A floresta, o outro lado do que queremos ser?

floresta lado amazônia

Descobri recentemente, lendo a coluna “Léxico” do jornal Nexo, que o termo floresta, decifrado por Sofia Nestrovski, vem da palavra latina “foresta”, que é uma combinação de foris, que significa do lado de fora, e silva, que significa os bosques cultivados dentro dos muros dos castelos. A combinação, surgida na corte de Carlos Magno, entre os séculos 8 e 9, tinha um caráter jurídico de delimitar legalmente um terreno fora dos muros do castelo que serviria como reserva de caça para uso exclusivo do rei. O termo em francês “forêt” e em italiano “foresta” conservam a mesma raiz anteriormente citada e o português acrescenta a ela um “l”, talvez para tornar o vocábulo próximo a flor e flora, o que não o desliga totalmente de sua significação anterior.

As palavras tornam-se atos por suas significações. Mesmo que naturalizemos ou nem saibamos de tais significados, eles estão em nós: em modos de pensar, em modos de agir… não há como negar que sempre entendemos a floresta como um lado de fora do que somos. Foi o que fizemos por séculos: jogá-la para fora do que compreendemos como humanidade. Conseguimos transformá-la em perigo, em símbolo do atraso, em algo homogêneo e pouco complexo e demos o golpe de misericórdia ao torná-la uma ameaça ao progresso, palavra que vem do latim progredi que significa avançar e ir para frente. Assim, tornamos a floresta algo fora do que somos e bem atrás daquilo que queremos ser.

No Brasil, conseguimos transformar toda uma região com imensa diversidade étnica e complexidade humana, a Amazônia, na nossa expressão de floresta. O imperativo natural, essa imagem sempre do alto a representar o que está abaixo de nós por um verde homogêneo, levou uma região inteira para fora das nossas grades de compreensão do que inventamos como nação, transformando-a, também, naquilo que não somos e não queremos ser.

Esse modo de jogar para fora a floresta, varrendo para um cantinho desprezível a Amazônia, transformou-se em uma engrenagem de destruição e morte, que sempre sangrou territórios de múltiplos povos nessa região, através de hidrelétricas, extensas fazendas de gado, da exploração desenfreada de madeira, de plantações de soja e milho, de ferrovias e de projetos de mineração. Essa engrenagem, hoje, a cada novo comentário esdrúxulo daquele que nos preside, reativa-se e jorra fogo e sangue pelas mãos daqueles que não conhecem outra forma de ganhar dinheiro senão pela violência e destruição. Não poderíamos esperar outra coisa de um governo que corta recursos para prevenção de incêndios florestais, bloqueia dinheiro do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) inviabilizando fiscalizações e incentiva o desmatamento e a violência no campo e na cidade.

A síntese mais asquerosa que nossa sociedade poderia dar, ao jogar a floresta para o lado de fora do que inventamos por civilização, talvez tenha sido o ato de fazendeiros e grileiros da BR-163 de queimar a mata para demonstrar trabalho ao presidente do Brasil. O que o “dia do fogo” (como foi chamado, na Amazônia, o dia escolhido para as queimadas – 10 de agosto de 2019) queimou não foi só a floresta, mas também o relativo silêncio público que ainda tampava os bueiros da economia de morte e destruição que sempre existiu como uma máquina a drenar energias vitais da Amazônia. Chegamos, definitivamente, a uma bifurcação civilizatória quando o que há de mais podre em nossa sociedade vira motivo de orgulho, quando o cheiro de queimado intoxica nossa consciência e, assim, conseguimos comemorar o fogo e o sangue. Ao ponto que chegamos, ou mudamos nossas referências ou seremos cúmplices do nosso próprio massacre.

Muito se tem dito em defesa da floresta e por extensão da Amazônia, mas algo há de se ter em conta antes de qualquer boa vontade de quem quer que seja: não há perspectiva de futuro para a Amazônia sem considerarmos a sabedoria de seus povos, uma vez que a floresta é, também, o saber-fazer daqueles que a habitam muito antes de nós.

É pelo saber desses povos que começamos a mudar nossas referências. Em seu livro, cujo título já é um presente, “Ideias para adiar o fim do mundo”, Ailton Krenak adverte: “A ideia de nós, humanos, nos descolarmos da terra, vivendo uma abstração civilizatória, é absurda. Suprime a diversidade, nega a pluralidade de existência…”.

O mesmo Krenak, então, oferece-nos outras referências para nos fazer reconstruir a perspectiva do que até então reduzimos ao vocábulo floresta: “quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista”.

O pensamento de Ailton Krenak não constrói, como fazemos, uma rígida hierarquia entre homens, animais, plantas, terra, montanha, rio… o fato do rio e das montanhas possuírem personalidade, significa que carregam um discernimento, por isso não há relação hierárquica entre o que convencionamos chamar de racional (nós) e o que arrogamos o lugar de irracional (a floresta), pois a humanidade não se restringe aos humanos. Então, descolarmo-nos da terra é tornar nossa existência vazia, assim como despersonalizar um rio ou uma montanha é transformá-los em resíduos de atividades industriais.

Talvez uma outra palavra nos ajude a entender a tamanha riqueza que Krenak nos oferece e, ao mesmo tempo, a perceber a tamanha pobreza de significação que oferecemos à floresta. A palavra é Hutukara, usada pelos xamãs Yanomami para denominar aquilo que talvez nossa língua entenda por mundo. David Kopenawa Yanomami, que também nos oferece um presente em seu livro com Bruce Albert “A queda do Céu”, ensina-nos que “a Hutukara fica junto com a pedra, terra, com a areia, o rio, o mar, o sol, a chuva e o vento. Hutukara é um corpo, um corpo que é unido, ela não pode ficar separada (…). Ela é uma grande casa e nós estamos dentro do corpo dela (…). Hutukara é nossa mãe, ela que deixa nascer”.

Na defesa dos territórios Yanomami contra a mineração, Kopenawa completa sua perspectiva dizendo:

“não pensamos as coisas de forma dividida, pensamos na nossa terra-floresta como um todo. Se vocês destruírem o que está abaixo do solo, tudo que está acima também sofrerá. Não somos apenas nós, povos indígenas, que vivemos na nossa terra. Vocês querem perguntar a todos os moradores da floresta o que eles acham sobre a mineração? Então perguntem aos animais, às plantas, ao trovão, ao vento, aos espíritos Xapiri, pois todos eles vivem na floresta. A floresta também pode se vingar de nós, quando ela é ferida”.

O perspectivismo de Kopenawa nos faz lembrar que devemos ouvir a floresta para compreendê-la, pois há uma unidade existencial entre ela e a nossa terra. Assim, entendemos que homens, animais, plantas, o trovão, o vento, os espíritos Xapiri compõem a humanidade da natureza.

Krenak e Kopenawa invertem nossas referências, desfazem as dicotomias que organizam nosso pensamento, tiram a floresta do lado de fora e colocam-na do lado de dentro, e esse deslocamento de sentido é, fundamentalmente, um alerta para adiar o fim do mundo ou a queda do céu. Ver a floresta no lado de dentro é colocar no centro de qualquer perspectiva de futuro para todos nós, a perspectiva de futuro dos povos que a habitam.

Nossa arrogante norma culta talvez não compreenda exatamente o que os povos da floresta, hoje, nos dizem sobre a floresta. Quem sabe se buscarmos no Tupi, e não em nossas línguas coloniais, não entendemos melhor. Toda língua é um mundo e no mundo Tupi o tempo não é indicado por verbos, por ações, mas em sufixos agregados a substantivos. Assim, na língua em que o movimento é dado pelas coisas, a história carrega cheiro, sabor, visualidade, bem como os horizontes são concretos e expressivos, pois é o mundo das coisas que nos apresenta o significado do tempo. Uma árvore, um rio, uma montanha, portanto, ao passo que carregam as marcas de expressão do que foi, delineiam também, os horizonte do vir a ser! Impregnados por essa língua do mundo, outras cosmologias, outros modos de pensar e agir trazem decisivamente a floresta para o lado de dentro do que somos e queremos ser.

O alerta está sendo dado por aqueles que, por nossa preguiça cognitiva, há tempos ignoramos. Um alerta que, aliás, já foi até mesmo antevisto em canção:

“Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante 
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
 E pousará no coração do hemisfério sul,
Na América, num claro instante.

(…)

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos, não por ser exótico 
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto 
Quando terá sido o óbvio.”

Caetano Veloso

 

Bruno Malheiro é Geógrafo, mestre em Planejamento do Desenvolvimento (NAEA/UFPA), doutor em Geografia pela UFF. Professor da Faculdade de Educação do Campo da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.
Imagem em destaque – a monocultura da soja, símbolo de lucro e prosperidade para o agronegócio brasileiro, varreu grandes porções da floresta amazônica nos arredores de Santarém-PA nas últimas décadas. Foto: Amazônia Latitude.
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