A cidade amazônica de Edyr Augusto

Pssica
Autor: Edyr Augusto
Editora: Boitempo
Ano: 2015

Uma kombi com vidros negros encosta. O coroa e Dionete a seguram pelos braços. Abrem a porta. Ela está dentro da kombi. O que é isso? Leva um murrão nos seios e cai. Alguém diz: Valeu! O carro arranca, balançando nos buracos. O que é isso? Um chute na bunda. Cala a boca. Mas. Cala a boca, caralho! Não dava para ver pelos vidros aonde estava indo. Fechou os olhos, se encolheu e chorou. (Edyr Augusto, em “Pssica“)

A trama do último livro de Edyr Augusto, Pssica, começa com o rapto da protagonista, Janalice, próximo ao centro comercial de Belém do Pará. A cidade por onde ela vagava será, depois, uma mera lembrança. É exatamente assim, como uma imagem borrada e indefinida, que a urbanidade da região amazônica surge nos livros do escritor belenense. Janalice, nessa literatura, é só um fotograma de uma narrativa sem heróis, na qual todos parecem raptados, sem saber aonde ir.

Edyr Augusto é hoje um dos nomes mais proeminentes da literatura contemporânea brasileira. Seus livros, editados a partir da década de 1990, foram pouco a pouco ganhando destaque da crítica e, já se pode dizer, do público leitor. Alguns deles foram traduzidos para a língua inglesa, como “Casa de caba”, e francesa, como “Os Éguas” e “Moscow”. Desde então, o escritor paraense tornou-se um dos principais personagens que representam a complexa contemporaneidade da urbanidade amazônica.

Longe de ser um porta voz de uma única e imutável identidade regional, sua literatura está muito mais ligada às últimas três décadas da realidade urbana da região. Essa realidade está situada especialmente em seus centros urbanos, mais especificamente, em Belém do Pará. É com “Os Éguas”, de 1998, primeiro romance do autor, que essa trajetória e essa narrativa começam a se desenvolver.  Nesse romance, já está presente uma caracterização da região que destoa radicalmente das imagens consagradas pelos discursos regionalistas e midiáticos. A Belém que surge é povoada pela degeneração de seu ambiente. A cidade se faz presente pela violência, pela corrupção, pelas drogas, pela simulação e pelo medo. Através do Personagem Gil, um investigador de polícia, a capital do Pará e seus “tipos” saltam para fora, agônica e doente, como um instinto represado pela dor. 

Essa caracterização se seguirá nos livros posteriores, como “Moscow” (2001), “Casa de caba” (2004), “Um sol para cada um” (2008), “Selva concreta” (2013) e “Pssica” (2015). Sobre Selva concreta, escrevi: com uma escrita de parágrafos curtos, entremeados por ações simultâneas e linguagem coloquial, vamos passando pela Belém que, de certa forma, é aquela que surgiu nos últimos vinte anos. As histórias são típicas, mas de uma tipicidade do cotidiano contemporâneo, dos fatos que enchem os jornais, da decrepitude de uma cidade que já se quis a Paris dos trópicos. É lamentável? É. Mas a literatura de Proença não lamenta a cidade, ela a representa. Repleta de gente e do mal. É claro que Belém não é apenas isso, mas esse isso não é mera invenção literária”.

Sobre Pssica: “Pssica é uma faca que entra no ‘bucho’ de todos. Há outra região que os postais e as notícias não contemplam. Não há mais nada para ser contemplado […]. Não há justificativas morais redentoras para explicar essa existência vil. Justificativas não servem para essa escrita expressionista e, propositalmente, mundana. Pulsões determinam ações, como as linhas indomáveis que descrevem essas vidas”. 

Essa obra está, do ponto de vista temático, ligada a essas transformações pelas quais a região e sua urbanidade passaram. A riqueza proveniente dos grandes projetos não se transformou em benefícios para as populações das cidades, as intervenções estatais propiciaram poucas melhorias nas condições sociais, pelo contrário, um quadro que se anunciava já na década de 1960, tornou-se um retrato desolador. Os últimos 30 anos da Amazônia são marcados por, dentre outros aspectos, o inchaço das cidades, motivado pelos deslocamentos do interior do estado e de outras regiões para a capital; problemas econômicos e sociais, desemprego, moradia; um trânsito cada vez mais desordenado; e um aumento vertiginoso de crimes, violência e corrupção.

Essa caracterização que alimenta o noticiário “mundo cão” das capitais é também o tema dos livros de Edyr, mas neles não demonstra apenas uma imagem aterradora em fragmentos, mas sim um projeto de escrita que formaliza a contemporaneidade decrépita que a todo dia cintila e obscurece nossos olhos. Do ponto de vista mais subjetivo (do ponto de vista do espírito citadino), vale a pena citar a análise de Edna Castro sobre essa urbanização:

Belém e Manaus, grandes metrópoles, receberam, ao longo desses anos, pessoas de tantos lugares do Brasil, vindos de cidades ou de vilas, ou ainda do campo – mas num movimento contínuo de busca de outros lugares e de sentidos. As cidades transformaram-se e não podem mais ser iguais aos anos de 1960, ainda que permaneça uma certa nostalgia que é encontrada em gerações e traduzidas em textos literários. Essas cidades estão inseridas num contexto de mudanças econômicas, sociais, políticas e territoriais. Ao definir o sentido do lugar mostra a dimensão profunda desse universo subjetivo, e sua universalidade encontrada na condição humana e certamente constitui o cerne da alma das cidades que precisamos captar para podermos entender suas sínteses e universalidades. […] Essa dimensão subjetiva que está nos pequenos processos do cotidiano, do espaço vivido, ou também suas angústias por recorrer ao vivido, ao sentido na experiência, tem também sua universalidade. Essa percepção do lugar, lugar enquanto singularidade e ao mesmo tempo lugar como universalidade da condição humana nos interroga sobre o que muda, e o que se transforma do ponto de vista das relações entre as pessoas; e a noção de lugar enquanto território da subjetividade. As cidades expressam esses vínculos em escalas diversas, nacional e localmente. Refletem as relações econômicas de produção no mercado de trabalho e as racionalidades produzidas pela experiência social” (Edna Maria Ramos Castro, em “Urbanização, pluralidade e singularidade das cidades amazônicas”).

O que está em jogo aqui é a possibilidade de vislumbrarmos essas outras faces da contemporaneidade urbana amazônica, não apenas para atestar esses aspectos desoladores, mas, fundamentalmente, compreender que não os reconhecer, ignorá-los, é também ignorar essa história, essa configuração social, essa realidade e, por conseguinte, uma das mais importantes formalizações estéticas que se encarregam de representá-la. Não é apenas negar, como reação, uma Belém idealizada veiculada ainda hoje por vários discursos (midiáticos, sociais, institucionais), mas é – sob pena de virarmos as costas para o contemporâneo e sua decisiva importância que, gostemos ou não, transformaram parte do ethos do ser amazônico, belenense – dar visibilidade de modo esteticamente construído, a uma formalização que dialoga decisivamente com essa experiência.

Mais do que uma outra face da Amazônia, de suas cidades, essa caracterização surge como uma possibilidade de reconhecermos que, se a arte não é, obrigatoriamente, um sucedâneo da realidade, ela não é apenas uma manifestação extemporânea. No caso da literatura de Edyr Augusto, isso é ainda mais revelador. Exatamente porque ela pode nos proporcionar uma representação da realidade que está, ao mesmo tempo, próxima demais do leitor e distante demais (o jornalismo a aproxima pelo fragmento, pelo fait divers) de uma representação estética que a formalize, que a reúna em um corpo discursivo que tem, nessa realidade, seu substrato.

Vejam, por exemplo, a abertura do conto “Sujou”, do livro “Um sol para cada um”, que integrou, em 2010, a “Antologia Pan-Americana: 48 contos contemporâneos do nosso continente”:

Eu já sacava o cara. A gente fica ali na esquina e vai vendo as figuras da vizinhança. Basta qualquer barulho e eles chegam na janela dos prédios. Fica tudo lá, olhando. Mas parece que tem uma fronteira, sabe? Daqui para lá e de lá pra cá. Lá pra frente os barões. Aqui pra trás a zona. Mas é que às vezes tá roça mesmo. Ele chegou com o carrão e ficou esperando abrir o portão da garagem. Encostei, disse oi, pedi uma ponta, cigarro qualquer coisa. Disse que dava chupada, essas porras. Me deu uma banda. A Maricélia disse que podia dar merda, o cara se queixar, sei lá, segurança do edifício. Não deu. Disse que outro dia, tava de nóia, rolou discussão e mandaram chamar a polícia por causa do barulho(Edyr Augusto, em “Um sol para cada um”).

Percebam como esse estilo e essa temática são esteticamente construídos em estreita relação com o gênero de literatura policial. Mas ao contrário do clássico romance policial, que primava pela constituição do seu personagem principal (um detetive) como um sujeito sóbrio, talentoso, genial e pela decifração de um crime de maneira lógica, precisa, implacável (por uma representação da cidade onde o criminoso é ainda um elemento que se esconde na multidão e nela figura como um “homem da multidão”), a literatura de Augusto está muito mais próxima do gênero Noir/Pulp, no qual o crime é parte essencial da grande cidade que, se não a define, a constitui de maneira inquestionável, como nas cidades norte-americanas povoadas pelo crime das primeiras décadas do século XX. Nesse ambiente, o detetive é alcoólatra, a violência é um de seus recursos, ele não é excepcional e a cidade que passa diante dele lhe parece como um acúmulo de seres e paisagens decaídos. 

É desse modo que as linhas de Edyr Augusto se apresentam. De um lado, com uma ligação muito próxima à realidade que representa e, de outro, com uma forma, uma estética, que seria, em alguns aspectos, a única capaz de representá-la. A vida contemporânea em uma capital da Amazônia será representada pelas histórias das vidas que são descritas no livro como histórias ora próximas, ora separadas, para, no final, elas se colidirem (essa é a palavra correta) em um epílogo que, mais do que desvendar um crime, traz à tona uma cidade na qual uma experiência decadente dos sujeitos é a imagem do lugar; olha-se para a cidade através dos personagens, olha-se para a cidade através da vida que não se pode mais deixar de ver. Vidas visíveis por palavras impactantes, por frases comuns, pela superficialidade rápida e fugaz da construção imagética, como se observa as imagens superficiais e rápidas de um ambiente contemporâneo” (do autor, em “Antropologia e filosofia: experiência e estética no cinema e na literatura da Amazônia”).

Assim é a representação de Augusto. Sua narrativa, preenchida por essas características, adota uma série de imagens que remetem a lugares físicos, às caracterizações profundamente imagéticas de situações e focalizações de seus “tipos” urbanos que, propositalmente, contrastam com um romantismo discursivo acostumado e atrofiado sobre a região, possibilitando uma percepção “distanciada” e necessária sobre o lugar. 

Eis a cidade que sua literatura representa e se relaciona. Sua forma, que em ritmo vertiginoso, mimetiza o diálogo coloquial, o ritmo da cidade, a fragmentação dos jornais, o choque, a indiferença. Uma representação que tem por temática o urbano e sua contemporaneidade, uma escrita que é realizada como um roteiro cinematográfico, repleta de imagens que nos levam diretamente para fisionomias imagéticas/fílmicas de Belém do Pará.

De 2013 a 2015 tive a oportunidade de coordenar um projeto de pesquisa chamado Fisionomia Belém, que realizou, dentre outras atividades, banco de imagens sobre Belém do Pará, seminário temático, exposição fotográfica, produção de artigos, monografias e dissertações de mestrado. Também realizamos a produção do documentário Fisionomia Belém (2015- 50 min.). Esse documentário, que visou “pensar” Belém sobre a perspectiva de sua realidade contemporânea e, mais especificamente, através de temáticas artísticas que tem essa finalidade, trazia essas inquietações sobre a contemporaneidade da cidade. Edyr Augusto foi um de nossos entrevistados e seu depoimento, do ponto de vista imagético, foi o mais instigante.

No documentário, Edyr comenta sobre uma experiência conflituosa presente na cidade. Uma experiência que denotava uma falta de sentido de pertencimento daqueles que nela habitam. A cidade do passado, a petit Paris, como se almejava na virada do Século XIX para o XX, como “sonho de futuro”, conforme Walter Benjamin em “Cidade de Sonho e morada de sonho, sonhos de futuro, niilismo antropológico, Jung”, acabou, na contemporaneidade, realmente, tornando-se pequena. Na pequenez dos propósitos de cidade que não se realizam, na vida que nela se experiencia.

Augusta não é a cidade amazônica de Edyr. Nela pode-se caminhar pelo centro histórico da cidade, não para contemplar as calçadas de pedra de lioz, os antigos casarões da época da borracha, ou ver a praça que ainda resiste. Nela se caminha, a todo momento, sob o signo do medo, raptados do sentido histórico e sem saber aonde ir.

Uma versão deste texto foi publicada no jornal Diário Online em 12 jan 2019.
Relivaldo Pinho é Doutor em Ciências Sociais (Antropologia) pela UFPA. É autor do capítulo Clifford Geertz (1926-2006), do livro “Os antropólogos: clássicos das ciências sociais” (Vozes; PUC-RIO, 2015). Foi Coordenador Adjunto do Curso de Comunicação Social da Universidade da Amazônia (UNAMA), e Coordenador da especialização em Jornalismo, Cidadania e Políticas Públicas. Foi professor do Curso de Comunicação Social e do Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura da UNAMA, e coordenou o Projeto de Pesquisa “Fisionomia Belém”.
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