Caçando os devoradores: agências, “meninas indígenas” e enquadramento neocolonial

Era manhã do dia 14 de novembro de 2016. Antes das 7h eu já estava tomando café da manhã no Mercado Municipal da cidade e conversando com as minhas interlocutoras. De repente, um rebuliço de gente foi se formando em frente a um terreno desabitado, a alguns metros dali, na avenida principal. No meio do matagal, foi achado o cadáver de uma jovem. Nas vozes que rapidamente elaboravam e transmitiam a notícia, e nas fotos que os transeuntes tiravam e depois circularam por WhatsApp ou Facebook, aparecia o corpo nu de uma adolescente indígena, machucado, ferido, com a farda e o material da escola jogado a seu lado. Sarah, de 17 anos, proveniente do trecho alto de um dos rios que formam a Bacia do Rio Negro, foi “estuprada” (segundo todo mundo) e assassinada por “asfixia, estrangulamento e agressão” (segundo registro da Secretaria Municipal de Saúde).

Mais uma, pensei. Mais uma, falaram algumas pessoas. Essa morte, que até 2017 ocupava um lugar nebuloso nos registros, ou, melhor, que nos registros oficiais havia sido novamente reconfigurada pelo apagamento do estupro, juntava-se a tantas e tantas histórias de abuso, violência e morte. Ouço tais relatos nesta cidade desde 2010, vindos de mulheres indígenas habitantes dela sobre si mesmas ou sobre amigas, vizinhas, parentes. Sobre essas violências, ou sobre as relações marcadas por nós e outros atores com o termo violência, era comum ouvir que “sempre aconteceram”.

Na forma e persistência dessas mortes e violências, e dos julgamentos morais e temores atrelados, é possível ver a explicitação de um frame, em termos de Judith Butler, de uma gramática que coloca nos corpos destas moças os fazeres e destruições do projeto “civilizacional” e são efeito da materialização performativa do Estado, da governamentalidade e seus “processos de fronteirização”. A primeira parte do artigo visa enquadrar essas violências no marco de invenção e fabricação da cidade de São Gabriel da Cachoeira como parte de um embate colonial específico, como nota Anne McClintock no livro Couro imperial: gênero, classe e raça no embate imperial.

Compreender propriamente essa condição de embate requer ir para além da compreensão do quadro e da denúncia das violências que o constituem. Assim, meu objetivo neste artigo é começar a compreender os agenciamentos femininos-indígenas, especialmente juvenis, que emergem no e contra o marco gramatical de medo, morte e segregação através do qual forças de poder específicas produzem e governam a cidade. Dito em termos de Judith Butler, interessa-me compreender formas através das quais estas moças se relacionam com um frame que não faz suas vidas apreensíveis enquanto dignas de luto, mas as coloca naquele matagal em que morte violenta e reprodução biológica e social definem a estrutura e o cotidiano dos seus corpos e perspectivas.

Levando em consideração uma bibliografia sobre sexual economies (economias sexuais), bem como o espaço simbólico ocupado nesta cidade pela “exploração sexual”, argumento, na segunda parte do artigo, que as práticas de intensificação dos fluxos e circulações sexuais e econômicas entre mulheres indígenas e homens brancos são especialmente férteis para pensar estes agenciamentos. Esse argumento fica mais claro à luz do trabalho de Anne McClintock, que evidencia como o espaço de encontro entre sexualidade, gênero, racialização e negociações econômicas constitui o coração operacional, moral e estético do frame colonial. Por fim, espero mostrar como determinados agenciamentos, para além de resistências, têm a possibilidade de reorganizar as relações na longa duração do ordinário  e, inclusive, atrever-se a formas de contraefetuar ou canibalizar a “devoração” colonial de que são objeto.

Enquadrando. cidade, violência e gramática colonial

São Gabriel
Dos meus sonhos és formosa
Eras tranquila na lembrança de um passado
E hoje entre o progresso que passa
Marcham no ritmo viril acelerado.
As cachoeiras que apreciam agradáveis,
Por entre as pedras águas a passar
Seus murmúrios infinitos e saudáveis,
Sejo as espumas brancas engrossar.

(…)

São Gabriel formosa e radiosa
De jovens valentes
De praia tamanhas,
De belos pássaros
E lindas montanhas.
Terra hospitaleira,
Vibrando em progresso
Eesperança mil,
Um provir te espera
Na integração do nosso Brasil.
Hino de São Gabriel da Cachoeira.

Letra: Terezinha Violeta de Jesus.
Música: Irma Sal. Rosa Godoy Quintão.

São Gabriel da Cachoeira (SGC) está localizada na região conhecida como Alto Rio Negro, no noroeste amazônico. Segundo a publicação do Instituto do Meio Ambiente Povos indígenas do Brasil 2006/2010, a maior parte da região corresponde a terras indígenas demarcadas de forma contínua, além do Parque Natural do Pico da Neblina. Dos 37.896 habitantes do município em 2010 (estimativa de 43.831 para 2016), 29.017 se autodeclararam indígenas no último censo (76,57%), configurando-se como o município com a maior quantidade de indígenas no país. Segundo essas autodeclarações, do total da população municipal em 2010, cerca do 50% era população residente urbana (19.054 pessoas) e, destes, 11.016 (57,8%) eram indígenas. A cidade é tipicamente apresentada como uma cidade indígena, e a “urbanização” e a relação entre “comunidade” e “cidade” são centrais na produção antropológica e nas discussões políticas indigenistas. Essa centralidade da cidade está diretamente relacionada com a forma particular como essa cidade foi inventada e fabricada no final do século XX.

A cidade costuma ser narrada como tendo raízes numa “maloka de índios Passés” e na implantação, por parte de Portugal, do Forte de São Gabriel em meados no século XVIII. A partir daí, dá-se a lenta gestação de um povoado atrelado à presença colonial – forte, freguesia, posto comercial-, que em 1861 chega a 33 casas. Criado como município em 1891, no início do século XX foi descrito pelo etnologista e explorador alemão Koch-Grunberg como “um ninho miserável, quase sem habitantes…”. É a partir de 1916, com a chegada da Missão Salesiana à região, que são implantadas as condições de possibilidade para o gradual crescimento da cidade e para sua posterior fabricação política e militar.

Com uma forte vocação para a educação e para a gestão do trabalho, os salesianos implantaram um sistema de internatos indígenas no Alto Rio Negro (nove entre 1916 e 1968, sendo o de São Gabriel o primeiro) onde concentraram crianças e jovens em “campos de estudo e trabalho” agrícola e urbano. Esses assentamentos missionais deram a forma definitiva ao processo de “civilização e catequese” que vinha sendo frustrada desde os séculos anteriores e representaram o primeiro investimento sistemático de construção de cidades (indígenas) na região. A partir daí, São Gabriel da Cachoeira intensificou sua posição como povoado comercial, de serviços e de intercâmbios diversos, fornecendo, por exemplo, indígenas “civilizados” e “educados pelos padres” para serem soldados, trabalhadores, pilotos, pedreiros, babás e empregadas domésticas dos grandes comerciantes da região.

As missões salesianas, em cujo centro estava a produção de cidades, de economias, de terras e de corpos “civilizados”, foram agradecidas com orgulho nas palavras do ex-governador do Estado do Amazonas, Artur César Ferreira Reis, no livro “De Tupan a Cristo” – autobiografia do sucesso salesiano:

As construções que levaram a termo, de tijolo, pedra e cimento, modificando a paisagem material, eram uma lição às populações para que se orientassem na conquista de um bem-estar menos precário, ao lado dos templos, residências, hospitais, educandários. Nas malocas indígenas, alteração total das condições de vida, desde a moradia, que deixou de ser taba rude para ser a casinha de madeira, à organização social, moral e espiritual elevada, dignificada e preparada para o ingresso na vida civilizada à sistemática de trabalho, à utilização do gênio industrioso e artístico que revela a generalidade do gentio amazônico
– trecho de “São Gabriel da Cachoeira: sua saga, sua história”, de Edmar César (2015).

Contudo, seria apenas nos anos 1970 e pelas intervenções do governo militar brasileiro – no caminho do “progresso” e da “integração” – que a cidade de São Gabriel começaria a se tornar o que hoje é. A Lei Federal 5449 de 1968 “enquadrou” São Gabriel da Cachoeira como área de segurança nacional (Ibid: 44), entrando no mapa do projeto governamental de construção de infraestrutura e das grandes estradas que abririam definitivamente os territórios da floresta e dos indígenas e expandiriam a fronteira agrícola brasileira até seus últimos limites nacionais – como de fato aconteceu no centro-oeste do país e no sul da Amazônia. O projeto foi a construção dos subtrechos da estrada BR-307, entre São Gabriel e Cucuí, e da estrada Perimetral Norte, BR-210, que chegaria à cidade de Benjamin Constant, na tríplice fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru.

Máquinas e homens entraram mata adentro, rasgando a selva amazônica, anunciando o progresso e o desenvolvimento (…) com a certeza absoluta do cumprimento da missão
minhas ênfases, trecho de “São Gabriel da Cachoeira: sua saga, sua história”, de Edmar César (2015).

A missão (das rodovias) não foi cumprida. Em 1977, a Perimetral foi abandonada, enquanto a BR-307, de aproximadamente 200 km, foi concluída sem pavimentação e somente quinze anos depois do início das obras. Porém, a outra missão foi plenamente cumprida: inventar e construir uma cidade, um assentamento de fronteira, através do estabelecimento de uma força militar para o controle e a produção territorial e populacional, que tem o efeito de atualizar em performances cotidianas a mitologia da fronteira e do sertão. Essa geografia do “vazio” e da segregação atravessou a própria construção da cidade, pois a propriedade da terra foi redefinida, orientando a organização urbanística atual. O Decreto-lei No. 86, de 30 de novembro de 1977 destina para o uso do Ministério do Exército as terras que foram “doadas” à União. Diversos moradores antigos da cidade lembram com precisão como as melhores terras do povoado, que ainda não tinham sido colonizadas pela Missão, foram “apropriadas” pelo exército e pelas firmas na sua chegada. Nelas, o exército construiu suas vilas, seus clubes, as casas-grandes dos altos oficiais, suas sedes de treinamento, etc.

Seguindo a escola salesiana, a cidade se abria como um dispositivo de criação de novas paisagens, de novas relações e de novos corpos, num enlaçamento entre transformação física, substancial e econômica. Sexualidade e alimentação, e marcas corporais de raça/etnia, cruzavam-se com racionalidades monetárias intensificadas para produzir o novo mundo do “progresso”. A memória de um comerciante e ex-funcionário do BEC citado por César ajuda-nos a ilustrar as formas da fabricação e da inserção alienígena, produzindo não uma bolha econômica paralela entre “firmas” e exército (como acontece em alguns enclaves de extração), mas uma nova razão de socialidade em embate:

O Batalhão quando aqui chegou instalou logo um supermercado. Trouxe de tudo para vender, com exceção de ovos, frangos, verduras. Era tudo enlatado, carnes enlatadas, naquele tempo já traziam cerveja para vender pra gente, refrigerantes, tudo descartável. A nossa alimentação quando chegamos aqui era tudo na base do enlatado, era bordon, quitute, sardinha, feijão, arroz, essas coisas, mas o que a gente mais gostava era do charque.
– trecho de “São Gabriel da Cachoeira: sua saga, sua história”, de Edmar César (2015).

Esses milhares de soldados e trabalhadores eram fundamentalmente homens não-indígenas e sem conjugalidade, que fabricaram a cidade como materialização etnoracializada e generificada do progresso, da integração e da civilização. Uma forma de compreender essa noção de cidade é elaborada por Cristiane Lasmar em termos de oposições de raça, etnia e gênero, e faz referência à concorrência de jovens mulheres indígenas por potenciais maridos brancos. De um lado, aquelas com melhor capital no mercado matrimonial seriam as habitantes de bairros mais tradicionais, imaginadas como “menos índias”, mais “misturadas” ou “caboclas”, de etnias mais “civilizadas” ou de famílias cuja relação com a cidade é mais antiga. Do outro lado, aquelas dos bairros mais recentes, procedentes de rios ou regiões mais distantes, meninas “mais indígenas”, de famílias recém-chegadas. Nestes últimos bairros, imaginados como periferias, em que com tanta facilidade se falam as línguas das cabeceiras dos rios Uaupés, Tiquié ou Içana, os “brancos” chamam a atenção e a experiência social do “racismo” se faz de obrigatória expressão.

Então a cidade foi e é produzida como espaço performativo de lógicas de socialidade e de poder baseadas na articulação assimétrica do gênero, da raça/etnia, da procedência regional e nacional, da posição no sistema de colonização e, gradualmente, do conhecimento do dinheiro e de outros saberes e objetos dos “brancos” ou da política indigenista (incluído o saber dos “projetos”, como as pessoas em São Gabriel rapidamente identificam). Uma verdadeira “fazenda de domesticação”. Nos termos de Michael Taussig, como centro de escambo e “escoadouro” comercial – também da “exploração sexual” – essa cidade seria o espaço em que a ficção do comércio e o fetiche da dívida se materializariam. Conforme Anne McClintock, seria uma versão muito particular (amazônica, de pequena escala e alto impacto regional) de um espaço colonial de exposição fetichista das mercadorias (de uns e outros) e seus efeitos mágicos (de uns e outros…), como referência civilizatória para toda a região rionegrina.

É na fabricação e gestão desta cidade, no “rasgar da selva amazônica” que se localiza a base material, o sentido e a memória mais recente daquilo que  “sempre aconteceu”. Vejamos.

Um ex-soldado do BEC comenta para Edmar César que, na época da chegada das “firmas”, os moradores tinham medo dos soldados. A Igreja havia avisado os pais que “estava chegando um bocado de devoradores na cidade”. “Nós fomos discriminados inicialmente”, diz ele. É fascinante como se reproduz com extrema facilidade a celebração da missão civilizadora do “progresso”, e como nela a assimetria e a violência das relações são borradas com igual facilidade por uma retórica de emoções masculinas individuais (pioneirismo), associada ao mito-conceito da fronteira: “nós também tínhamos medo”, “ouvimos falar sobre os índios que comiam gente”, “ouvíamos de colegas que morreram com flechas envenenadas”, “elas [as índias] eram loucas pra casar com a gente…”. Essa retórica, do outro lado, é atualizada pela Igreja, importante agente colonial e civilizacional, para inicialmente se diferenciar de seu novo aliado-e-concorrente – “os devoradores” – a partir da gestão moral do medo sobre o consumo/gozo dos corpos femininos indígenas.

Nas palavras de D. Inácia, indígena de etnia tukano na casa dos 70 anos e moradora antiga da cidade, é possível ver as formas e traduções da violência (mas também, e já nos conectando com toda outra dimensão, os deslizamentos “doidos” do desejo):

Nesse tempo chegaram outras pessoas da firma (…). Chegaram cinco turmas. Tinha muita gente brancos. Ficava cheio no caminho: “vamos dançar, vamos dançar”, de cabelos compridos, enrolados… e eu ficava com medo, ficava muito com medo deles… E eu não saía mais…. Mas depois sim… depois fiquei doida e queria era fugir do restaurante [em que trabalhava]. (…)  e tinha agora várias casas de festas. Era cheio de pessoal nas festas… e não tinha indígenas, só de fora e pessoal daqui que já morava. Polícia andava caçando as mulheres que saíam nas festas e as que andavam muito nas festas eram chamadas para ir morar no puteiro, por isso me deu tanto medo e eu não saía mais. Elas aguentavam um mês, dois meses e não aguentavam mais… elas morriam. (…) E assim alguns [“peões”, soldados] trabalhavam e iam embora, voltando pras cidades deles. Engravidaram pessoal daqui e foram embora… (…) No tempo que as firmas chegaram, houve muitas mortes, estupravam, principalmente as meninas que saíam fora de hora. Abusavam, levavam na estrada. Até no cu delas eles faziam… elas acabavam morrendo sem ser enterradas, na estrada… (…) É assim que aconteceu naquele tempo, que eles engravidavam, mataram… E são os filhos que estão agora praticando esse tipo de crime.

A cidade, pois, não apenas foi fabricada por tijolos e comidas enlatadas, mas também a partir da cofabricação prática de corpos que assim se tornavam generificados e etnorracializados. Nessa fabricação, para os corpos das mulheres (apenas indígenas, nas memórias e nas narrativas), sobrava esse lugar que vamos aqui descrevendo. Dona Inácia, casada há mais de trinta anos com um homem indígena, teve (ao menos) dois filhos de homens de fora, que também tiveram filhos com outras mulheres locais, exemplificando a operação polinizadora da “Integração Nacional”.

No Relatório técnico narrativo final, Projeto “Violência, sexualidade e relações de gênero na cidade de São Gabriel da Cachoeira, Alto Rio Negro (AM), de Cristiane Lasmar e Marta Azevedo, podemos observar que desde os anos 70 até hoje, essas relações se estenderam e tomaram, primeiro, a forma de violência sexual e gravidez indesejada (ou não reconhecida) e, depois, de exploração sexual e estupro. “Em 1994, a FOIRN [Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro] encaminhou uma carta-queixa ao Comandante do 5º BIS (Batalhão de Infantaria de Selva), responsabilizando os militares brancos e solicitando providências”. Mas não se tratava apenas de militares. As autoras do relatório identificam também o lugar dos taxistas (não-indígenas e vindos de fora) nestas narrativas já no final dos anos 90 e, em todas as minhas idas à cidade (2010, 2014 e 2016), eles ocupavam um lugar privilegiado nas narrativas sobre assédios e estupros.

Em 2010, soubemos que todos os integrantes da Polícia Militar da cidade estavam sendo investigados por crimes sexuais. Também foram abundantes as narrativas sobre “abusos”, “orgias” e “explorações” de garotas indígenas menores por parte de militares e, principalmente, de comerciantes locais poderosos, que vinham sendo denunciadas desde 2008.

Esse conhecimento veio a público de forma espetacular em 2013. Na época, uma investigação da Polícia Federal (PF) chamada Operação Cunhatã revelou “uma suposta rede de exploração sexual de menores indígenas”. Nela teriam sido ouvidas 16 mulheres adolescentes e pré-adolescentes na faixa dos 13 aos 16 anos e foram capturadas nove pessoas: três comerciantes de uma mesma família, um militar, um ex-vereador e duas mulheres indígenas que seriam as aliciadoras das “garotas”. Apesar do espetáculo e do aparente sucesso da operação, em 2016 os três grandes comerciantes estavam de volta às suas atividades sem que nenhuma grande represália jurídica ou social tivesse acontecido. Nada, fora a própria Operação Cunhatã e as imagens associadas, parecia exceder ou quebrar uma gramática conhecida. Nas palavras de um representante da Igreja Católica, foi a captura desses três irmãos que mais impressionou na cidade, pois sobre suas práticas, “todo mundo sabia”. Nos termos que o caso nos foi explicado em 2014 por diversas mulheres locais, essas violências “sempre aconteceram”.

Além das moças ouvidas durante a investigação policial e das muitas que me contaram em 2016 ter vivido assédios desses mesmos “velhos”, houve uma narrativa que mudou inteiramente minha percepção da escala destes “crimes”. Uma mulher indígena, por volta dos 45 anos, habitante da cidade e vinculada à luta pelos direitos humanos, explicava-me como ela própria, na sua adolescência, havia sido assediada por pelos irmãos quando caminhava entre a escola e sua casa.

– Os mesmos?
– Os mesmos – respondeu ela, e complementou afirmando que nunca aceitou os convites ou foi forçada, mas que amigas e vizinhas dela foram.
– Queres dizer que há mais de 20 anos esses mesmos irmãos vêm assediando, abusando e explorando garotas indígenas na cidade?
– Pelo menos um deles, sim.

Os grupos dominantes da política e do comércio são conformados majoritariamente por antigos soldados e trabalhadores das “firmas”, bem como por seus herdeiros e seus principais clientes: os militares vindos de fora. Os três maiores centros de comercialização de alimentos, de bebidas e de outros bens de consumo básico, assim como outros comércios (como a distribuição de gás) e diversas propriedades, pertencem aos três irmãos vindos de fora, “brancos”, principais acusados na Operação Cunhatã.

A história destes três irmãos, que é publicamente conhecida e não é excepcional, serve para se fazer uma ideia das formas gramaticalmente aceitas em que o poder é exercido em SGC, das possibilidades de atuação dos agentes político-comerciais e das noções de “comércio” em jogo (em uma declaração que ecoa os termos de Taussig, um delegado da PF, na ocasião da Operação Cunhatã, descreveu os acontecimentos como um “comércio”). Famílias de comerciantes de longa data têm ocupado quase de forma hereditária o poder executivo local, bem como cargos legislativos. O comércio da cidade lucra dos salários dos funcionários públicos, principalmente militares, e, seguindo uma tradição que remonta ao século XVII, da exploração dos corpos, produtos, necessidades e dinheiros indígenas. Pontualmente, no desejo e na dificuldade para acessar determinados alimentos, ferramentas, bebidas alcoólicas e combustível, o endividamento dos indígenas com os comerciantes, inclusive de comerciantes indígenas com comerciantes brancos, implica uma forma nada excepcional de relação e de exercício do poder. Dívidas, pagamentos, dádivas e terror se encontram na composição moral da pessoa no marco dessas economias coloniais, e no cruzamento de fetiches sobre o mundo dos brancos.

Tudo, nesse sistema, repousa na aparência de um comércio, no qual o devedor não é nem escravo, nem trabalhador assalariado, mas um comerciante, sujeito à férrea obrigação de pagar adiantadamente. (…) Com a mesma frequência com que esse relacionamento era colocado no primeiro plano – um relacionamento entre comerciantes – transformando-se em algo difuso, que desembocava na escravidão, da mesma forma a terminologia está sujeita a saltos mortais. Nesta semiose desordenada, quem teria condições de afirmar quem era credor e quem era devedor, para não falar daquilo que tornava um homem devedor e daquilo que transformava a dívida em um homem? (…ou em uma mulher…?).

Essa lógica de exercício do poder-comércio, que é generificada e etnorracializada na origem, tem então uma dimensão geracional em torno da sexualidade. Pelo visto, na Operação Cunhatã e nos seus desdobramentos, esta forma de relação de poder de “brancos” sobre “índios” e de algumas etnias sobre outras, tem um correlato de gênero e geração na assimetria violenta de transações sexuais em que corpos de meninas indígenas são tomados pelos homens “brancos” à força ou sob a ficção de um pagamento ou de um dom. Essa ficção abre para sempre um espaço de complexidade e de ambiguidade, que Michael Taussig descreve através de uma pergunta em Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem (1993): “Mas se a força bruta era aconselhável [possível, diríamos no nosso caso], porque eles se incomodavam em dar presentes e persistiam na ficção da ‘dívida’?”

Por fim, antes de passar à seguinte seção, gostaria de arriscar alguns elementos analíticos, ainda preliminares, sobre estas violências. Do que estão nos falando essas violências se pensamos na sua dimensão semântica e comunicativa? Ou, seguindo Maria Filomena Gregori, o que essas violências produzem na sua dinâmica mais relacional? Devido à evidente falta de dados oficiais e etnográficos, podemos afirmar mais tranquilamente algo que essas violências não são. Elas não têm o efeito principal de “limpezas étnicas” e, apesar da tenaz militarização, não correspondem exatamente a estratégias de uma guerra. O povoamento, parte da estratégia militar de colonização, se alterna com a simples corporificação temporária – generificada – do poder de morte ou do poder de endividar, atrelado a formas ambíguas do “endoidecer” feminino (como nos lembrará D Inácia sempre). Apesar de ter componentes de punição sexual/moral (como na história dos “puteiros” que D. Inácia menciona) e apesar de realmente implicar uma transformação étnico-racial que pode tender ao “mundo dos brancos”, não há como afirmar que se trata de um programa de estupro punitivo, de branqueamento biológico do inimigo, de abortos obrigados, de war brides (noivas de guerra) ou de apropriação de crianças para a guerra ou a indústria.

O primeiro apontamento, então, é dizer que aquilo que “sempre aconteceu” marca práticas diversas em escala massiva (gravidezes indesejadas ou não reconhecidas, estupros, assédios, abusos e “explorações sexuais”) e que a enunciação “Isso sempre aconteceu” não é uma metáfora, uma referência ao argumento do patriarcado universal, ou uma sensação imprecisa de opressão. Trata-se mais de uma afirmação referente a relações específicas, com corpos, raças/cores/etnias e até nomes próprios, que persistem no tempo, estão enlaçados nas estruturas comerciais e políticas da cidade, e são hereditárias.

O segundo elemento que deve ser mencionado (talvez como um programa de estudos por vir) é que não apenas os homens “brancos” aparecem como atores destas violências. No estudo antes referido de Cristiane Lasmar e Marta Azevedo, homens jovens indígenas, pobres, habitantes da periferia da cidade, foram indicados por adultos indígenas, homens e mulheres, como agentes de violência urbana. Igualmente, em baixo volume e partindo de fontes especializadas, houve sempre a informação de estupros, em ocasiões coletivos e continuados através de filmagens em redes sociais, que responderiam às hierarquias indígenas rionegrinas. Por outro lado, são abundantes as queixas de mulheres indígenas sobre a violência (agressões, insultos, espancamentos, xingamentos) exercida por seus maridos ou por outros homens sob efeito de bebidas alcoólicas. De início, seguindo Kimberly Theidon em Género en transición: Sentido común, mujeres y guerra” (2011), na ritualização dispersa dessas violências, é possível pensar que os homens (em relações do mesmo sexo com tolerância para etnias cruzadas) constroem suas alianças, o reconhecimento mútuo como “devoradores” e seus desejos cruzados, no marco da assimetria mítica e estrutural. E nessa reiteração performativa se atualiza a assimetria socialmente compartilhada e a relação colonial no contexto urbano – base das demais transações e constituinte dos fetiches cruzados. Devido à variação de sentidos e de contextos, de relações e de planos cosmológicos, morais e políticos, resulta muito delicado atravessar essa fronteira analítica sem dados suficientes. Por tal motivo, tenho me concentrado nos rastros destas relações violentas que colocam uma polaridade gramatical entre homens “brancos”, vindos de fora e, principalmente, adultos, e mulheres indígenas, principalmente em fases de juventude e crescimento. Contudo, é importante lembrar que estes atravessamentos e conexões existem e que pousam de forma particular sobre os corpos das “meninas indígenas”.

Seguindo o movimento, sabemos que não é apenas através dos homens que a violência contra as mulheres se reproduz. Sugiro, então, que esses gestos performativos, reiterados massivamente por décadas (aquilo que “sempre aconteceu”), não dizem respeito à “prostituição” e nem apenas à linguagem da aliança ou da violência como excepcionalidade. Deles não derivam represálias públicas ou grandes mobilizações políticas de mulheres. No conjunto, seu efeito tem a ver, justamente, com a atualização compartilhada de princípios de socialidade, gênero e parentesco, intensamente carnais e libidinais, afirmados no processo colonial republicano. Trata-se de uma atualização que viabiliza de forma particular relações cruzadas ou contínuas de gênero, geração e etnia; isto é, que possibilita a versão rionegrina das relações de contato e de reorganização cosmopolítica (não contabilizando com facilidade estas práticas violentas – sexuais e de gênero – na pauta da política indigenista, inclusive feminina).

É justamente nessa torção argumentativa que devemos buscar as formas de agência e de apropriação por parte destas mulheres jovens.

E as mulheres?

MILLENA, 22
31 de outubro de 2013 às 04:12
Sou moradora da cidade, e melhor do que ninguém, sei que esta notícia está bem mascarada, não estou falando que os acusados são santos, mas, acredite, as meninas envolvidas são bem menos santas que eles. Ao contrário do que dizem, que são pobres coitadinhas e inocentes, (…) estas meninas estão em casas de festas, na beira da praia ou em qualquer outro local se oferecendo, geralmente bêbadas, com microroupas, no intuito de engravidar e ganhar uma boa pensão como geralmente acontece. Se não acredita, pergunte a qualquer mulher de militar (…) todos conhecem a fama dessas garotas, que até o presente momento ainda estão se prostituindo na cidade, e não em troca de bombons ou guloseimas como disse o Dr. Delegado (…).

O comentário acima é a resposta de uma “moradora da cidade” a uma das notícias sobre a Operação Cunhatã. Ele funciona como uma passagem clara para o mundo destes agenciamentos que me interessa privilegiar. Vemos nele uma reelaboração moral feminina dos eventos, dos corpos e das relações envolvidas na Operação. O comentário aponta para as práticas noturnas e sexuais de jovens mulheres indígenas e como implicam uma ameaça para as “esposas dos militares”. O que apresento nesta seção, portanto, é um mergulho nesse espaço intersticial e ambíguo no qual essas jovens performam seus corpos, seu gênero, suas sexualidades através da gramática descrita. Através das explicações de Rosa, uma jovem indígena, e em conexão diacrônica com as memórias de juventude de D. Inácia, avanço na compreensão destas formas de agência, suas possibilidades e limites.

Neste artigo, meu foco não está colocado nas reações e resistências organizadas perante os eventos mais espetaculares de violência. Interessa-me mais um plano de agenciamentos, que diz respeito ao modo como esses quadros de não legibilidade destas vidas – de suas vidas, sob a ameaça e o exercício histórico e ordinário dos “devoradores” e dos “exploradores” –, essas mulheres mantêm a vida viva. Melhor ainda, como se apropriam destes quadros, consomem-nos e os empurram até o limite para fazer mais que sobreviver?

Pergunto a D Inácia pelas “reações” dela ou dos parentes perante os assédios ou as violências sofridas no tempo das “firmas”. Ela diz que não havia nada. D Inácia continua:

– Por isso é que eles andavam de lá pra cá soltos e iam embora…
– Nem os padres, a Igreja fazia nada?
– Nada.
– E os patrões?
– Eles ficavam na casa deles: “se vocês querem ficar tranquilas, fiquem no Internato, vocês que decidem… se querem essa vida, saem…”. Por isso que eu nunca saía, eu ouvia a voz dos patrões… se eu saísse eu já teria cinco filhos…. (…) Depois que conheci o Sargento ele me levava sábado e domingo pra passeio, mas os patrões esperavam a minha chegada… Depois que os patrões foram embora aí que endoidei, doida mesmo… queria experimentar. Encontrei um nordestino de olhos azuis que queria me levar, mas o patrão não deixou…

Através de D. Inácia, sigo a intuição de Lasmar (2005). No seu livro pioneiro, Cristiane Lasmar se aproxima das relações de gênero e interétnicas em São Gabriel da Cachoeira e suas transformações pelo caminho do casamento entre mulheres indígenas e homens “brancos”, e seu efeito de atualização de uma tendência “cultural” a se orientar para o “mundo dos brancos”. Apesar da sua importância, a análise de Lasmar ignora a violência e foca no regime moral da domesticidade, da mitologia e do parentesco (genealogia/aliança) como plano último de relação e de existência social.

Nesse sentido, é importante levar em consideração o chamado de atenção de Grace Cho em Assombrações da diáspora coreana: vergonha, sigilo e guerra esquecida (tradução livre, 2008), sobre as análises acerca das war brides (noivas de guerra) coreanas, casadas com soldados estadunidenses e migradas a esse país, que seriam:

santificada por dar à sua família na Coreia [nas comunidades indígenas?] uma oportunidade de participar do Sonho Americano [o “mundo dos brancos”], a noiva de guerra, enquanto pioneira da imigração coreana para os Estados Unidos [migração indígena à cidade?], opera então como uma figura para o desaparecimento da violência geopolítica no reino do doméstico (tradução livre).

Contudo, Cho nos leva diretamente para a retórica da produção de traumas e vítimas, que devemos também evitar porque, como vimos, há sexo e desejo, agenciamentos e caçarias para fora da “exploração” e dos estupros.

Isto é, definitivamente não é sobre casamento (e nem sobre trauma) o que as relações entre este “endoidar” e “experimentar”, entre estas “microrroupas”, estes corpos jogados no mato, estas meninas exploradas pelos “velhos” comerciantes estão nos comunicando. É sobre não-casamento; é sobre sexo, juventude, desejo, rua, noite, bebida e dinheiro, sobre violências cotidianas, medos e os julgamentos morais, que operam como desdobramentos do quadro.

Minha abordagem, portanto, orienta-se pela evidência empírica da importância destes fluxos e transações entre sexos, dinheiros, conjugalidades, afinidades e gênero (“endoidar”), e pela minha própria trajetória de pesquisa sobre prostituição e economias sexuais, em diálogo com autoras feministas nesse campo, tais como Anne McClintock, Heather Montgomery,  Kamala Kempadoo, Amalia Cabezas e Adriana Piscitelli. Essas autoras têm destacado as capacidades e formas de agenciamentos femininos interseccionais em, e através, das economias sexuais em contextos de relações interétnicas e de mobilidades sociais e territoriais.

Vamos à etnografia. Coincidindo com o tempo em que Adriana Piscitelli e eu estivemos na cidade em 2014, houve um grupo de oficiais da Força Aérea Brasileira fazendo práticas de voo: “os aeronáuticos”. Eram, na sua maioria, homens brancos, altos, de corpos cultivados pelo exercício físico, que exibiam roupas e acessórios de marcas reconhecidas e gastavam festivamente dinheiro todas as noites da semana nos bares da cidade. Ao redor deles havia sempre muitas mulheres de diversas idades, incluindo indígenas adolescentes e adultas, e mulheres brancas locais ou forasteiras, adultas, vinculadas a serviços de saúde, educação, etc. As moças jovens indígenas estavam em grupos que, por sua vez, mantinham conexões com moços indígenas. Elas iam e voltavam entre um grupo e outro, paqueravam os jovens militares, bebiam com eles manifestando algo como um tédio mútuo, soltavam-se das capturas físicas que estes tentavam e, alternativamente, dançavam e curtiam muito com seus pares, que esperavam a alguns metros, dentro ou fora do bar.

Em nenhuma dessas noites vimos moças indígenas, no âmbito público, beijando- se ou “se agarrando” com nenhum desses “brancos”, tampouco investindo em performances de dança ou de gestos mais eróticos para seduzir ou ganhar a atenção deles. Aliás, o maior investimento na realização de danças eróticas públicas não foi realizado por nenhuma mulher, mas pelos próprios “aeronáuticos”. Em uma das últimas noites, num local de festas muito frequentado, dois dos “aeronáuticos” mais jovens, altos, brancos e de corpos muito trabalhados, subiram no palco para se exibir dançando a coreografia “lepo-lepo”, em estilo striptease, com direito a levantada da camiseta para expor seus abdominais malhados. Apesar da euforia do público (principalmente feminino), no percurso da noite, nenhum deles conseguiu “ficar” com as moças com quem tentaram. É claro, nada sabemos sobre os arranjos privados que começam com trocas de números de celular e continuam em veículos, festas particulares, piscinas e casas (também oficiais).

O que me interessa destacar, fora o desespero narcisista dos colonizadores, é a intensa alegria das jovens indígenas quando, circulando entre os homens brancos e seus pares, encontravam-se e dançavam forró com estes últimos. A dança entre eles, aliás, era preciosa e irrepetível, e sem dúvida se constituía num espaço quase ritual de exegese do mundo, de encontro, de alimentação da alegria, da beleza e de um mundo que colocava aos “brancos” no seu lugar (à margem do movimento, da cumplicidade e da alegria). Não havia nenhum homem que não fosse indígena, principalmente jovem, que dançasse com elas daquele jeito precioso, cheio de giros e de leveza, com um balançar permanente de braços como ondas ou correntezas.

A essa dinâmica geral agenciada pelas adolescentes, minha vizinha Rosa deu o nome de “putaria e saca”. Indígena de 17 anos e proveniente de uma dupla mobilidade (do alto de um dos rios para a cidade e da periferia para o centro), ela morava “amigada” com seu namorado militar em um pensionato do centro da cidade. Conversando na área da lavanderia, ela me explicava que se trata de uma prática entre amigos e amigas pares, “sem homens e sem mulheres”, dizia ela, referindo-se à importância da pura amizade, da ausência de envolvimentos amorosos nessa prática de grupo. O centro da jornada noturna para eles e elas não é o sexo, apesar do que a expressão poderia sugerir, mas a bebida e a amizade. A turma se desloca à noite dos bairros de periferia para o bairro da Praia, onde está a maior parte dos bares frequentados por “brancos”, ou para alguma das casas de festas do momento. O alvo da missão são “velhos” “brancos”. As moças, que se produzem belamente, intensificando os olhos puxados e seus cabelos pretos e compridos, colocam-se no campo visual dos “velhos” como disponíveis para paqueras e convites, mas sem realizar qualquer gesto direto de sedução – em alguns casos, dizem, “um primo arruma homens pra gente”. O “velho” convida a moça para uma bebida e, um tempo depois, alguns dos amigos ou amigas vão chegando casualmente, sendo convidados como requisito para o “velho” continuar gozando da companhia da ou das moças bonitas. Nessa coreografia, o “velho”, então, tenta seduzir e avançar com suas mãos, sendo sempre interrompido e sabendo que em público nada pode acontecer. Na reconstrução de Rosa, o “velho” perguntaria se no final da noite poderiam “ficar”: “pode, pode” – “putaria”. Quando a noite vai chegando ao fim, as jovens pediriam licença para ir ao banheiro e, aos poucos, um atrás do outro, os amigos iriam se afastando – “sacanagem”. Em outra versão, Rosa me conta que o homem dá a ela um dinheiro para adquirir bebidas, e ela compra menos que o valor poderia pagar e guarda o troco, repetindo essa prática por toda a noite com o mesmo ou diversos “velhos”. Nessa lógica, diz ela, “uma vez arrumamos 600 reais [U$ 200,00] numa noite!”.

Vi e vivenciei estas cenas muitas noites. Inclusive, fiz parte de uma muito especial, em uma posição semelhante à dos amigos pares (sem ser capaz de dançar bem). Essa cena me ensinou a consistência social da “putaria e saca”, pois as protagonistas não eram garotinhas pobres da periferia. Eram mulheres locais (três indígenas e uma branca), já na casa dos 25 a 30 anos, profissionais e empregadas, que operavam sobre “velhos” militares conhecidos por elas procedimentos semelhantes aos descritos por Rosa. No lugar da cerveja, bebíamos whisky e, no final da noite fugimos deles, não de lotação ou caminhando, mas no carro próprio de uma das amigas.

Nesse jogo, a contradádiva sexual não é “necessariamente” concedida e nem estritamente cobrada, conforme o relato de Rosa. Raramente o dinheiro gasto pelo homem se transforma, de fato, na “devoração”: “eu não gosto de velho… não tenho preconceito, mas não gosto de velho”. Putaria e Saca. Contudo, é claro, como em toda relação canibal, na “sacanagem” diversas portas ficam abertas para o exercício do “predador”/“devorador” (pressões, convites posteriores, encontros casuais, dádivas maiores, etc.).

Por outro lado, não é possível perder de vista que, para fora da violência, o sexo existe, tanto em termos de transações econômicas, mais ou menos sistemáticas, como em termos de buscas libidinais, mais vinculadas aos afetos e ao prazer sexual. Rosa, como muitas das garotas indígenas das periferias de São Gabriel com quem conversei, tinha vínculos próximos com algumas das moças envolvidas em um caso que ficou famoso por ter sido publicamente denunciado. Algumas delas, como a moça de 17 anos que fez a denúncia, porque “o velho mexeu com a irmãzinha dela”, não foram nem forçadas e nem enganadas, e teriam nesses “velhos” não-indígenas, nessa “prostituição” ontologicamente assimétrica, uma fonte segura de dinheiros e de alguns bens.

Apropriando-se da minha pronúncia hispano-americana do “s” como “ç” quando perguntei sobre “casar com militares”, Rosa disse-me, rindo, que as moças gostam mesmo de “caçar” e que estão sempre sabendo o tempo e o bar onde, como objeto de caça ou como fruto de árvore, “está dando muito militar!!”. Esses militares são os “aeronáuticos” – objetos perfeitos de “putaria e saca” ou da “prostituição” –, mas também são os “recrutinhas”, “novinhos e bonitinhos”, como o marido de Rosa, com o qual se tecem diversos vínculos de afetos e transações.

Em vários sentidos, a prática da “putaria e saca” se opõe termo-a-termo às dinâmicas relacionais coloniais antes narradas, principalmente da “exploração sexual”, bem como às narrativas de vitimização moral sobre elas construídas. Tal oposição não é de contestação ou resistência, mas de contraefetuação, e passa fortemente por noções como “devorar”, “caçar”, “comer”, consumir, comercializar, “putaria e sacanagem”. De um lado, temos a imagem dos carros dos “velhos” rodando pelos bairros da periferia, perto das escolas, assediando as moças que transitam em paz. Do outro, observam-se relações de agenciamento coletivo, com moças arrumadas e noturnas, aventurando-se para sair dos seus bairros e penetrar ora o coração da beleza postal e da balada “branca” de São Gabriel – o bairro da Praia –, ora os circuitos mais mal-falados de noitada, com o intuito de “caçar” militares e de “arrumar” homens. Se, em ambos os casos, há uma formapredação, em que caçar e consumir fora tem o efeito de produzir relação e afetos dentro, de um lado a relação é orientada pela obstinação instrumental e destrutiva do “devorador” com o sexo e com a substância dos corpos das garotas indígenas; do outro, a orientação é a amizade e os afetos entre pares, a bebida e a dança, colocando a busca por esses homens como um mero percalço e implicando, também, a dívida. De um lado, a eficácia do agenciamento está na autoridade, no uso da força, no isolamento, na escuridão, na redução étnica e sexual generificada, e na escassez econômica do outro. Do lado contrário, a eficácia descansa na beleza, em toda uma poética da sedução dissimulada e fugidia, na estética cuidada da dança, dos cabelos e das roupas, na apropriação algo paródica ou fantástica do código de etnicização erotizada. Por fim, se de um lado há a tentativa da dominação pela força ou pela dívida civilizatória (a ficção do comércio), no outro há o claro exercício de ser objeto de dívida e se agenciar no sexo, na “caça” e na administração da gramática. Impossível dizer que há uma reformulação do quadro, mas quiçá uma canibalização da dívida e dos desejos?

Considerações finais

Este artigo começou com uma cena de assassinato e estupro e terminou com uma tensa festa libidinal e econômica. Entre as cenas, encontramos uma cidade neocolonial na Amazônia, a “exploração sexual” e as lembranças de juventude de D. Inácia. O objetivo deste artigo foi localizar formas específicas de agenciamentos de mulheres jovens indígenas nessa cidade, contra, através e no meio da paisagem barroca de violências sexuais. Estas violências são efeito das configurações do poder e do Estado na cidade, que emerge como um “escoadouro” comercial e como uma fabricação religioso-militar. Nesta fabricação, em nome de uma compreensão muito específica do “progresso” e da “integração nacional”, e em tortas relações com a ideologia da “defesa”, produz-se um mundo de absoluta insegurança e desintegração para sujeitos indígenas, particularmente para as jovens. Nesse sentido, as violências aqui analisadas avançam na atualização performativa de um frame que coloca as moças indígenas na permanente ida e volta entre a morte e a reprodução biológica, entre a “exploração” e o casamento, entre o estupro e o assassinato – o peso histórico e mitológico dos (des)fazeres do projeto “civilizacional” nas suas particularidades rionegrinas.

A prática da “putaria e saca”, como descrita por minha vizinha Rosa, oferece-nos algumas ideias para imaginar formas possíveis em que estas moças lidam com o enquadramento. A “putaria e saca”, enquadrada, remete-nos a duas formas diferentes e articuladas de agenciamentos. Uma se situa no plano da evasão estética e a outra, talvez mais englobante, no plano do que desde certa antropologia poderíamos chamar de contraefetuação canibal. No primeiro plano, localizo as formas poéticas por meio das quais estas mulheres se implicam no quadro: a produção da sua própria beleza, da sedução, da dança, da alegria etílica, do gozo sexual. Aqui, é central a inspiração de Butler quando analisa as possibilidades da poesia e das imagens produzidas em contextos de guerra. São atos poéticos e estéticos que não têm pretensão ou sequer possibilidade de acabar a guerra, porém,

(…) tienen claras consecuencias políticas: surgidos de escenarios de sojuzgamiento extremo, son la prueba fehaciente de una vida tenaz, vulnerable, abrumada, la vida propia y la no propia, una vida desposeída, airada, perspicaz. Como red de afectos transitivos, los poemas –su escritura y su divulgación– son actos críticos de resistencia, interpretaciones insurgentes, actos incendiarios que, en cierto modo e increíblemente, viven a través de la violencia a la que se oponen, aún cuando no sepamos todavía de qué manera van a sobrevivir dichas vidas
– minhas ênfases. Marcos de guerra. Las vidas lloradas (2010), de Judith Buttler.

A chave pois, está na coexistência da evasão, do afrouxamento dos mecanismos de controle e, isso é fundamental, das novas trajetórias de afetos e das redes de afetos transitivos. Além dos namorados e “colegas” de rua ou de escola, os “recrutinhas”, “soldados” e outros militares jovens parecem ser ótimos parceiros para encontros sexuais e para abrir, agora sim voltando a Cristiane Lasmar, possibilidades de vínculos afetivos mais duradouros: porque, além de “dar coisas”, são “novinhos e bonitinhos”. Esses jovens militares de hoje são, então, uma função daqueles desejos “doidos” da juventude de D Inácia e da sua relação com “o Sargento”, e, lado a lado com a dança das moças e com o “lepo-lepo” dos “aeronáuticos”, lembram-nos irremediavelmente de um conjunto relacional extremamente mais complexo que a pura dominação e que as acusações morais sobre a sexualidade das moças ou sobre os desejos dos colonizadores. Contudo, os afetos novos, transitivos e em movimento, bem como os afrouxamentos do frame, marcam também as novas alianças: mulheres pesquisadoras, funcionárias de ONGs, jornalistas, colegas de militância indígena que, pouco a pouco, vão acolhendo e acarinhando essas outras existências.

Nesse sentido, para imaginar as possibilidades de reenquadramentos e eficácias, é importante se perguntar pelo espaço conectivo entre Rosa e Sarah, entre a morte violenta, a “exploração sexual” e a “putaria e saca”. É possível para as mulheres jovens evitar a morte? A “putaria e saca” representa um risco especial para estas mulheres?

De início, há uma analogia possível. D Inácia conta das punições que a polícia exercia, “caçando” e obrigando as jovens indígenas que frequentavam a rua e a noite a serem prostitutas. Elas, não aguentando, morriam nos prostíbulos. Há uma analogia com o tempo presente: essas moças da “exploração”, da “putaria e da saca”, que “caçam” militares, são transformadas discursivamente em “prostitutas” e depois estupradas e assassinadas na saída de um “Club” ou no trânsito noturno de uma cidade que já não tem prostíbulos. Para evitar assédio e estupro, as mulheres da cidade, principalmente as mais jovens, evitam certas ruas, horários e taxis desconhecidos; para evitar a morte, D. Inácia permanecia em casa.

Assumindo o risco, de forma semelhante a Rosa, D. Inácia “saiu”, ficou “doida”, namorou, engravidou e não morreu. O caso da Sarah é, de alguma forma, a reflexão negativa da inevitabilidade da morte. Foi o único caso de corpos de mulheres indígenas estupradas e assassinadas encontrados na rua em 2016 (entre pelo menos três), capaz de criar sentimentos e expressões públicas de luto e dor, sendo lembrado com detalhes ainda em 2018. O fato de ela não ter sido assassinada numa casa de festas, ou vestida com “microrroupas”, de madrugada ou bêbada, após na saída de uma danceteria, fez com que a sua moralidade pública fosse resgatada, abrindo espaço para a condenação da imoralidade da sua morte.

Esta não-causalidade é importante para pensar as possibilidades que estes agenciamentos têm quando impactam o frame. Afinal, não-causalidade é a marca da incerteza plena e da fácil expansão do medo entre mulheres que habitam e visitam a cidade. Em consequência, tem fortes efeitos na manutenção das assimetrias relacionadas à precariedade de certas vidas (não as das jovenzinhas da “putaria”, mas, virtualmente, de todas as mulheres jovens indígenas no percurso de gerações).

Por outro lado, a “putaria e saca” – transformação sofisticada desse “endoidar” da festa de que D. Inácia falava –, pode ser lida como uma contundente contraefetuação dos regimes morais, corporais, urbanos e econômicos maioritários. Isto é, talvez a “putaria e saca” seja uma versão possível de canibalizações contracoloniais, no sentido de poéticas, políticas ou filosofias nativas de socialidade – na chave da caça e devoração –, a partir das quais se traduzem e reconfiguram substâncias, corpos e gramáticas. Trata-se, então, de “sacanear o frame”, conforme as palavras de Rosa. É na intensificação e administração da alegria, da potência erótica, noturna e juvenil, produzida de forma coletiva, dançante e fortemente estética, que essas moças sacaneiam parcial e temporariamente o processo de devoração colonial e de sujeição moral de que são objeto, ou se reinscrevem nele desde a linguagem da putaria e do canibal: por isso o risco permanente de ser objeto efetivo da devoração (necropolítica).

Perante um sistema sólido de colonização que tem em destruições físicas, endividamentos e explorações sexuais um centro estrutural, a “putaria e saca” se apresenta como um mecanismo de tradução da história e da genealogia familiar, o controle possível do “endoidar” e da experimentação. Uma tecnologia que fissura o frame, que o quebra entre “velhos” e “jovens”, recombina possibilidades de relação étnica, insere distinções em seu interior, permitindo compreender e separar as fontes dos perigos, dos prazeres e das satisfações, e, insisto, possibilita a composição de novas trajetórias de afeto. Uma tecnologia através da qual estas moças tensionam publicamente sua existência – fazendo-se assim existir como vidas tenazes – no marco, agora sacaneado, da função sexual prevista por cosmologias nativas e pelo processo colonial. “Putaria e saca” é a tradução feminina, indígena, urbana e juvenil da intrincada rede de desejos que conecta os “velhos” e seus avanços, as vontades de beber, as necessidades de dinheiro, a potência do sexo, as fantasias conjugais, a amizade, “o mundo dos brancos”.

 

Este artigo foi originalmente publicado na Revista de Antropologia da USP. Você pode conferir a versão original contendo as referências bibliográficas clicando aqui.
José Miguel Nieto Olivar é comunicador social e antropólogo, professor na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Entre 2010 e 2013, realizou pesquisa pós-doutoral sobre os mercados do sexo na fronteira urbana entre o Brasil o Perue e a Colômbia; entre 2013 e 2015 participou de um projeto sobre as políticas de combate ao tráfico de pessoas, incluindo no Norte do Brasil; e entre 2014 e 2017 foi responsável por um projeto Jovem Pesquisador que visava aprofundar a compreensão das fronteiras Amazônicas em termos de gênero e de sexualidade e das articulações entre dinheiro e Estado.
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