio fala sobre o que ele chama de ascensão dos povos indígenas na Amazônia ao comentar sobre os trinta anos de realização do filme documentário Terceiro Milênio dirigido por Bodanzky. Para o escritor, os indígenas do início do século XXI, diferente daqueles dos anos 30 e mais especificamente dos anos 70, conseguiram seu protagonismo e já não são mais os tolos que aceitavam passivamente o que os militares do marechal Rondon levavam para eles em outros tempos. Não mais acreditam na retórica dos brancos. Há, segundo Márcio, no documentário, um aspecto curioso, já apagado na memória, que é a presença nordestina na Amazônia que se tece pelo movimento messiânico na figura do mestre José da Cruz.

Numa espécie de argumento popular que afirma o nordestino, quando leva um susto, vira cangaceiro ou fanático, Márcio considera que os nordestinos, dos tantos sustos que levaram na Amazônia não tiveram tempo de tornarem-se cangaceiros, mas principiaram de tal modo o messianismo que acabou contaminando os Ticuna num momento de desespero em que certo modo estiveram desorientados. Hoje, os Ticuna são a etnia mais bem organizada do Brasil, com uma liderança extremamente inteligente, ainda que não tenham atingido um patamar de inserção no diálogo nacional como acontece com os povos das etnias do rio Negro. Mas, é certo, constata-se uma evolução marcante da que se observava em outros tempos na história do Brasil.

De volta de uma viagem pelo território dos Ticuna, Márcio considera importante a Universidade estar presente naquela região. Há um polo da Universidade do Estado do Amazonas em Tabatinga, e em Benjamin Constant, o campus da Universidade Federal do Amazonas em estágio de ampliação. A presença das duas universidades na tríplice fronteira não representava, no ver de Márcio Souza, apenas a inclusão em um curso superior, mas de certo modo a esperança de oportunidades de novas frentes de emprego para uma geração de jovens que não precisarão sair de suas comunidades, e após formados poderiam continuar trabalhando na região, seja como professor, advogado ou em outro cargo público que se oferecessem via concurso público. A ausência das universidades naquela região obrigaria os indígenas a saírem de suas localidades e a viverem nas periferias de Manaus. A velha ideia – e de certo modo uma acusação infundada de lideranças de outras comunidades e antropólogos – de que os Ticuna almejavam tornarem-se brancos se esvaziou na afirmação cultural dos indígenas, que buscam manter sua tradição e firmar sua cultura. No ver de Souza, há um renascimento cultural Ticuna.

Com relação ao futuro da Amazônia, o escritor amazonense se dizia pessimista àquela altura, pois, segundo ele, as questões que envolvem a região não dependem de decisões internas, dos que moram na Amazônia, são problemas externos, que também não são estrangeiros, mas governamentais, uma decisão dos poderes federais. Àquela altura, em 2009, as questões sobre o meio ambiente eram vistas como encrenca, o que escondia um problema maior, que é o desrespeito às leis da parte dos que as propõem e aprovam-nas. As leis acabam caindo no vazio ou no descrédito, porque seu cumprimento, na região, não é reforçado ou mesmo desconsiderado. Há também a falta de atenção e apoio aos cientistas que trabalham com as questões ambientais e são responsáveis por entender os problemas da região. A insuficiência do número de doutores na Amazônia – que deveriam ser pelo menos dez mil – ajuda no emaranhado dos problemas. Além disso, há os problemas gerados com a criação de gado e com a plantação da soja. Para Souza, o estado do Amazonas, que até certo tempo se mostrava protegido de certas interferências de outras regiões, começava a ser invadido por grileiros do sul do Brasil – paulistas e paranaenses principalmente – que “invadem, matam, destroem a floresta para a plantação e comida do gado”.

A Amazônia, segundo Márcio Souza, em 2009, possuía mais cabeças de gado do que gente. A população hegemônica da Amazônia não são as pessoas, mas os bois. Com uma população, naquela década de cerca de 16 milhões de pessoas, ultrapassada por mais de 30 milhões de bovinos e outras espécies. Outra questão que se pode observar é a da Zona Franca – hoje Polo Industrial – que se constitui do trabalho intensivo e do capital extensivo, principalmente tornando-se como o quintal da montagem final de certo produtos, com mão de obra mais barata em relação a outros lugares de origem das empresas que se instalaram em Manaus. Ao mesmo tempo em que se fala que o polo industrial ajudou a preservar o Amazonas, Manaus especificamente, com relação ao meio ambiente, acabou criando um outro problema, que se torna bem maior: o Polo Industrial transformou Manaus uma espécie de cidade-estado, que produz cerca de 55% de tudo o que o Amazonas representa e produz. Manaus tornou-se refém da Zona Franca, observa o escritor. Em 1968, com uma população de cerca de 200 mil habitantes, em 1970, 600 mil, e 2009, chegando aos 2 milhões, quando deveria acolher cerca de 500 mil pessoas apenas.

Grande parte das pessoas que moram na cidade de Manaus é formada por miseráveis de outros estados em busca do sonho da Zona Franca, que acabam não encontrando aquilo de que precisam, são obrigados a morar nas periferias. Manaus, segundo Márcio Souza, é uma cidade que não integra seus moradores, e para que isso venha acontecer, serão necessários mais de 50 anos, pois a cidade de certo modo não possui uma estrutura adequada para integrar as pessoas que chegam em busca de melhores condições de vida. Olhando pelo viés de Manaus, Márcio considera que os projetos propostos para a Amazônia são um fracasso, em todos os sentidos, porque se fazem desde a exploração da mão de obra ao aniquilamento e expulsão das populações tradicionais; também são um fracasso nos métodos de apoio à região. E, numa alusão ao Manifesto Surrealista dos anos 20 e 30, no contexto do que pensava André Breton, vistos por muitos como retórica, “a burguesia quer assassinar a humanidade”, não mais pode ser visto como retórica, pois os grandes capitais que representam a burguesia buscam incansavelmente o lucro. Nesse contexto, Márcio Souza pensava, àquela altura, que essa questão do atropelamento burguês se fazia globalizado, não podendo ser visto apenas no viés amazônico, mas mundial. A questão, sob o viés brasileiro, é desenvolvimentista, estúpida, que incita o consumismo, sem qualquer reação dos poderes nacionais, que de tal modo sucumbem. Seria urgente, portanto, uma tomada de atitude daqueles que pensam a Amazônia e vivem nela. Finaliza Márcio Souza: “Não vejo solução para a Amazônia. E mais. Não sei o que vai acontecer com o futuro da humanidade. Não sei se vai virar mais um século, a considerar o caminho que estamos indo”.

Nota do editor

Dez anos após Márcio Souza conceder a entrevista ao cineasta Jorge Bodanzky, suas palavras – e em certo sentido profecia – parecem seguir o caminho vislumbrado pelo escritor amazonense. Os problemas ambientais são cada vez mais graves, com o acirramento de conflitos entre as mais diversas facções contra os povos indígenas; o desmatamento vem acelerando, a contar o processo deplorável nos últimos meses de 2019, quando resultaram em incêndios em várias áreas das florestas da Amazônia, mobilizando vozes dos mais diversos pensamentos, inclusive internacionais, com cobranças ao governo brasileiro por medidas concretas para a proteção das florestas. As grandes extensões de florestas derrubadas para o plantio de soja e criação de gado aumentam, como se percebe na região do Tapajós no Pará e na região de Altamira, deixam o vazio e morte, esta motivada pelo intensivo uso de agrotóxicos nas plantações de soja e milho.

 

A entrevia com Márcio Souza foi gentilmente cedida pelo documentarista Jorge Bodansky.
A imagem usada no thumbnail foi tirada por Matheus Dias.
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