O Universo Mítico Feminino Sateré-Mawé

Os Sateré-Mawé são um povo que se constrói com a memória de um tempo passado onde não havia distinção entre o céu e a terra, entre homens e animais, tudo era um. É em busca desse mapa interior traçado por eles próprios que buscamos compreender a narrativa de seu mito fundador, dando especial relevo ao tempo enquanto expressão do feminino que na raiz de sua origem mitológica está relacionada ao tempo e ao destino.

Reconstruir as teias mitológicas do povo Sateré-Mawé na perspectiva de sua ontogênese é se perguntar por uma dimensão do ser a partir de sua condição existenciária, para fazer jus as ideias expostas por Martin Heidegger em  Ser e Tempo (2004). Ou seja, trata-se do exercício do existir num tempo dado, que para esta etnia, está diretamente relacionado ao Grande Feminino enquanto destino (moira), observado em Os pressupostos míticos de C. G. Jung na leitura do destino: Moira, de Zilda Gorresio.

Pensar, pois, os fundamentos desta etnia na busca de compreensão de sua origem presente no mito, é permitir à razão o exercício contínuo do pensamento porque esta experiência sensível toca a inteligência e exige dela uma resposta não pela lógica da racionalidade, mas do próprio mito. Daí depreende-se que o caminho metodológico pelo qual principiamos para nos aproximar do objeto não é de caráter puramente objetivo, mas reflexivo e mitopoético. O feminino da etnia transcende a imanência e se projeta na transcendência.

Se uma imagem nos é possível elaborar para compreendermos a manifestação do feminino, podemos relacioná-la ao próprio sakpó não enquanto bebida, mas no modo como ele é produzido. Os Sateré-Mawé acreditam e guardam o costume dos ancestrais de que o sakpó só poderá ser feito pelas mãos de uma mulher que já fez a experiência da maternidade. Servido no momento das reuniões comunitárias, o guaraná em bastão é ralado dentro de uma cuia, misturado com água, sempre no sentido horário, representando o tempo que não retrocede. 

A mulher que faz o trabalho que transforma o elemento físico, o guaraná em elemento espiritual, deixa de ser a simples mãe e tranforma-se no Grande Feminino,  senhora do tempo e do destino, que os conduz à Terra sem Males. No momento em que rala o sakpó ela silencia e seus lábios se movem sutilmente como se estivesse em um momento de êxtase. 

Ao ralar o guaraná na água a primeira forma desaparece para fazer emergir um novo ser que é o sakpó.  Esta realidade somente é apreendida como sugere na visão de Raïsa Cavalcanti, pela sensibilidade intuitiva. Ao fazer surgir o sakpó, a mulher transgride toda a lógica racional e se lança pelo desvio ou pelas dobras do próprio tempo. 

No momento do sakpó as mulheres produzem não somente um elemento material, mas a espécime sagrada do povo mawé. É neste momento que ocorre a transformação da forma material para a forma espiritual que revivifica o seu povo animando-os na jornada terrena. O ato de ingerir o sakpó abre o espaço do não-tempo, no encontro com os espíritos que conduzem suas vidas e interagem no seu cotidiano. 

Preparo do sakpó por mulher sateré-mawé. Foto: Socioambiental.

Segunda Raïsa Cavalcanti, essa experiência arquetípica permite “ligar o espírito à natureza, a mente ao corpo e o eu ao universo” unindo energias materiais presentes nos elementos da natureza a energias espirituais presente no homem quando se abre à experiência do sagrado, ou quando se permite atravessar a porta da existência e olhar do outro lado. Essa experiência transcendental marca de forma indelével o cotidiano e a experiência de mundo do povo Sateré-Mawé. 

O povo mawé como qualquer outro, vive em si a dualidade da experiência mítico-espiritual entre o bem e o mal que constitui seu ethos religioso e o seu ser presente no mundo onde a influência de suas crenças religiosas torna-se parte de sua experiência material que dá sentido à sua existência. É, pois, a partir desta premissa que podemos falar da ontogênese sateré-mawé propugnada em seus mitos fundadores e que traz em si o principium operandi e o principium essendi da etnia. O principium operandia que nos referimos diz respeito à questão existenciária do povo mawé, sua trajetória histórica a partir das épocas, das situações e condições que fazem parte do seu existir e o principium essendi, associado àquilo que está inscrito na pre-sença (Dasein).

A partir desta condição ontológica deve-se compreender o ser sateré-mawé não no sentido de dizer o que ele é em sua totalidade, pois, consistiria num exercício impossível, já que sua essência se situa entre o retirar-se e o ocultar-se da própria linguagem mítica. O que nos possibilita dizer algo sobre o ser se dá a partir do mito.

o estudo dos mitos efetivamente coloca um problema metodológico, na medida em que não pode adequar-se ao princípio cartesiano de dividir a dificuldade em tantas partes quantas forem necessárias para resolvê-lo. Não existe um verdadeiro término na análise mítica, nenhuma unidade secreta que se possa atingir ao final do trabalho de decomposição. Os temas se desdobram ao infinito.
– citação retirada de O cru e o cozido (2004), de Claude Lévi-Strauss.

Esta impossibilidade torna-nos criativos pondo-nos na condição de dialogar com a mitologia e a partir dela compreendermos o discurso. Isto implicaria em colocação de hipóteses, o que não é objeto e nem papel da ontologia. Martin Heidegger contextualiza que o ser se manifesta e se oculta ao mesmo tempo, obrigando-nos a estar em constante pastorear, o que significa aguardar sempre sua manifestação. Conforme o autor, “os homens falam para responder e são para falar. Quando terminam de falar, deixam de ser”. O deixar de ser não está implicado em sua condição existenciária, mas no Dasein, pois quando ousamos transmitir o que o pensamento foi capaz de captar, já não é mais do ser que falamos, mas da memória que dele fazemos. 

Gracilene Miquiles (31 anos) em entrevista afirma que “quando a gente rala o guaraná na água, não é mais só ele, já é outra coisa. É o sakpó. A gente toma, dá para nossos filhos e para todo mundo e aí a gente fica melhor. Dá força, dá coragem para ir pra roça trabalhar” (entrevista, 2014). 

Atenta-se para a fala de nossa entrevistada e percebamos a consciência e a percepção que ela tem diante deste novo ser manifesto. O poder transcendental que se dá através do sakpó não se limita ao momento ritualístico tão somente, ele se espalha gerando vida tal como o sangue levado pelas veias vivifica o corpo. Surge assim um novo ser. 

O ser como o concebemos, enquanto conceito universal, transcende toda universalidade genérica. Ele é indefinível porque é evidente em si mesmo constituindo-se como transcendens, ou seja, como algo em constante devir, numa abertura constante.  Ele está presente em todas as coisas e a partir delas, seja pelo pensamento ou em relação à experiência de mundo é que se pode pensar sobre ele. Em Tempo e Narrativa (2015), Paul Ricoeur lembra que “o símbolo nos faz pensar”. São estes símbolos ricos de significados presentes no mito de origem do povo Sateré-Mawé que mais adiante falaremos sobre ele, que desperta o pensamento na tentativa ainda que não plena, mas criativa no intuito de desvelar o universo feminino Mawé o qual nos instiga a conhecer. 

Ernest Cassirer, em Antropologia filosófica: ensaio sobre o homem – introdução a uma filosofia da cultura humana (1977), observa na perspectiva antropológica que os mitos são experiências humanas que os homens projetam tanto do seu mundo exterior quanto do seu mundo interior com suas interpretações, imagens, metáforas ou meras representações especulativas que são expressões de sua própria realidade. Os mitos não são histórias fantásticas contadas por um povo às gerações presentes, são experiências de mundo que guardam verdades veladas, invisíveis através de signos e significantes. 

Representação da relação mística entre a mulher indígena e a natureza. Foto: Divulgação.

Quando em entrevista com Vivaldo Valente (50 anos), a respeito dos elementos sagrados do povo Sateré-Mawé, especialmente o sakpó como sendo o maior deles, ele foi enfático em dizer: “nós acreditamos no sakpó da mesma forma que os cristãos acreditam na eucaristia. O sakpó é para nós de fato, uma bebida sagrada e isso de algum modo nos mantém vivos e dá força para que continuemos nossa caminhada na terra à espera desse encontro com Tupana que para nós é Deus” (Vivaldo Valente, índio Sateré-Mawé, entrevista, 2014). 

Atentemos para a fala de Orivaldo Costa (46 anos), indigenista linguista segundo o qual “o sakpó é como se fosse a manifestação do próprio Tupana que os direciona na vida terrena” (entrevista, 2014). O mito é sempre um novo surpreendente, porque fala de uma realidade envolta numa linguagem rica de sinais que explicam as coisas da vida e do mundo com sua lógica própria. A experiência humana não é una e homogênea nem em seu aspecto biológico nem na dimensão do pensamento. 

O universo no qual o homem vive é constituído por uma teia de relações que se dá a partir do próprio mito, que se apresenta como um outro que esconde em si verdades ocultas que quando manifestas, são capazes de nos assombrar. Estas verdades se mostram na religião, não no sentido de códigos doutrinários e herméticos e sim como expressão de uma atividade ritual onde o sagrado se manifesta; na arte, como meio de aproximação entre o sagrado e o profano, que por meio de objetos materiais revela a essência por trás da aparência das coisas dadas, e pela linguagem que de forma específica evoca a memória com o intuito de fazer transparecer o ser de todas as coisas, presentes em todas as coisas.  

Esta condição de estar no mundo e de transcendê-lo através da memória é ao mesmo tempo estática e dinâmica no sentido de que o ser é o princípio da existência, daí ser estático. É dinâmico na medida em que o homem situado no tempo está num constante fazer-se, o qual se reconhece como ser-sendo. Mito e realidade não são dois universos díspares, é o lugar onde o próprio homem se situa e se reconhece como tal. 

Certamente, como diz Lévi-Strauss em A oleira ciumenta (1991), o mito é apenas uma imitação debilitada de uma verdade transformada em linguagem com o intuito de transmitir aquilo que cientificamente não corresponde a uma lógica formal. O mito tem sua própria lógica construída ao longo do tempo, seja por repetição, seja por crença, dentro de uma determinada cultura e de um tempo específico. Isto significa dizer que o mito não é desprovido de uma lógica racional, porém, fruto de uma outra racionalidade transvestida de símbolos nem sempre aparentes e simples de serem apreendidos pela mente, mas que exigem esforço intelectual no intuito de revelar ainda que não plenamente, sua verdade oculta. 

É nesta perspectiva de diálogo com a mitologia que se situa o nosso esforço para compreendermos a dimensão do feminino mawé, a partir do constructo ontogênico da etnia presente no mito de origem onde o feminino se manifesta ora na expressão de uma simples planta denominada “espírito de um grande peixe”, ora como a figura de uma mulher ou mesmo como o próprio guaraná ou a cobra-grande. O feminino é o próprio tempo que sem tempo algum se manifesta de acordo com a linguagem do mito. Esse ser feminino é condição sine qua non de existência concreta da etnia. Ele traz em si a vida em potência e ato. Como potência é o tempo e o destino. Como ato é a Grande-Mãe, a terra e tudo o que ela comporta. Eis o incontestável pasmo que o mito nos proporciona.

Um povo de busca constante

O povo Sateré-Mawé possui grande inteligência, são depositários de uma memória muito viva e capaz de interpretar e conhecer o pensamento do outro. São práticos nas atividades do dia a dia, cordiais e muito hospitaleiros com aqueles que lhe inspiram confiança.   Embora alegres e desejosos de tranquilidade, são, ao mesmo tempo, diplomáticos e firmes em algumas situações como, por exemplo, a que nos ocorreu em campo em dezembro de 2013, quando em visita à comunidade Castanhal, solicitamos permissão para ver o Puratin e esta visita nos foi negada pelo tuxaua daquela comunidade. Orivaldo Costa (46 anos) discorre sobre símbolo dizendo que o puratin

É uma espécie de remo sagrado, talhado em madeira de aproximadamente 1X50m e pintado em sua textura. Daí a derivação na língua Mawé (tin = pintado). Dizem os mais velhos que o remo sagrado é parte do corpo de um deus e que tem uma certa consciência do bem e do mal. Eles dizem que de um lado se conta a história positiva, boa do povo mawé e de outro lado, a história  negativa, ou seja, o tempo em que viviam em lutas entre seus próprios clãs e depois com a sociedade envolvente que aos poucos foram adentrando-o seu território, levados tanto por uma questão religiosa de catequização dos índios, quanto por uma exploração econômica de suas terras” Orivaldo Costa (entrevista, 2015).

Esse objeto sagrado guarda em forma de hieróglifos as normas e os interditos deste povo que ao longo de sua caminhada, registraram sua experiência moral-social em objetos materiais que eles consideram como os cânones de sua etnia. O interdito está relacionado à crença da dualidade bem e mau presente no objeto. Ao longo dos anos os Sateré-Mawé perderam a capacidade de ler estes sinais e, por isto, temem que ao ser mostrado, eles revelem o lado negativo que conta a história de dor e desespero da etnia. É como se o olhar a um dado momento fosse capaz de despir, devorar e matar. 

No contexto sateré-mawé uma das formas como o ser é apreendido pela razão está presente no ritual da tucandeira que como nos disse João Cutia (57 anos) da comunidade Simão:

No mundo existe coisas boas e coisas ruins. Tudo tá contaminado. Hoje a gente faz o ritual da tucandeira para ajudar quem se perdeu pelo caminho e se deixou contaminar pelas coisas que estão aí. Só que hoje não é mais como no meu tempo, por exemplo, os nossos tios nos chamavam e explicavam tudinho pra nós. Ele dizia que a tucandeira ajuda a gente a encontrar o caminho de volta porque depois que a gente é ferrado vinte vezes e tem que completar todo o ritual a gente ressurge de outra forma (entrevista, 2014).

Luvas de palha usadas no ritual de passagem da tucandeira, onde os adolescentes sateré-mawé devem suportar a dor das picadas da formiga tucandeira por 15 minutos. Foto: Divulgação.

Essa fala de João Cutia nos mostra a profundidade transcendental das crenças que movem seu povo e nos permite perceber os elementos culturais que permitem que a etnia tenha continuidade histórica. A tucandeira não é somente uma formiga, ela é o remédio que cura, que fortifica e reconduz para o caminho certo.  A formiga é este elemento criativo presente desde a origem da etnia que envolve não só a cura, como também todo o preparo para a vida adulta que o mesmo recebe. 

Buscar vestígios do passado para explicar o presente ou até mesmo perguntar por sua origem é a pergunta, é a indagação primeira desde o momento que o homem toma consciência de si mesmo, como ser situado no espaço-tempo da existência. Mediante a dissipação dos grupos pré-humanos pelo planeta há cerca de seis milhões de anos com o aparecimento do ancestral mais longínquo do homem, o Australopithecus, até meados de 4000 a 3500 a.C quando se dá historicamente o aparecimento da escrita, muitas hipóteses são cogitadas no âmbito das ciências humanas e físicas que, de uma forma ou de outra, tentam refazer esta linha do tempo em busca de respostas sobre nossa condição existenciária terrena. 

Até o aparecimento da linguagem escrita a transmissão da história desses grupos se dava por meio da fala por suas narrativas orais passada de uma geração a outra ao longo dos anos. Os Sateré-Mawé eram povos ágrafos e somente depois passaram a dominar a escrita e registraram suas primeiras memórias por meio de hieróglifos no Puratin. O que temos notícias é que estes sinais, lidos em tempos idos pelos mais velhos da etnia, hoje não são mais compreendidos pelos mais jovens. Não há registro de nenhum estudo linguístico especifico sobre o remo sagrado. Acredita-se que poderia ser também um código de leis, mas, são apenas especulações presentes nas falas de um ou outro informante. Acreditamos ser mais uma possibilidade de investigação sobre este povo que não nos deixa de surpreender a cada estudo realizado. 

Sobre o puratin João Cutia nos informou em entrevista que

somente os mais velhos sabiam ler. Muitos deles já morreram e não ensinaram tudo que estava escrito nele. A gente sabe que conta a história da gente, mas não dá para identificar o que é. Outra coisa é que o puratin é um viajante. Ele fica um tempo num lugar depois vai pra outro e os mais jovens nem conhecem (entrevista, 2014).

Nesta fala de João Cutia percebemos que ocorreu realmente a perda dos significados deste objeto sagrado que nos referimos anteriormente. É possível que o Puratin seja um fragmento importante na mitologia mawé que o tempo apagou de suas memórias a capacidade de interpretá-lo como os antigos sabiam. 

Apresentaremos a narrativa do guaraná que se constitui num dos mitos de origem do povo Sateré-Mawé a partir da transcrição que fizemos do texto original, uma das narrativas mais completas que encontramos até o momento. Informamos que se trata de um mito extenso em sua escrita e que, por isso, optamos por dividi-lo didaticamente facilitando assim o nosso diálogo e reflexão ao longo do capítulo que está seccionado em três subitens. O mito foi desmembrado por partes para facilitar o seu melhor entendimento, a saber:

-I-

Antigamente, no tempo dos homens, houve uma reunião. Tinha um homem que tinha um filho pequeno. E o homem avisou que iria por aí pelo mundo inteiro e disse ao filho:
– Fique meu filho, eu vou andando. Vão chegar pessoas que vão perguntar da minha planta, você não conta nada. E o pai foi embora. Quando o homem saiu, já vinha chegando uma pessoa que perguntou ao menino:
– O que é aquela planta que está no terreiro do teu pai? Mas, a criança não contou, só disse:
– Não sei, só meu pai sabe. Aí a pessoa foi embora. Mais tarde veio outra pessoa que perguntou novamente:
– O que é aquela planta? O menino respondeu:
-Não sei, só meu pai sabe. E a pessoa foi embora. Mais tarde veio outra pessoa que falou:
– O que é aquela planta muito bonita que está no terreiro do teu pai?
O menino não queria contar, mas desobedeceu a ordem do pai. O nome da planta é espirito de um grande peixe, assim contou o menino. Depois disso, a pessoa foi embora e foi dizendo para todo mundo o nome da planta. Como as pessoas já sabiam o nome da planta, convidaram o pai do menino para conversar. Mas o pai do menino já sabia que queriam persegui-lo, por isso convidou as pessoas para irem a casa dos tios dos peixes e lá se reuniram. O pai do menino convidou a Coruja Grande para a reunião. Ela falou para que na reunião. o filho dele ficasse entre as suas pernas e que avisaria quando vinham os inimigos querendo matar o filho dele. O homem falou para a coruja:
 – Você fica olhando para o meu filho. Eu vou conversar. Você tem que fazer a continuação da minha palavra. A Coruja fez como o homem tinha mandado. O filho estava entre as duas pernas do pai, o pai mandou chamar o povo para fazer a conversa. Ele convidou também um tal de Cuxiu (macaco) para ajudar na conversa. E o homem começou a conversar, mas antes avisou o Cuxiu dizendo:
– Depois que eu falar duas vezes você continua a minha palavra. Assim que o homem terminou de falar duas vezes, esperou a continuação da palavra dele pelo Cuxiu. Mas, o tal do Cuxiu disse:
– E agora o que eu vou dizer?
E o menino disse que se a palavra do pai não fosse continuada era sinal de que alguma coisa iria acontecer
– retirado de As bonitas histórias Sateré-Mawé (1997), de Enrique Uggè.

Em Mito e realidade (2007), Mircea Eliade considera que “toda história mítica que relata a origem de alguma coisa pressupõe e prolonga a cosmogonia. Isto não quer dizer que o mito de origem imite ou copie o modelo cosmogônico, pois não se trata de uma reflexão consertada e sistemática. Mas todo novo aparecimento – um animal, uma planta, uma instituição, implica a existência de um mundo”. Já em Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, Gilles Deleuze e Félix Guattari comentam “que as relações objetivas dos animais entre si foram retomadas em certas relações subjetivas do homem com o animal, do ponto de vista de uma imaginação coletiva, ou do ponto de vista de um entendimento social”. 

A origem do povo Sateré-Mawé está diretamente relacionada com a terra e seus elementais centrados nos animais e no homem, reunidos num grande diálogo em busca de uma solução para minimizar os efeitos de um interdito rompido, como veremos na segunda parte da narrativa quando a mulher grávida desce à beira do rio para pegar peixe desobedecendo o ordenamento do pajé. É a partir deste dado que o mito aponta sinais de crença num mundo sobrenatural que se manifesta na figura de uma planta envolta num mistério que se apresenta como sendo um dos elementos geradores do princípio da etnia. 

O mito narra a trajetória de vida de um povo imiscuída em elementos antropomórficos como se toda a realidade fosse homogênea, única e não sexuada. Não há como distinguir o que é macho ou fêmea, a não ser pela força da palavra. O mito fala de plantas e animais na mesma dimensão que os categoriza como pessoas e espíritos. Ou seja, um mundo de subjetividade no qual a linguagem é a linguagem da própria natureza. 

Esta planta se manifesta inicialmente como ‘espirito de um grande peixe’ e se mostra personalizada como uma entidade mítica cujo nome não deveria ter sido revelado. Ela dará movimento à trama mítica e se revelará de diferentes formas ao longo da narrativa se mostrando como o elo de ligação entre a origem do povo mawé e o fim como sentido de existência da etnia. 

O mistério e o cuidado que circunda a planta se constitui no primeiro interdito presente na narrativa e a desobediência ocasiona a punição daquele que a ele desobedece. Esta é mais uma linguagem específica do mito para expressar o constante renascer do mundo espiritual que está num constante devir. 

Para Wilhelm Wundt, isso “descreve o tabu como o código de leis não escrito mais antigo do homem. É suposição geral que o tabu é mais antigo que os deuses e remonta a um período anterior à existência de qualquer espécie de religião”.

A punição pela violação de um tabu é sem dúvida, originalmente deixada por um agente interno automático, ou seja, o próprio tabu violado se vinga. Quando do surgimento dos deuses e espíritos com os quais os tabus se associaram, esperava-se que a penalidade proviesse automaticamente do poder divino. Em outros casos, provavelmente como resultado de uma ulterior evolução do conceito, a própria sociedade encarregava-se da punição dos transgressores, cuja conduta levara seus semelhantes ao perigo. 

Talvez o Nusoken como este momento primitivo constitua-se nessa fase anterior ao surgimento dos deuses. A figura de um grande pajé aparece como o ordenador do lugar. A planta cujo nome não poderia ser revelada implica no aparecimento de um novo tabu que se interpõe e provoca mudança no modo de pensar destes seres. Vejamos que a narrativa nos diz que após o assassinato da mulher que desce à beira do rio para pegar peixes, o pajé se reúne com seus irmãos e diz que a partir daquele momento eles deveriam mudar seu pensamento. 

Mudar o pensamento pode significar uma mudança de comportamento. Sair de um estágio sob o império do caos, da anarquia e avançar para um estágio superior de um ordenamento social no qual, segundo René Girard, seria mais justo e igualitário. Neste sentido o mito se revela pedagógico por apresentar essas nuanças escondidas na linguagem simbólica do próprio mito. 

A mudança de pensamento também pode estar relacionada ao fim de um ciclo e início de outro ou mesmo a alternância entre opostos, como diz Mirella Faur em O legado da deusa – ritos de passagem para mulheres (2003), referindo-se ao mundo mítico das divindades que se presentificam na vida dos homens como elementos da natureza.

 

Solange Pereira do Nascimento é Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas e Professora Adjunta I da Universidade do Estado do Amazonas atuando como Diretora no Centro de Estudos Superiores de São Gabriel da Cachoeira – AM. Também é Líder do Grupo de Pesquisa Mythos – Humanidades, Complexidade e Amazônia (UEA/CNPq), e Vice-Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa Obsevatório Social: Gênero, Política e Poder – UFAM/CNPq.
A imagem em destaque é a obra “Mis Madres”, de Ester Hernanndez. Nela podemos ver uma senhora mexicana indígena segurando o planeta Terra em meio ao espaço. A imagem possuí uma ligação estrita com a relação mística entre mulheres indígenas e natureza.
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